Usina Parque Bandeirinha: Um lugar para viver e recordar
O que eu sabia, quando criança, sobre as lendárias Cachoeiras do Rio Bandeirinha, era o que povoava o imaginário que flutuava na minha memória, resultado das histórias contadas nos velhos bancos de madeira, na casa da Fazenda dos meus avós, o “Mata Cavalos…”
Por Rose Barreto Ornelas
À medida que o tempo escorria entre meus dedos, como areia, via meus irmãos saírem na velha bicicleta Rex do meu pai, em direção à Bandeirinha, com os amigos do Ginásio do Planalto, onde chegaram a fotografar, em preto e banco, seus mergulhos nos poços do rio…
Voltavam para casa com o “embornal” – uma bolsa de pano levada a tiracolo – repleto de côco xodó, cagaitas, araticuns, pequis, araçás e outras delícias do Cerrado goiano. Sabores que marcaram minha infância!
Mais tarde, nos idos de 1960, chegou a minha vez: eu iria finalmente sair da Formosa distante de tudo, viajar por uma estrada de terra poeirenta, para conhecer a magia daquele lugar – um paraíso resguardado e natural – com árvores e coqueiros repletos de pássaros nos seus ninhos, um mundo fascinante, de onde ninguém queria mais sair!
Era o piquenique anual das alunas do Colégio São José, um oásis Educacional onde imperava um ensino primoroso e rico, incrustado ali, naquela pequena cidade do interior de Goiás; as freiras, nossas professoras, Religiosas Missionárias de Nossa Senhora das Dores – iniciavam, sabiamente, ao lado da Filosofia, do Francês e da Literatura os clássicos estudos de Ecologia e Preservação Ambiental.
A USINA BANDEIRINHA JÁ SIGNIFICAVA ESSA VISÃO DO FUTURO! Nossas mães preparavam as cestas com o carinho próprio das mulheres: bolos, biscoitos, pães de queijo, goiabada, queijos, sucos caseiros e até a famosa lata de sardinha, um luxo para muitos de nós, oriundos de famílias numerosas, com seus recursos apertados.
Mas, naqueles tempos, a Felicidade estava ali e custava pouco! Entregues às freiras por nossos pais, subíamos no caminhão basculante, cedido pela Prefeitura, para o transporte da preciosa carga, nós, as mocinhas, adolescentes, levadas pelo cuidadoso motorista, sem cinto de segurança e só com a alegria que transbordava do nosso peito, o coração feliz e cheio de Fé.
Seguíamos sem muitos aparatos – mas era vida que pulsava e nos era dada assim, de graça! E transcorria o dia: a escolha do lugar para sentar, sempre debaixo de uma árvore frondosa, ao lado de uma pequena cachoeira. Toalhas estendidas, repartíamos o pão – como nos ensinava a Fé Cristã.
Fotografias em preto e branco eternizaram nossos momentos, retidos para sempre na memória, instantes que estabeleceram uma profunda relação com o tempo, armazenado e congelado nos olhares de quem vivenciou o encantamento, a inocência, os sonhos de infância e juventude – da nossa geração.
Hoje, vivendo em dias encarrilhados a minha maturidade, percebo que o tempo não apaga as boas lembranças – ele simplesmente as adormece! O murmúrio das cachoeiras, o cheiro do orvalho no capim meloso, gotas cristalinas em arco-íris, foram o pano de fundo para que, em silêncio e reverência, ouvíssemos as professoras contarem a História da Usina.
Por elas ficávamos sabendo que nossa Formosa dos Couros, antes com o brilho opaco das candeias, lamparinas e velas, foi iluminada a partir de 1931, pelo milagre da Luz gerada ali, no nosso santuário Ecológico! Embriagadas de casos e narrativas, vivemos um mundo ideal onde a Educação, a religiosidade, a fraternidade misturavam-se com a história do lugar.
Ali, na Usina Bandeirinha, descobrimos que a amizade é o grande antídoto contra a solidão. Hoje, tese reafirmada por Itamar Barreto. Fim do dia, o sol se pondo, tingia de púrpura morros e coqueiros. Hora de retornar, levando na bagagem interior, a certeza de que a vida é uma tarefa bendita, que não pode ser dividida com ninguém, que, de ora em diante, cada uma de nós deveria criar sua história pessoal.
Inútil seria procurar linhas divisórias entre aquele tempo e agora. Ao transpor o mata-burros que abre a estrada asfaltada que conduz à Usina moderna, reconstruída por seu guardião, o visionário Itamar Barreto, mergulho de novo nos recortes do passado e da memória.
A emoção me domina todas as vezes que cá retorno! Tenho a certeza de que é esse o sentimento de todo Formosense que visita a Usina. São caminhos percorridos em dois tempos distintos de nossas vidas – na outrora pacata cidade de Formosa, hoje privilegiada ao receber este presente de Itamar Barreto – o resgate da história e de sonhos transformados em realidade, o regresso a um tempo que não volta mais, mas que valeu muito a pena!
Texto e Imagens: Rose Barreto Ornelas
Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.
Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.
Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.
Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.
Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.
Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.
Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.
Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.
Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.
Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.
Zezé Weiss
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