Valdiza Alencar de Souza: a mulher do sindicato
A resistência acreana contra os grupos do centro-sul que vieram bovinizar o Acre teve uma mulher seringueira como protagonista: Valdiza Alencar de Souza, que ficou conhecida como a “Mulher do Sindicato” por ter assumido a luta, um lugar que cabia aos homens, para enfrentar capataz, jagunços e operadores de motosserra que ameaçavam as famílias seringueiras da região.
Por Elson Martins
Ela nasceu no seringal Sacado e vivia em sua colocação no quilômetro 71 da estrada (BR-17), entre Brasiléia e Assis Brasil, onde o capataz Horácio a visitou, alertando para não fazer nenhuma benfeitoria na propriedade, pois o seringal tinha um novo dono e ela teria que sair da terra sem direito à indenização.
Valdiza era uma mulher valente e decidida, tinha um filho e uma filha ainda jovens, o marido se tornara deficiente físico, por isso ela cuidava de tudo: do roçado, das pequenas criações, da caça e da pesca, da produção de borracha e da coleta de castanha.
Sua energia era notável, pronta para a solidariedade, para ajudar os amigos, resolver situações incômodas na cidade. Quando a ameaçou, o capataz não sabia com quem estava mexendo. “Vou lutar nem que o sangue chegue no meio da canela” – dizia ela, de um jeito que ninguém poderia duvidar.
Ora, dona Valdiza gostava de ouvir rádio, para saber das novidades distantes! Ela ouviu a notícia sobre a instalação da Contag em Rio Branco, e sobre “um tal doutor João Maia” (delegado da entidade) que ia criar sindicatos de trabalhadores rurais em todo o estado, para que lutassem por seus direitos legais.
Sem perder tempo, montou sua égua e saiu mato adentro chamando seringueiros para irem à capital “procurar esse homem”. Não encontrou coragem, as famílias estavam descrentes de que poderiam encontrar ajuda de políticos e autoridades. Muitos estavam saindo para as sedes municipais ou para a Bolívia.
O tempo em dezembro era de muita chuva, a BR-317 ainda não tinha asfalto e suas ladeiras eram íngremes, um lamaçal só. Poderia ser melhor em grupo, mas Valdiza andou sozinha 71 quilômetros até Brasiléia, depois pegou um ônibus pra Rio Branco e conversou com João Maia.
O delegado da Contag era um homem educado, tinha vivido nos kibutzes em Israel, trabalhara com as famosas Ligas Camponesas em Pernambuco, sabia como chegar e arrancar prosa dos trabalhadores aflitos.
Pedia um pouco de tabaco migado e folha de espiga de milho para enrolar um cigarro, fazia questão de sentar-se no chão da casa, com pernas cruzadas sobre a paxiúba. Dali a conversa fluía, solta e engajada.
Ficou marcada a reunião histórica na casa de dona Valdiza. João Maia – na companhia do advogado da Contag, Pedro Marques da Cunha Neto e este repórter – contratou uma camionete com tração nas quatro rodas para enfrentar as ladeiras enlameadas; o motorista era o “Espanhol”, que compareceu com cheiro de álcool.
Por precaução, a cada ladeira os passageiros desciam do veículo e patinavam na lama, enquanto o motorista rodopiava. O grupo chegou molhado e sujo ao local da reunião, onde dona Valdiza, rodeada de homens e mulheres da floresta, estava radiante.
O advogado Pedro Marques deu o tom das falas, brincando com os que pareciam distraídos: “Coloquem uma goiabinha verde num dos ouvidos, para o que vou falar não entre num e saia pelo outro”! Todos riram!
A recomendação de João Maia e Pedro Marques era baseada em dois documentos – o Estatuto da Terra e o Código Civil – um item apenas de cada. Com um ano e um dia trabalhando na terra o trabalhador era considerado posseiro e não podia ser expulso; em caso de ameaça à sua família, o trabalhador poderia reagir armado, o advogado (no caso Pedro Marques) teria elementos para defendê-lo.
No dia 21 de dezembro de 1975, o mais forte e destemido sindicato dos oito criados pela Contag, o STR de Brasileia, nasceu no pátio da Igreja com grande júbilo dos seringueiros. Elias Rosendo, que visitava seringal por seringal batendo fotos pra identidade e cobrando pelo serviço almoço e estadia, foi escolhido presidente.
Mas logo foi substituído por Wilson Pinheiro, que organizou o primeiro “Empate” no seringal Carmem em março de 1976. Chico Mendes foi escolhido secretário e Valdiza de Souza delegada sindical.
Em setembro de 1979, os seringueiros deram uma demonstração de força, realizando na estrada (BR-317) para Boca do Acre o “Mutirão contra a Jagunçada”, que reuniu 300 sindicalistas para expulsar 12 jagunços armados e 45 operadores de motosserra que infernizavam a vida de posseiros. O acontecimento despertou a ira dos fazendeiros, grileiros de terras e seringalistas, que acabaram matando Wilson Pinheiro. Dez anos após morria Chico Mendes, em casa, também de tocaia com um tiro no peito
Nessa época (1980), a “Mulher do Sindicato” havia se separado do marido e se transferido com os filhos para a cidade de Rio Branco, juntando-se às famílias expulsas da floresta com as quais criou novas formas de luta. Na Floresta ficou o seu símbolo, referenciado por outras mulheres.
Atualmente, muitas mulheres atuam nos sindicatos acompanhadas pela imprensa (sobretudo o Varadouro, jornal alternativo que esteve ao lado dos trabalhadores durante a ditadura), associações, ONGs nacionais e internacionais e outras entidades. Agora é preciso salvar as Reservas Extrativistas (Resex) e o meio ambiente, legados deixados por Wilson e Chico, com ânimo para realizar novos Empates, se preciso for.
Elson Martins – Jornalista. Escritor Acreano. Membro do Conselho Editorial da Revista Xapuri.