Vanda Ortega Witoto: o protagonismo da mulher indígena da Amazônia
O livro “Vanda: do Alto Solimões para o mundo”, que conta a história de vida da líder indígena do povo Witoto, Vanda Ortega Witoto, foi lançado no mês passado, na Banca do Largo de São Sebastião, no centro de Manaus. De autoria de Marília Gabriela Gondim Rezende – professora do Centro de Ciências do Ambiente da Universidade Federal do Amazonas (CCA/Ufam), o livro faz parte da segunda edição do projeto “Biografias Colaborativas”, editado pela Sagre Consultoria do Rio de Janeiro…
Por Elvira Eliza França/via Amazonia Real
Vanda foi a primeira pessoa no Amazonas a receber a vacina Coronavac, do Instituto Butantan, no dia 18 de janeiro de 2021. Estava mostrando aos que estavam duvidosos em relação aos possíveis efeitos da vacina, que não tinha medo de “virar jacaré”, tal como havia apregoado o presidente da República Jair Bolsonaro, cujo governo estava negligente com a vulnerabilidade dos povos indígenas à contaminação e ao adoecimento pela gripe, e havia demorado para disponibilizar as vacinas para a população.
A técnica de enfermagem Vanda havia sido convidada uma hora antes para o lançamento da campanha no Amazonas, e soube usar, apropriadamente, sua aparição como profissional da área da saúde, para fazer seu pronunciamento também como mulher indígena, envolvida nas ações de promoção da saúde dos povos tradicionais em Manaus. Assim, com vestido longo, pés descalços, cocar de penas coloridas na cabeça, colar no pescoço, face e máscara pintadas com grafismo indígena, Vanda colocou a mão direita no ventre, simbolizando o poder da mulher do povo Witoto e, com a outra mão, chacoalhou um maracá: chocalho grande, usado como instrumento musical pelos povos tradicionais, e que também é utilizado nos rituais de cura, pelos xamãs de alguns grupos tradicionais.
Mesmo sem microfone, Vanda começou a falar e expressou seu gesto de luta como alguém da área da saúde, que também estava defendendo os direitos dos povos tradicionais da floresta que estão fora das terras demarcadas, e que vivem nos centros urbanos do país, em especial em Manaus. Nessa fase da pandemia, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, não estava dando a devida cobertura de atenção à saúde aos indígenas que vivem nos centros urbanos, mas somente para os que são aldeados. Isso também ocorria em Manaus, onde vivem cerca de 35.000 indígenas, segundo a Coordenação das Organizações dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (Copime).
Os indígenas atendidos pela Secretaria Municipal de Saúde de Manaus (Semsa) estavam invisibilizados nos dados dos boletins da pandemia da covid-19, impossibilitando o conhecimento da real situação em que os indígenas se encontravam na capital. Em entrevista à Amazônia Real, em abril de 2020, Vanda protestou contra a negação que estava sendo feita da identidade indígena das pessoas.
“Diante desses aspectos, essa vulnerabilidade é gigantesca, porque sem o território não há vida, nem cultura, identidade, saúde e alimentação para esse povo. Para nós é negado o direito de viver fora do território. E essa vulnerabilidade se intensifica uma vez que não se reconhece sua identidade”. Ainda na entrevista à agência, Vanda Ortega expressava o sentimento de que os indígenas são invasores, quando ela dizia: “Somos considerados tudo que não presta pela sociedade. O Estado se acha no direito de não prestar assistência porque ele diz ao mesmo tempo que não nos reconhece. Se é índio, a Sesai [Secretaria Especial de Saúde Indígena] é que cuida, mas nós estamos na cidade. Então, quem tem que cuidar é o Estado e o município. E nesse embrulho todo, quem sofre somos nós”. Sem muito tempo nem condições adequadas para falar durante o evento da abertura da campanha de vacinação contra a Covid-19 no Amazonas, Vanda não pôde relatar como via a situação dos indígenas durante a pandemia, e o que estava fazendo para minimizar os riscos de adoecimento e morte da população tradicional que vive em Manaus. Assim, na entrevista que deu novamente à Amazônia Real, dias depois, disse: “Diante do cenário da Covid-19, não havia orientação, nenhum direcionamento quanto aos cuidados. Às pessoas levando a vida normal, muita gente circulando, aglomerada, que é uma coisa cultural nossa, de estarmos juntos. Mesmo com as informações das mídias, estava tudo normal. Então, tive a iniciativa de começar a fazer vídeo e enviar aos grupos da comunidade informando da necessidade dos parentes se prevenirem, contando com o apoio de amigos e de lideranças daqui, como o cacique Messias e a professora Claudia Baré”. Durante a entrevista, Vanda também contou que, como sabia costurar, havia iniciado um trabalho com outras moradoras do bairro onde mora, para confeccionar máscaras caseiras de tecido, para distribuição.
Vanda dizia: “A nossa identidade não é algo vago e restrito ao nosso território demarcado. A nossa identidade está onde nós estamos, onde nossos corpos estão. A partir desse pensamento, a própria Constituição deve ser modificada. São 520 anos de negação. Não somos da cidade; estamos na cidade. Estamos por alguma necessidade. Mas aqui, é o espaço onde mais somos negados.”
Como primeira mulher do Amazonas a tomar a vacina, expressando o gesto de força de uma mulher indígena resiliente, numa luta constante na defesa dos povos tradicionais, mais uma vez Vanda teve que enfrentar as adversidades de uma sociedade desigual, misógina, machista e discriminatória contra a mulher e contra os indígenas. Depois da abertura da campanha da vacinação contra a covid-19, Vanda sofreu o ataque misógino de ódio nas redes sociais, por parte de homens brancos machistas, dentre eles o radialista Ronaldo Tiradentes, que a chamou de “indígena fake”: picareta e oportunista. Esse fato o levou a se retratar posteriormente, quando se informou melhor sobre quem era e o que fazia a indígena amazonense Vanda Ortega Witoto, junto à comunidade do Parque das Tribos, localizado na zona oeste da capital.
Antes de ser fundado oficialmente pela prefeitura de Manaus, em 2014, o Parque das Tribos enfrentou uma disputa judicial pelo empresário imobiliário Helio Carlos D’Carli, que pediu a reintegração de posse várias vezes da área ocupada pelos indígenas. Nessa luta pela posse da terra, com apoio policial ilegal, foram derrubados vários barracos com tratores, e outros incendiados.
Atualmente vivem no Parque das Tribos 700 famílias pertencentes a 35 etnias indígenas, entre elas, Apurinã, Baré, Mura, Kokama, Karapano, Tikuna, Miranha, Wanano, Sateré-Mawé, Tukano, Tupinambá (esta última da Bahia). A comunidade recebe serviços públicos como: rede de abastecimento, terraplanagem, asfalto e eletrificação das ruas, fornecimento de energia pela Eletrobras, escola indígena com professores pagos pela prefeitura. Isso contou muito contra o processo na justiça que pretendia expulsar os indígenas daquele local.
Vivendo nesse contexto desde 2014, Vanda foi uma das primeiras estudantes universitárias a morar no Parque das Tribos. No início da pandemia haviam 140 moradores que apresentavam sintomas de Covid-19. Em 10 de abril daquele ano, quando da visita do então ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta, foi prometida a construção de um hospital de campanha, mas o ministro logo foi demitido, e o projeto não foi adiante. No mês seguinte, em maio, quando esteve em Manaus o médico Nelson Teich, então ministro da saúde que estava no lugar de Mandetta, Vanda Ortega, juntamente com Natalina Martins Ricardo, da etnia Baré e Luciana Vasconcelos da etnia Munduruku, foram protestar na frente do Hospital e Pronto-Socorro Delphina Aziz.
O ministro estava visitando o hospital e, com cartazes nas mãos, as três mulheres indígenas pediam melhoria no atendimento dos indígenas nos territórios tradicionais e também nas zonas urbanas. Elas também cobravam a construção do hospital de campanha. O protesto assegurou que seriam destinados 50 leitos para os indígenas no Hospital de Campanha Nilton Lins, do governo do Amazonas.
Segundo o que Vanda disse à reportagem da Amazônia Real, no Parque das Tribos, as ações de saúde da Secretaria Municipal de Saúde (Semsa) ocorriam esporadicamente e na situação de emergência era ela quem estava fazendo o monitoramento dos doentes, com o apoio de outras pessoas. Houve repercussão do protesto nos veículos da grande média como agências internacionais Reuters e EFE, e na TV Globo. Então, em maio de 2020, começou a ser dado atendimento médico para 16 doentes por dia, duas vezes por semana, exceto crianças. Os medicamentos utilizados eram: Tamiflu, Azitromicina e Cloroquina.
Nessa comunidade – que vinha sofrendo problemas sérios como a falta de serviços básicos de água potável e de energia elétrica, além das adversidades da pandemia –, Vanda, juntamente com um médico indígena e 11 voluntários de enfermagem, liderou a montagem de um hospital de campanha indígena na quadra de uma igreja, fazendo uso de redes como macas. Em uma campanha pelas redes sociais, Vanda obteve doação de equipamentos de proteção individual (EPI), remédios, produtos de higiene e cilindros de oxigênio, o que garantiu ter salvado muitas vidas indígenas no Parque das Tribos. Também arrecadou cestas básicas, porque as pessoas estavam adoecendo por carência alimentar, além da contaminação pelo coronavírus.
Segundo a professora Marília Rezende, a autora do livro sobre a vida de Vanda, as mulheres do Parque das Tribos sobrevivem da venda de artesanato indígena e os homens trabalham como pedreiros na construção civil. Além disso, eles atuam em apresentações culturais, sendo que todas essas fontes de renda estavam suspensas com a pandemia. Sem os recursos econômicos para sobreviver, as pessoas desnutridas estavam adoecendo mais facilmente. Vanda, que atua como técnica de enfermagem, contratada por concurso público na Fundação de Dermatologia Tropical e Venereologia Alfredo da Mata (FUAM) – referência no Amazonas no tratamento de câncer de pele, – dividia o tempo de trabalho no hospital com o atendimento domiciliar às famílias dessa comunidade indígena urbana.
No dia 26/04/2020, em entrevista dada à repórter da CNN, (tempo 40:29 do vídeo), Vanda mostrou o contexto onde atuava, conferindo, diariamente em visitas domiciliares, se as pessoas estavam com sintomas de covid-19. Também orientava as pessoas sobre a importância de se vacinar, e lutava para que fossem disponibilizadas vacinas para aquela comunidade, por parte do governo do estado.
Por isso, o livro “Vanda: do Alto Solimões para o mundo”, de autoria de Marília Rezende, também vem completar os dados de uma fase anterior a essa história com os dados da formação dessa líder indígena desde a infância, passando pela laboriosa adolescência em Manaus para trabalhar e estudar, até conquistar seu lugar na vida acadêmica, na Universidade Estadual do Amazonas (UEA). Com a pandemia, Vanda também passou a se dedicar à atividade empreendedora num ateliê de costura, envolvendo outras mulheres indígenas para fornecer máscaras de proteção contra a covid-19, ao mesmo tempo em que estavam gerando renda para as famílias.
No livro, Marília conta que, desde menina, Vanda aprendeu com o pai – sr. Edson Ortega – a importância do estudo para vencer na vida. Nascida na comunidade de Porto Ortega, em Amaturá – na região do Alto Solimões, interior do Amazonas a 909 quilômetros de Manaus – Vanda era colocada pelo pai, juntamente com outras crianças da comunidade a correr, cedo pela manhã, ao redor do campinho da comunidade. Depois, as crianças iam tomar banho no igarapé, e retornavam para suas casas para ajudar a família nos serviços domésticos e na cozinha. Edson Ortega só tinha até o 5º ano fundamental, mas ensinava o que sabia para as crianças da comunidade, fortalecendo nelas o desejo de estudar para vencer na vida. Em casa, Vanda ajudava a mãe Brasiléia e a avó Teresa nas atividades domésticas e na cozinha, vivendo num contexto de relação harmoniosa com a natureza, aprendendo a valorizar os costumes da etnia Witoto.
“O sentar em roda, o preparo dos alimentos, o processo de salga, o cuidado com a terra, as brincadeiras e os ritos são apenas alguns dos muitos elementos que configuraram a cultura Witoto no seu imaginário” (p. 20). Com mulheres fortes na família, capazes de enfrentar um bando de porcos-do-mato, a menina desenvolveu a sensibilidade e as habilidades relacionadas à força feminina da etnia Witoto, e a importância da vida em coletividade. É isso que hoje dá força para Vanda enfrentar os obstáculos para promover a própria vida e a de outras pessoas, segundo Marília Rezende.
Mas o valor de Vanda e de sua luta para ser quem é, nos dias atuais, tem um gradativo enfrentamento de desafios que começou aos 10 anos, quando ela foi mandada para morar na casa de uma tia, no município de Benjamim Constant, também no Alto Solimões. Aos 15, foi para o Peru realizar tratamento de saúde de um problema hormonal e depois retornou para a comunidade, onde vivia em contato direto com a terra, com a água e a floresta. Mas aos 16 anos, a família a enviou para morar com uma tia em Manaus, para que Vanda pudesse estudar.
Vanda ganhava R$ 100,00 por mês para realizar o trabalho da casa e cuidar da prima ainda criança. Acordava às três horas da manhã para preparar o café e organizar a casa e a comida, antes de ir para a aula. Algum tempo depois, foi para a casa de uma outra mulher para ganhar um pouco mais: R$ 150,00 por mês, mas tinha que cuidar de três crianças, sendo que duas tinham deficiência auditiva. Numa outra casa onde trabalhou posteriormente, além da exploração do trabalho, lavando muitas roupas e sentindo dores no corpo, Vanda sofreu assédio dos maridos e de filhos das patroas. Por isso, para se proteger, migrava de casa em casa, no período de 2002 a 2009, na busca de um lugar seguro para trabalhar como doméstica e onde também pudesse morar e estudar.
Na escola, Vanda recebia muito apoio das professoras que, por meio de cartas que a adolescente entregava a elas, ficaram sabendo sobre o sofrimento pelo qual a aluna estava passando, nos locais onde morava e trabalhava. Vanda ia bem nos estudos e sempre participava com destaque nas atividades escolares e nos eventos culturais, sentindo-se livre e feliz no contexto escolar. Foi com apoio de uma professora que conseguiu trabalho na empresa Tortas e Tortas, onde aprendeu a realizar tão bem suas funções de atendente que, após três meses de experiência, foi designada para o cargo de supervisora. Certamente, outras pessoas, que trabalhavam na empresa por mais tempo, não gostaram de ser preteridas pelo patrão. Foi um período em que Vanda sofreu discriminação por ser indígena, mas enfrentou as adversidades, porque nessa empresa teve a carteira de trabalho assinada pela primeira vez, o que possibilitou a ela alugar um quartinho na casa de uma senhora para ter independência e segurança para trabalhar e estudar. Também economizava para ter mais conforto com a compra do que necessitava, e também começou a cozinhar para a dona do quartinho de quem se tornou amiga.
Foi nessa fase que Vanda conheceu um rapaz com quem se casou e logo depois ingressou no curso de pedagogia da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), pelo sistema de políticas afirmativas para indígenas, após ser classificada em primeiro lugar. Assustou-se com o ritual do trote, mas depois se adaptou ao grupo, e fez amizade com outros indígenas de outras etnias que estavam estudando na mesma universidade. Vanda relembra para a autora do livro como se sentia nesse novo contexto: “Algumas pessoas perguntavam se eu era indígena. A única coisa que eu sabia é que era Witoto. Eu nunca entendi. Eu não tinha noção do que era meu corpo, essa identidade. Nada. E aí esse entendimento, ele vem a partir de 2015” (p. 37), relata a autora no livro.
No curso, com o grupo de colegas, Vanda montou a Coordenação Estudantil Indígena, que passou a lutar pelos direitos dos indígenas na universidade, para obtenção de apoio no transporte, alimentação e moradia. “Percebendo a invisibilização dos indígenas dentro da universidade, o grupo passou a usar o cocar como indumentária da representatividade ancestral para falar das dores coletivas vividas pelos estudantes [indígenas]. Essa ação despertou a curiosidade dos alunos e deflagrou o preconceito arraigado no corpo docente, que repetia incansavelmente: – Universidade não é lugar de índio!” (p. 38), diz trecho do livro.
Mas os indígenas mantinham seus objetivos: “Redigiram uma carta com 20 reivindicações, entre elas a concessão de vale-transporte, vale-alimentação, bolsas de apoio acadêmico e apoio psicológico. Destacaram ainda a necessidade de uma política linguística, uma vez que os estudantes indígenas encontravam inúmeras dificuldades por conta da língua. Apontaram a imprescindibilidade de valorização da língua natural e apoio aos indígenas na compreensão da língua portuguesa” (p. 40), como relata Marília Rezende.
À medida que os estudantes e suas lutas começaram a se tornar mais visíveis, em 2017 a universidade lançou editais destinando 5% de vagas específicas para indígenas. Nessa fase, o grupo de Vanda organizou o 1º Encontro dos Estudantes Indígenas da UEA e, depois disso, um grupo de professores que apoiava os indígenas criou projetos para beneficiá-los enquanto alunos. “O primeiro foi intitulado ‘Diálogo Interculturais’, que visava mapear todos os estudantes indígenas da universidade e consolidar um grupo de estudos voltados a diversos temas. O segundo teve como título ‘Língua portuguesa para indígenas (L2), que visava apoiar os discentes na compreensão da língua portuguesa e, o terceiro, foi intitulado ‘Tecendo redes’, que apoiava os indígenas através de projetos nas comunidades” (p. 40). Assim, o Movimento dos Estudantes Indígenas do Amazonas (Meiam) foi mudando o contexto da universidade na relação com os estudantes indígenas, tendo Vanda como única mulher na liderança. Ela dizia: “Não queremos ser objetos, queremos ser pesquisadores. Nosso conhecimento dá título a muitos doutores” (p.41).
Dentre as formas de apoio que os estudantes passaram a receber da universidade, a UEA também anunciou que seriam selecionados 15 alunos indígenas para tomar posse em terrenos no Parque das Tribos, um bairro urbano destinado aos indígenas em Manaus. Contudo, os terrenos não tinham infraestrutura, nem água, luz etc., e ainda havia exigência de que a pessoa beneficiada deveria iniciar a construção no prazo de 30 dias. Por falta de recursos econômicos para a compra de materiais de construção, os estudantes indígenas desistiram, mas Vanda prosseguiu na proposta, usando o dinheiro da rescisão de contrato na empresa Tortas e Tortas para comprar o que precisava para iniciar a obra no terreno. Assim, tornou-se a primeira estudante indígena moradora do bairro Parque das Tribos, em 2014, e cuida da comunidade com muito zelo, porque foi ali que consolidou sua autonomia com uma casa própria e uma família multiétnica.
“Ali havia uma riqueza cultural constituída por famílias indígenas de diversas etnias e municípios do estado do Amazonas. Logo, o interesse em aprofundar ações voltadas à educação emergiu e Vanda começou a aprofundar seus mergulhos em universos que não conhecia” (p. 42), ampliando as ações com a espiritualidade e cosmologia dos povos indígenas, segundo o que relata Marília Rezende no livro.
Foi como técnica de enfermagem, durante a pandemia, que Vanda colocou mais ainda seus conhecimentos a serviço da comunidade, obtendo equipamentos de biossegurança, e procurando não se deixar vencer pelo sofrimento do grupo. O impacto maior que a comunidade sentiu, foi com o adoecimento e morte do cacique Messias, por covid-19. Ele tinha lutado muito pela comunidade, e sua ausência deixou uma enorme lacuna entre os indígenas do Parque das Tribos. Nessa fase da pandemia, além de se tornar conhecida pelo país pelas campanhas que estava realizando, visando minimizar o adoecimento e morte da população do Parque das Tribos, após o evento de abertura da campanha de vacinação contra covid-19 no Amazonas, Vanda foi entrevistada pela CNN, (tempo 40:29), em 26 de abril de 2020, com divulgação nacional.
Depois, Vanda teve sua face estampada na capa da revista Vogue, em 06 de setembro de 2020, onde relatou um pouco da sua história e de sua luta para tirar os povos originários da invisibilidade e fortalecê-los contra perseguição e a morte, pedindo pela demarcação das terras indígenas.
“A sabedoria herdada da mãe, o entusiasmo pela vida herdada do pai e a força da avó foram os preceitos que moldaram e moldam as ações de Vanda. O amor ao próximo não é só uma escolha, mas uma arte expressa no dia a dia. E disso ela entende. […] Lutava tanto que teve o seu rosto pintado nos muros da cidade de Manaus. Seu rosto representa a esperança”, assim expressa Marília Rezende, no livro que escreveu sobre a vida de Vanda (p. 43).
“Os sonhos de Vanda partem da alma voadora, livre e comprometida que tem. Por serem alimentados por esse espírito ancestral, seus sonhos se tornaram coletivos: a busca pela valorização da língua nativa, o reconhecimento da importância da cultura indígena e a sede de um mundo melhor, igualitário e que respeite todas as diversidades existentes no mundo. Essas são as bases dos sonhos de Vanda” (p. 43). Assim, como mulher resiliente e persistente na luta pela igualdade dos direitos e em defesa dos povos indígenas, Vanda foi aperfeiçoando sua capacidade como líder, questionando sempre o porquê de os indígenas serem tão perseguidos, o porquê dos medos e das mortes, principalmente com um governo que nega a história dos povos indígenas.
Foi com esse propósito de apoio mútuo que se uniu ao marido com quem vive atualmente, para que cada um pudesse dar o melhor de si na construção de um mundo melhor, que ambos desejam para todos e todas. Nessas ricas experiências de vida, Vanda se tornou poetisa, compositora e também empreendedora, segundo Marília Rezende. Também foi capa da revista impressa Cenarium em março 2021. Teve sua face estampada num grafite de 15 metros na rotatória da Suframa, no Centro Cultural Povos da Amazônia, pela artista Raiz Campos. Para Vanda, o conhecimento oral, o ato dos mais velhos contarem histórias para os mais novos, fazendo uso língua nativa, é uma forma de manter a identidade cultural indígena viva. Por isso, ela sonha em construir uma grande maloca para fortalecer essa herança cultural na comunidade onde vive, para beneficiar a Amazônia como um todo.
Nesse processo de desenvolvimento que construiu depois de ter vindo para a capital do Amazonas, Vanda está para graduar-se em Pedagogia e durante o período da pandemia, em 2021, quando inaugurou o ateliê de costura, começou a produzir máscaras protetoras contra o coronavírus para a comunidade, usando seus conhecimentos de costura e os detalhes dos traços indígenas. Logo, seu trabalho artesanal foi reconhecido e recebeu encomenda para produzir 3.000 máscaras, o que fez com que seu empreendimento envolvesse mais mulheres indígenas para participarem dessa oportunidade para geração de renda.
“É com a alma cheia de sonhos que Vanda caminha, é o que dá sustentação para que ela possa ser mensageira da história dos Witoto e de outros povos indígenas nos quatro cantos do mundo. Para ela, a união das mulheres Witoto é um passo necessário para a conquista da autonomia” (p. 59). Assim, produzindo peças com grafismo indígena, Vanda vai traduzindo a vida de seu povo em cada peça produzida. “As roupas são expressão de silêncio e barulho, de resiliência e luta. O ateliê de Vanda Ortega é um espaço polissêmico, é um espaço dialógico de trocas interculturais, é um espaço econômico e, sobretudo, um espaço sociocultural” (p. 59). Assim, Vanda uniu a cultura Witoto com a dos indígenas Sateré-Mawé, Yanomami e os Mura e outros povos que também vêm resistindo no tempo para poder sobreviver, segundo Marília Rezende.
“Esse atelier não é só costurar roupa. A gente constrói a nossa história, a nossa identidade, a educação dos nossos filhos, costura histórias, ressignifica nossas histórias. Esse espaço físico é muito simbólico, porque é ali que a gente vai fazer os cortes, os grafismos e a costura. Mas ele é muito maior para nós, mulheres indígenas. É muito maior do que um ateliê de costura. Eu penso futuramente de estar produzindo roupas para outras mulheres que possam vestir também essa história, compartilhar as nossas histórias. Isso é muito importante” (p. 59-60) e essas palavras de Vanda estão registradas no livro. Por isso, os produtos do ateliê de Vanda não são apenas produtos de consumo, mas o resultado de uma força de trabalho que vai além das mãos e da mente de quem os produz, porque envolve a alma de mulheres que resistem e lutam pela dignidade de mulheres indígenas, herdeiras de um conhecimento tradicional que faz parte da cultura do país e por isso precisa ser reconhecido e valorizado.
Nesse sentido, pode-se dizer que ter mais uma fonte de consulta para se conhecer a história da construção da liderança de Vanda Ortega Witoto, com o livro de Marília Rezende, é um privilégio, não somente para os indígenas, mas para todas as mulheres que querem se fortalecer para se tornarem protagonistas da própria história. Além disso, a venda dos livros será destinada ao projeto empreendedor do ateliê, beneficiando o projeto de Vanda no Parque das Tribos.
No início de 2022, Vanda expressou, nas redes sociais, seu desejo de se candidatar como deputada federal pelo Amazonas, e isso está sendo viabilizado pelo partido Rede Sustentabilidade. Na verdade, apesar da luta que essa líder indígena tem para preservar os valores tradicionais da cultura dos indígenas, ela também luta pela preservação do meio ambiente, pelo respeito aos direitos iguais entre os povos, e sua vida é resultado da superação de muitos desafios. Na entrevista que deu à CNN, em abril de 2020, Vanda Ortega Witoto já havia expressado a importância de ser reconhecida como indígena, e a importância de sua luta não é apenas contra o vírus da covid-19, como também contra todos os demais vírus que vêm atacando os povos indígenas, desde que o Brasil foi descoberto pelos portugueses.
“Eu tenho medo de uma coisa: se eu vier a morrer, que não me reconheçam enquanto indígena nem na minha morte. Eu não tenho medo de morrer pelo vírus, eu acho que nenhum parente. A grande questão nossa não é lamentar essa morte que se foi, mas é você morrer com essa identidade negada. Então, para mim, eu não tenho medo de enfrentar o vírus. Enquanto a gente estiver viva, a gente vai continuar lutando para combater ele [coronavírus] e todos os vírus que a gente teve que enfrentar durante 520 anos”.
Vanda, com a compreensão histórica sobre todas as injustiças que ocorreram com os indígenas, após a colonização, reforça essa visão, também na reportagem da Vogue dizendo: “Estamos há 520 anos sobrevivendo a uma violência arquitetada pelo estado colonizador e também, hoje, por um governo que promove a negação da nossa história, o embranquecimento dos nossos corpos, invade nossos territórios, envenena nossos rios e que destrói a mãe Terra. Essa forma de governar é como uma pororoca que tem força para arrancar uma árvore da terra, deixando suas raízes expostas”.
Nesse sentido, os objetivos políticos de Vanda Ortega Witoto para o Amazonas e para o país dizem respeito à sobrevivência de todos os que vivem no solo brasileiro e também no planeta Terra. Vanda quer ensinar a todos que a Terra é como uma mãe, que precisa ser respeitada e cuidada, para que todos possam continuar vivendo com qualidade de vida. Nesse sentido, suas contribuições à Amazônia têm sido incalculáveis, tanto pelas ações que promove, como pela consciência que tem sobre a importância dos povos tradicionais da região, na construção de nosso país.
O retrato de Vanda Ortega Witoto que abre este artigo é de autoria de Alberto César Araújo/Amazônia Real
Fontes:
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