Jaider Esbell: Pro Dia da Minha Partida
Nesta tarde todos devem tomar pajuaru, a bebida da minha vida, e assim, elevar suas almas para que estejamos uníssonos.
Quando este corpo estiver lá, solenemente repousado; quando minha cabeça enfim estiver quieta, quero que ele seja coberto com um fino tecido degradável. Por cima desse pano, quero muitas folhas secas, colhidas de grandes árvores nativas.
No dia da minha partida, não quero que empenhem toda a dor do mundo no desejo de meu retorno. É chegada a minha hora, que já era esperada desde sempre.
Quero que seus corações, agora frios, sintam o ardor das chamas da vida, que aqueçam tanto até despertar seus olhos para toda a beleza que ainda existe.
Quero que esta dor de morte se transforme, amiúde, em fonte de vida, que seja como numa nascente, ou como as águas das primeiras chuvas no chão esturricado, que vem lentamente encharcando, movimentando os grãos de areia e, quando ensopam, despertam as sementes do sono pretérito para deixarem de assim ser para serem vidas e sair à procura do sol.
Neste momento, minha alma deve estar vendo tudo de cima, assim como sempre sonhei, absolutamente livre sem precisar de proteção, base ou qualquer ligação material. Embaixo, apenas o vazio frio e confortante do infinito. Decerto estarei feliz.
Acompanharei os pássaros, algumas vezes em suas cruzadas. Farei parte da seta que muitas vezes observei por baixo, onde, todos, uma hora, devem assumir a dianteira e ir em frente rompendo o ar.
Como uma criança por brinquedo, uma formiga por doce, uma mariposa por luz, estarei sempre seguindo o objeto de meu desejo, que imagino ser insaciável e nunca perca o sabor, ou uma luz que nunca se apagará. Quero estar assim, saudosamente vendo todos vocês. Peço, minha gente, um pouco mais de força. Peço mais este favor.
Quero que as mulheres da minha família, minhas eternas mulheres, saiam nos campos do lavrado a colher flores. Peço que acompanhem estas mulheres, todas as outras que acharem em mim ao menos uma ponta de dignidade, as que estiverem comigo e que consideram esta alma antes cativa.
Quero que saiam bem cedo, peguem suas cestas e encham de flores variadas. Que sejam colhidas, ainda orvalhadas, flores virgens, as mais belas e perfumadas.
Quero que vejam as belezas do nosso lavrado, que pisem a terra, que deixem seus rastros registrados nestes campos varridos pelo vento. Estes que nunca se apagarão da memória dos que os conhecem. Injustiçados, erroneamente interpretados como terras ruins, que seu capim de nada serve, que ali nada sobrevive.
Preguiçoso, como dizem do nativo que nada mais almeja que a comida e a rede. Quero que os homens, meus irmãos, meu pai e os amigos, por quem por menos faria sem medidas, saiam em busca de tronco de mixiri. Quero que tragam a lenha para uma noite inteira de fogueira. O fogo deve estar brilhante. Nesse dia, deve estar ventando e subirão ao céu as faíscas da grande fogueira.
Peço que assistam comigo a mais este pôr-do-sol e, quando ele descer, vejam as primeiras estrelas brilharem excitadas, as nuvens dispersas amanteigadas. Quero deitar no laranja, na iminência eterna do recomeço de um novo dia ou de uma nova noite. Quero deitar, nesta hora, no rubor do lusco-fusco.
Quero que os pássaros ainda me vejam quando estiverem voltando para as suas moradas. Então, me deixem ir. Ponham-me a manta-mãe sobre meu corpo e me entreguem para que eu possa estar novamente entre vós de outras formas.
Daqui, partirei logo para estar em outros cantos deste mundo. Vou me dividir, desintegrar em partículas atômicas que um dia ainda se encontrarão e farão parte novamente como sempre será.
Parte de mim vai para o mar e, enfim, vou mergulhar com os cardumes, acompanhá-los em suas rotas, percorrer seu território. Posso ir ao topo da Terra e congelar num sono hibernal, esperando novamente sentir o calor do Sol. Estarei, agora, iniciando mais uma cruzada por este velho mundo.
Minha alma já não terá paradeiro neste universo infinito e poderá estar reciclada em outro corpo. Peço que joguem a terra devagar para não destruir as flores, que agora me acompanham nesta ida. Quero ver minha família num só corpo, num só desejo, sonhando o mesmo sonho.
Quero que lembrem de mim em meus melhores dias, de quando viram o meu raríssimo e sincero sorriso, de quando sentiram de perto o afago do meu coração, que sempre acreditei existir. Sou novamente uma criança, de fato, sempre fui uma delas e sempre serei.
Quero que meu corpo alimente os filhos desta grande árvore que já passo a fazer parte, por enquanto. A fogueira deve estar quente e seus corpos, cansados, serão iluminados.
Quero que olhem para as labaredas e acompanhem as faíscas até se confundirem com as estrelas do céu. De lá, vejo a fogueira, uma bola de luz no meio da escuridão, e no céu, acendo a minha estrela para nunca mais se apagar.
Jaider Esbell (1979-2021) – Artista Plástico, Professor, Escritor.