Quem sou, quem és? Até onde chegamos

Quem sou, quem és? Até onde chegamos

No mesmo rio entramos e não entramos, somos e não somos. 1

Por Wanessa Dias Santos

narciso de caravaggio

Narciso 2

Narciso é uma pintura de Michelangelo Merisi da Caravaggio que retrata um jovem olhando profundamente para a água de um lago, enquanto ele se apoia nele. Ela retrata a história mitológica greco- romana clássica de um jovem bonito e vaidoso que se apaixona por seu próprio reflexo. Há muitas pinturas de Narciso, mas a de Caravaggio é de longe a mais famosa.

Sobre o mito: Nêmesis, o deus da retribuição, ouviu um desejo de vingança de seu amante rejeitado, e levou Narciso até um lago onde ele viu seu próprio reflexo. Narciso caiu irrevogavelmente apaixonado por sua imagem refletida na água, depois perdeu a vontade de viver, não comeu nem bebeu e acabou morrendo. Diz a lenda que uma bela flor de narciso amarelo floresceu então onde ele morreu e foi nomeado em sua homenagem. Narciso demonstra a infeliz queda de alguém que ama a si mesmo ou às suas possessões em demasia. Essa história mitológica é a origem da palavra “narcisismo”, em que alguém está fixado consigo mesmo e com seus atributos e tem um senso inflado de superioridade.

Narciso é representado sentado na beira de um lago, inclinado e fixado em seu reflexo que vê na água. Contra um fundo escuro, o contraste gritante da camisa branca e dos braços de Narciso cria a impressão de um círculo com o reflexo de seus antebraços inclinados, talvez representando o infinito escuro do obsessivo por si mesmo.

Fonte: https://arteeartistas.com.br/narciso-de-caravaggio/

RESUMO

 O apresenta uma reflexão sobre o sujeito, como indivíduo, à procura ou no esquecimento da busca do si mesmo, da sua identidade, do eu, mesmo que em essência esse eu, na literatura da psicanálise, seja uma grande ficção. Não se pretende problematizar esta questão, o que se fará é como a possibilidade de existência desse eu é atingido pela sociedade na qual ele está inserido, e de como esta articula e motiva comportamentos, de acordo com seu interesse, sobretudo, o de formatação de um si-mesmo. Essa determinação-pressão de vivência, de uma correspondência de status, seja ele qual for, muitas vezes, produz na construção de um eu, do sujeito, ora um sentimento de satisfação flutuante; ora uma angústia profunda, isto quando esse sujeito chega a pensar sobre os efeitos internos que as exigências externas o causam, já que, deve-se pontuar, que a grande massa dos indivíduos aceita sem questionamentos aquilo que a mídia, a internet, a televisão, a sociedade lhes oferece para consumo, muitas vezes mobilizando nesse sujeito à feitura de uma vida de mentiras. Parte-se, vale salientar, que já é sabido que o eu e o si mesmo já vivem em um grande tumulto, num conflito natural, conclusão esta a que Freud chegou ao dizer que o ―Eu não é senhor em sua própria casa‖. 3 Pensar, pois, diferente, seria uma grande irrealidade, uma grande fantasia. O que se trabalha aqui, não como tática simplória de denúncia do outro pelas desordens do eu e de autodefesa dele, mas se pretende afirmar que esse outro (seja ele a igreja, a , a família etc), sim, desestabiliza a procura de um eu, que no mínimo viva ou tente viver em conformidade com aquilo que ele pensa ou faz, sem ter que pagar um alto preço por isso, como, por exemplo, o de incansavelmente formular uma narrativa de si em que seja apresentado um eu que se conforme naquilo pelo qual ele é interpelado. Como corpus, para ilustrar esse indivíduo em pêndulo, inserido numa comunidade que instiga espíritos aprisionados, foram utilizados textos da literatura nacional, considerada esta um lugar que acomoda, reflete e documenta, de maneira modificada, através de uma linguagem artística, realidades sociais e humanas diversas, em tempos distintos. Constatou-se que, o indivíduo se mostra ou devolve uma imagem que depende e muito da avaliação que o outro possa ter dele. O eu  em potencial, assim, é desencorajado, perde espaço, encanta-se pela imagem recriada no espelho e estático fica e deixa de se banhar no rio ou em rios.

PALAVRAS-CHAVE: Eu, Outro, Representação, Conflito.

INTRODUÇÃO

 Chegar ao ponto de se questionar, mas no sentido de avançar e saber quem realmente é ou  ―deveria‖  ser,  na  busca  de  uma  individuação,  de  um  si-mesmo  equilibrado,  crítico  e comunitário, de um sujeito não escravizado, mergulhado numa sociedade que cobra a todo o momento desempenho, competência, que diz que nada é impossível, mesmo sendo ela altamente injusta, sanguessuga, padronizada, tecnológica-virtual, doente – pelo excesso de positividade por ela propagada –, não é tarefa das mais simples, nem mesmo chega a ser uma atividade atingida.

A busca do sujeito por uma relação verdadeira e intensa consigo mesmo encontra barreiras das mais diversas, entre elas, e talvez a mais incisiva, pode-se destacar, a ideia de que para que um sujeito seja (re)conhecido, seja visto, seja tratável, seja visível, ele tem de ser um sujeito que tenha alcançado um certo degrau de sucesso, ou que esteja empenhado profundamente em atingi-lo, ele precisa de ser um vencedor, e ser vencedor nesse contexto é, por exemplo, ser dono do próprio negócio, é ser empreendedor, é ter poder econômico, pois só assim ele entrará num mundo de iguais em consumo e só então terá uma existência significativa.

Interrogar a si mesmo, todavia, e muito, todavia, interrogar o outro (e aqui se interpreta o outro como sociedade) sobre o significado da vida, o valor das coisas e o sentido da existência, tornou-se um ato de dois extremos; ora leva os sujeitos a um desequilíbrio emocional enclausurador; ora esse ato de reflexão, não aconteça, ele é induzido de forma mecânica para outro lado, onde surgem apresentações de discursos prontos e respostas de preenchimento de requisitos para determinação e estabelecimento de relações sociais diversas, as quais, muitas vezes, as amargam, tornando-as superficiais e infrutíferas, pois visam, principalmente, a feitura e ocupação de papéis sociais para (a)firmação de posição, sobretudo de poder, desembocando em semelhanças cada vez mais individualistas e mascaradas. Sublinha-se também que, um dos motivos pelos quais as relações sociais são conferidas como aparentes e frágeis está porque elas vêm para cumprir padrões de comportamentos secularmente difundidos, tornando o externar do si para o outro um movimento de coação social. E, então, muito se torna um vazio desmedido com indivíduos doentes e vivendo num isolamento aterrorizante.

Dito isso, sublinha-se que o que se pretende aqui é discorrer sobre um olhar de como o indivíduo, o sujeito se insere ou é inserido na sociedade e sobre, principalmente, de como ele se vê, de como se apresenta, de como ele se sente parte ou não dela.

1.      A NARRATIVA DO EU COMO RE(A)PRESENTAÇÃO PARA O OUTRO: UM DILEMA SOCIOECONÔMICO E TEMPORAL

 Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser movida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas e mudavam inteiramente de vida. 4

O falar sobre si, a apresentação de si e a interpolação do que o outro seja, transforma- se num grande palco para que o eu e tu apresentem o seu espetáculo, salientando, pois, hierarquias. Busca-se chegar a um patamar e ele cobra e muito caro para ser alcançado. O eu e o tu, por isso, muitas vezes, se vestem de aparências e, a rivalidade entre o ser versus o ter, ganha exteriores poluídos. Sobre isso nos fala Debord 5:

A primeira fase da dominação da economia sobre a social levou, na definição toda a realização humana, a uma evidente degradação do ser em ter. A fase presente da ocupação total da vida social em busca da acumulação de resultados econômicos conduz a uma busca generalizada do ter e do parecer […]. Assim, toda a realidade individual se tornou social e diretamente dependente do poderio social obtido. Somente naquilo que ela não é, lhe é permitido aparecer. (p. 19).

Sobre esse viés e leitura do sujeito, produz-se, destarte, uma  ―multidão de imagens- objetos‖ que vive da sua própria contemplação e dos olhos alheios. Tal contemplação tem por finalidade ela em si, e a multidão se auto submerge:

[…] quanto mais [se] contempla, menos [se] vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos [se] compreende a sua própria existência e o seu próprio desejo. A exterioridade do espetáculo em relação ao homem que age aparece nisto, os seus próprios gestos já não são seus, mas de um outro que lhos apresenta. (p. 26). 6

Segundo o Luís Mauro Sá Martino 7, falta-nos inclusive tempo para as problematizações da subjetivação. Ele nos diz  que ―Uma vida interior plena é uma vida de reflexão plena‖,8 mas quando se chega a isto, pode ser tarde demais, tarde demais, pois o tempo externo cada vez vem sendo corroído por cobranças e circunstâncias que não suscitam no sujeito uma atitude reflexiva de quem ele é, de quem é o outro diante do mundo. Dão-se respostas sobre quem são e sobre serem passageiros dessa roda gigante chamada mundo, mas eles podem estar amarrados ao medo de que tudo pare de funcionar quando estiverem no topo ou ao receio de que de repente despenquem em qualquer volta iniciada ou mesmo se imaginam nunca terem entrado no ou num círculo significativo de existência.

2.      O EU E O ESPELHO: ATÉ ONDE SOU? 

Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua, porque até minha

fisionomia teria mudado. Como? Não sei.9

 O voltar-se para si, de forma reflexiva, é/seria uma atitude que metaforicamente se assemelha a se olhar no espelho e, a saber, distinguir aquilo que é só imagem e aquilo que é autorreflexão e reflexão, estas postas em sua complexidade. Nas narrativas literárias, é frequente esse enfrentamento, esse diálogo com o espelho, mesmo que este não reflita o objeto real, seja, pois, um fato fantasioso, mas que faz com que o sujeito sinta-se, julgue-se um eu.

Em Guimarães Rosa, por exemplo, no conto O Espelho 10, tem-se um narrador, que logo no início de sua narrativa, convida o seu interlocutor a fazer uma viagem, a viagem que ele fez em si-mesmo. Com um sinal gráfico de travessão (que aponta diálogo já começado) ele inicia a narrativa – e a finaliza com um sinal de interrogação, dando a ideia justamente de eterno diálogo, mas diálogo consigo e com o mundo:

―-   Se   quer   seguir-me,   narro-lhe;   não   uma   aventura,   mas   experiência,   a que me induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições. Tomou-me tempo, desânimos, esforços. Dela me prezo, sem vangloriar-me. Surpreendo-me, porém, um tanto à-parte de todos, penetrando conhecimento que os outros ainda ignoram‖. (p. 94).

O narrador realiza a sua viagem e diz que ela o levou a fazer juízos e discernimentos. A viagem em si pode ser lida como algo a que ele foi induzido, que não foi algo espontâneo, mas talvez necessário, mesmo que isso lhe tenha custado percalços, em seu trajeto inicial. Ele faz perguntas ao seu interlocutor, e aí já inicia o relato do seu processo-experiência de (re)conhecimento de si mesmo e coloca em debate esta atitude instigando o seu ouvinte: O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha ideia do que seja na verdade — um espelho? […] Como é que o senhor, eu, os restantes próximos, somos, no visível? (p. 94).

O visível. O que é o visível? Como nos tornamos visíveis? A partir de que e baseado em que nos fazemos ser vistos ou conseguimos ver o outro? E o que vemos ou (não) deixamos mostrar, como é feito esse filtro e o que ele objetiva alcançar? Aquilo que propago ser, é realmente aquilo que sou? Será que aquilo que o outro narra é significante para mim e aquilo que digo, faz alguma diferença para o outro, diante de nossa herança de valores, aprendizados e jogo(s) de interesses? Será que o eu e o outro conseguimos ser força o suficiente para realizarmos o transcender do simples se mostrar? NO Espelho, o narrador – talvez numa visão bem pessimista – dispara a afirmativa a seguir que, aqui, foi transformada numa pergunta: O que fazer se ―Os olhos, […], são a porta do engano‖? Diz mais o narrador, relacionando a consciência à e ao saber científico e à ação infalível do tempo:

[…] qualquer pessoa pode, a um tempo, ver o rosto de outra e sua reflexão no espelho. Sem sofisma, refuto-o. O experimento por sinal ainda não realizado com rigor, careceria de valor científico, em vista das irredutíveis deformações, de ordem psicológica. Tente, aliás, fazê-lo, e terá notáveis surpresas. Além de que a simultaneidade torna-se impossível no fluir de valores instantâneos. Ah, o tempo é o mágico de todas as traições. E os próprios olhos, de cada um de nós, padecem viciação de origem, defeitos com que cresceram e a que se afizeram mais e mais‖. (p. 95).

Enxergar-se, levando em consideração o seu e o contexto de vida do outro, pode ser uma vista que leve tempo para se ter, principalmente quando não se existe muito espaço para isso, como já dito anteriormente. Tornar-se caçador de si mesmo, não tendo como pensamento somente a defesa de quem é ou não é, mas tornar esta ação uma atitude de autodescobrimento, pode ocorrer de forma até involuntária. Num instante de momento, numa hora em que menos se espera, um espelho pode surgir para que sejamos forçados a nos vermos, e a imagem, a primeira, pode ser aquela que nunca esperaríamos observar. De acordo com a sabedoria popular, nO Espelho, ―[…] diz-se que nunca se deve olhar em espelho às horas mortas da noite, estando-se sozinho. Porque, neles, às vezes, em lugar de nossa imagem, assombra-nos alguma outra e medonha visão‖. Mas, como o assunto nestas linhas é entrar ou sair de si, e ir além disto, o narrador diz como foi a intimidação sofrida por ele pelo espelho e o questionamento deste:

Contava-lhe…

Foi num lavatório de edifício público, por acaso. Eu era moço, comigo contente, vaidoso. Descuidado, avistei… Explico-lhe: dois espelhos — um de parede, o outro de porta lateral, aberta em ângulo propício — faziam jogo.

E o que enxerguei, por instante, foi uma figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem, causava- me ódio e susto, eriçamento, espavor. E era — logo descobri… era eu, mesmo! O senhor acha que eu algum dia ia esquecer essa revelação?

Desde aí, comecei a procurar-me — ao eu por detrás de mim — à tona dos espelhos, em sua lisa, funda lâmina, em seu lume frio. Isso, que se saiba, antes ninguém tentara. (p. 96).

O  ―eu  por  detrás  de  mim‖  seria  menos  hediondo?  A  tentativa  de  conhecer  o desconhecido, o nunca pensado, o nunca visto, cortar a sangue frio a carne somente feita de imagem e chegar em uma outra revelação causaria qual impacto para a realidade de todos os dias? Qual realidade é a real e qual é a virtual? Como chegar a um entendimento ou conclusão do processo de constituição do si-mesmo e do outro? O narrador do Espelho chega a algumas conclusões equiparando, por exemplo, o eu e os outros a :

[…] não haveria em mim uma existência central, pessoal, autônoma? Seria eu um… des-almado? Então, o que se me fingia de um suposto eu, não era mais que, sobre a persistência do , um pouco herança, de soltos instintos, energia passional estranha, um entrecruzar-se de influências, e tudo o mais que na impermanência se indefine? Diziam-me isso os raios luminosos e a face vazia do espelho – com rigorosa infidelidade. E, seria assim, com todos? Seríamos não muito mais que crianças – o espírito do viver não passando de ímpetos espasmódicos, relampejados entre miragens: a esperança e a memória. (p. 98).

A presença da figura da criança pode significar o crescimento, a descoberta, um vir a ser, que só o tempo e as influências externas e experiências vividas em diferentes momentos da vida darão conta de problematizar a existência, a relação do ser com a natureza, do ser com o ter, do eu com o outro e do outro com o eu. Fica de certa forma uma lacuna em sabermos se se poderia existir um momento de nossa vida, que não o da , que pudéssemos dizer que existamos de forma autônoma? O narrador-personagem finaliza sua narrativa fazendo interrogações cruciais sobre a experiência e experimentação da vida, sobre a certeza ou não de que se está passando por ela realmente existindo ou se se passa por ela cometendo ou sendo um verdadeiro disparate:

Se  sim,  a  ―vida‖  consiste  em  experiência  extrema  e  séria;  sua  técnica  —  ou pelo menos parte — exigindo o consciente alijamento, o despojamento, de tudo o que obstrui o crescer da alma, o que a atulha e soterra? Depois, o ‗salto mortale‘

— digo-o, do jeito, não porque os acrobatas italianos o aviventaram, mas por precisarem de toque e timbre novos as comuns expressões, amortecidas… E o julgamento-problema, podendo sobrevir com a simples pergunta: — ‗Você chegou a existir?‘

Sim? Mas, então, está irremediavelmente destruída a concepção de vivermos em agradável acaso, sem razão nenhuma, num vale de bobagens?

Disse. Se me permite, espero, agora, sua opinião, mesma, do senhor, sobre tanto assunto.

Solicito os reparos que se digne dar-me, a mim, servo do senhor, recente amigo, mas companheiro no amor da ciência, de seus transviados acertos e de seus esbarros titubeados. Sim? (p. 99-100).

O ―julgamento-problema‖ colocado pelo narrador do Espelho, de Guimarães Rosa, a questão da reflexão da existência com todas as suas influências são também problematizadas por Machado de Assis, no conto Espelho: esboço de uma nova teoria da alma humana 11. Nele ocorre um encontro entre cinco personagens os quais debatem ―[…] várias questões de alta transcendência‖ 12, mais precisamente no que tange à natureza da alma. Um deles, chamado Jacobina, ao ser cobrado uma posição-opinião, a expôs com uma explicação que discorreu sobre as facetas da existência externa, sua mutabilidade, sua materialidade, e frisou, no caso dele, a dependência do bom equilíbrio dessa existência externa concomitante à existência interna:

Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro… Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. […]. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; – e assim também a polca, o voltarete, um , uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira.

Chegar ao equilíbrio da relação entre o interno e o externo, saber, sobretudo, analisá-lo, segundo Jacobina, trata-se, pois de uma necessidade, caso contrário, o existir terá complicações desconfortantes e em demasia, principalmente, no que tange ao reconhecimento do sujeito por parte do outro. Seu raciocínio baseia-se em sua própria experiência de vida, do lugar que ocupou e do que depois passou a ocupar, de como se deu esse movimento e o que apreendeu sobre as mudanças.

Numa perspectiva também acentuadamente metafísica sobre o questionar o si-mesmo, tem-se Joana, personagem central em Perto do Coração Selvagem 13, de Clarice Lispector. Num dos capítulos mais longos do romance, denominado de O Banho, que descreve de certo modo um ritual de passagem, mais um, na vida e nos pensamentos dessa personagem, ela se põe diante de muitas sensações conflitantes, confusões emocionais e problematizações sociais e psicológicas – o que, aliás, é constante no livro inteiro. Entre essas problematizações, Joana faz a seguinte reflexão, tendo como objeto simbólico, mediador ou instrumento de cogitações, o espelho, assim como o fez o narrador de Guimarães Rosa:

Quando me surpreendo ao espelho não me assusto porque me ache feia ou bonita. É que me descubro de outra qualidade. Depois de não me ver há muito quase esqueço que sou humana, esqueço meu passado e sou com a mesma libertação de fim e de consciência quanto uma coisa apenas viva. Também me surpreende, os olhos abertos para o espelho pálido, de que haja tanta coisa em mim além do conhecido, tanta coisa sempre silenciosa. Por que calada? Essas curvas sob a blusa vivem impunemente? Por que caladas? Minha boca, meio infantil, tão certa de seu destino, continua igual a si mesma apesar de minha distração total. Às vezes, à minha descoberta, segue o amor por mim mesma, um olhar constante ao espelho, um sorriso de compreensão para os que o me fitam. Período de interrogação ao meu corpo, de gula, de sono, de amplos passeios ao ar livre. Até que uma frase, um olhar – com o espelho – relembra-me surpresa os segredos, os que me tornam ilimitada. Fascinada mergulho o corpo no fundo do poço, calo todas as suas fontes e sonâmbula sigo outro caminho. – Analisar instante por instante, perceber o núcleo de cada coisa feita de tempo ou espaço. Possuir cada momento, ligar a consciência a eles, como pequenos filamentos quase imperceptíveis mas fortes. É a vida? (p. 68).

Se viver for considerado sinônimo de não somente existir, Joana questiona este ir além. A experiência de se ver (i)limitada, de não se perder, de saber que lhe falta algo que não sabe se virá através de um contorno externo, se as respostas para que não se sinta presa, como se pressionada por quatro paredes, estão alcançáveis ou estão num lugar imensamente profundo, tudo faz parte da sua inquietação, que coloca, inclusive, o mundo externo como um jogo de distração capaz de fazê-la perder-se de si mesma. A personagem vive, entre vários, o dilema ―O que importa afinal: viver ou saber que se está vivendo?‖ (p. 69). Ela, assim, tem clareza de que precisa se encontrar, que precisa surgir e buscar sua verdade, mas nela mesma, pois tudo o que escapa a isto, seguindo seu entendimento, significa se sentir solitária e sem amparo. Ela procura algo, que nem ela mesma sabe o que é, e no meio de dois extremos imateriais e que também não pertencem a eles o sentido, o significado, a essência das coisas, ela dispara: Ando sobre trilhos invisíveis. Prisão, liberdade. São essas as palavras que me ocorrem. No entanto não são as verdadeiras, únicas e insubstituíveis, sinto-o. Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome. (p. 70). 14 Joana se localiza entre montes de pedras, e eles são antes de tudo construções bem pessoais e particulares, mas que não escapam, de forma nenhuma, às normas, às circunstâncias mortais que a vida lhe impôs – como a morte dos pais, os comportamentos sociais exigidos pela sociedade, como os tios, a uma criança, a uma jovem e depois a uma mulher, casada com Otávio, e dona de casa. Por mais inclusive, que Joana veemente negue que suas interrogações são para encontrar respostas e de que tudo que lhe ocorria era fruto tão somente de suas brasas internas, ela deixa escapar que frequentemente assistia a tudo o que se passava por uma janela, e que o fora de si, que passava em frente aos seus olhos, definitivamente, não ficava isolado, separado, fora dela, mas provocava no seu interior todo o mundo de interrogatórios e impressões, principalmente quando se via totalmente inserida naquele mundo emoldurado, que inevitavelmente também era seu. Joana, pois, é movimento, Joana  sai  de  si  e  volta  e  conclue  que  por  nada  devia  esperar  ou  parar.  ―Ela  era  em  si,  o próprio fim‖. (p. 76). E este fim significava infinitamente um conhecer, um reconhecer-se, um perguntar a si, um perguntar ao mundo.

O eu, nos recortes das narrativas literárias aqui passeadas, estavam ou foram protagonistas das próprias histórias, se deram a chance de contar e recontar suas histórias, como numa sessão de análise, quando se viam diante de si-mesmo e em meio principalmente ao seu íntimo, buscaram sentido. O eu sofreu um carga muito grande de interrogação, como se o tempo todo ele tivesse que dar satisfação a si-mesmo e ao outro do que é ou que figura ser. Nas cenas diárias de nosso cotidiano, ao assumirmos alguns papéis sócias, somos induzidos a dizermos o que queremos e a sermos sempre o que as expectativas esperam de nós, o eu, portanto, ao mesmo tempo que parece poder ser variável, tem que ser extático, ou melhor, agir de acordo com as coordenadas externas, já que o tu é figura determinante para o processo de relato e exposição do si-mesmo.

3.      O MERGULHO DE TODOS: AS NORMAS NÃO SÃO O MAR

Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. 15

Justin Butler em Relatar a si mesmo – Crítica da violência ética16 nos diz, de acordo com seu ponto de vista e de outros pensadores, que a reflexão da existência está diretamente atrelada à questão da moral e da ética, mais precisamente à violência ética. Ela coloca em discussão de como se dá ou se deva ser a relação do eu com o outro, de como externar a experiência de narrar a si e de questionar o outro e quais implicações esses movimentos podem trazer. O olhar de Justin Butler complementa, apesar de ir um pouco de encontro, o olhar de Guimarães Rosa, já que este apresenta o voltar-se para si como forma de se ter certeza de que se passou pela vida e que se soube refletir sobre ela, numa perspectiva de validamento da própria existência. Assim, Butler questiona o empenho em se voltar os olhos para si e posteriormente a isto formular uma resposta em forma de relato para suprir o questionamento do outro. Butler defende a ideia de que o movimento a ser feito pelo sujeito, amparada na ideia de Cavarero 17, é de que a preocupação não se deva se centralizar em responder ―quem sou?‖, mas, sim, ―quem és?‖.

Entre outras vozes, sobretudo, no primeiro capítulo – O falar de si –, Butler lança em seu próprio discurso o de Freud, Hegel, Cavarero, numa perspectiva de confronto de ideias deles, mas também de respaldo e alicerce teóricos e traz também para o leitor, de forma bastante ressaltada, o diálogo de Adorno, Foucault e Nietzsche, os quais,   ora convergem sobre a formação do sujeito inserido num meio social regido por normas; ora divergem quando discorrem da relação desse sujeito com as normas, de como ele lida com elas e de como se dá a exposição dele ao mundo exterior, (d)o falar de si-mesmo em relação às normas e ao outro, e se este falar de si-mesmo se dá de forma reflexivamente espontânea, pressionada e responsável, e mesmo se este sujeito deve ou não questionar o si-mesmo colocando em questão se o mais acertado seria questionar ―quem é esse outro e que normas são essas?‖, ao invés de se interpelar primeiramente.

De acordo com Adorno […] não existe nenhum “eu” […] que não esteja implicado em um conjunto de normas morais condicionadoras, que, por serem normas, têm um caráter social que excede um significado puramente pessoal ou idiossincrático.

O eu não se separa da matriz prevalecente das normas éticas e dos referenciais conflituosos. […] Quando o “eu” busca fazer um relato de si mesmo, pode começar consigo, mas descobrirá que esse “si mesmo” já está implicado numa temporalidade social que excede suas próprias capacidades de narração; na verdade, quando o “eu” busca fazer um relato de si mesmo sem deixar de incluir as condições de seu próprio surgimento, deve, por necessidade, tornar-se um teórico social. (p. 11 e 12) 18

Pensando assim, pode-se aludir que o sujeito, enquanto indivíduo social, ao ser interpelado sobre determinada ação sua, responderá a esta interpelação, e na sua resposta, nesse oferecer-se, não existirá a possibilidade de aparição de um sujeito autônomo. Seu pensamento estará sempre entrelaçado e será resultado de sua formação moral, desde o princípio de suas faculdades inteligíveis de reflexão. Assim, existe, com o passar dos tempos, a produção de um sujeito e todas as suas réplicas, voltadas geralmente para satisfazer a um

―tu-outro,‖ estarão fora deste sujeito, por isso e talvez por isso, ele possa até se eximir, ou ser eximido,  da  responsabilidade  daquilo  que  expõe-relata.  Segundo  Adorno,  portanto,  ―não existe nenhum ‗eu‘ que possa se separar totalmente das condições sociais de seu surgimento‖.

Adorno, segundo Butler, por essa não separação das condições sociais do sujeito, vai além e, diz que por poder se ver colocado como efeito das normas que o circundam, pode haver  uma  despossessão  do  ―eu.  Essa  eterna  exposição  às  normas,  formação,  gestação  ou corte umbilical delas por parte do sujeito não é nenhum pouco simples, ao ponto, inclusive, de não poder se proferir que existem eus-sujeitos amorais.

Nietzsche, por sua vez – e aqui a autora faz mais um movimento diacrônico crucial -, diz que todo relato, toda resposta às condicionantes morais desse si-mesmo ao outro está regulado a um temor desse sujeito em ser punido, terror de ser julgado, mais até do que um possível sentimento de agir de maneira a produzir o bem, é o que ele chama de má consciência do sujeito. Para Nietzsche, o sujeito só pensa ou pesa suas ações, e posteriormente se exibe dando um retorno a quem lhe interpela, por se sentir culpado, por acreditar que todos os resultados de sua existência, os maus resultados, principalmente, propícios a juízos, ocorrem pela sua única e exclusiva culpa. O ―eu‖ relata a si-mesmo pela sua má consciência, como dito anteriormente. Destarte, 19

[…] a teoria de Adorno tem uma ressonância com a de Nietzsche, que destaca a violência da “má consciência”, a qual dá origem ao “eu” como consequência de uma crueldade potencialmente aniquilante. O “eu” volta-se contra si mesmo, desencadeando contra si mesmo uma agressão moralmente condenatória, e, com isso inaugura-se a reflexividade. (p. 13).

Já a visão de Foucault sobre as normas e o sujeito é a de que este deva ser o centro da relação, como no conto de Guimarães Rosa, mas numa posição de questionador, de crítico de todo o regime de verdade ao qual ele é engendrado, o que por sua vez é uma atitude no mínimo desconfortável, já que ele poderá colocar em xeque todo um/o referente de preceitos no qual ele possa vir ou não a ser reconhecido pela sociedade.

Para Foucault, o questionamento de si torna-se consequência da crítica […]. Também ressalta que esse tipo de questionamento de si envolve colocar-se em risco, colocar em perigo a própria possibilidade de reconhecimento por parte dos outros, uma vez que questionar as normas de reconhecimento que governam o que eu poderia ser, perguntar o que elas deixam de fora e o que poderiam ser forçadas a abrigar, é o mesmo que, em relação ao regime atual, correr o risco de não ser reconhecido como sujeito, ou pelo menos suscitar as perguntas sobre quem sou (ou posso ser) ou se sou ou não reconhecível. (p. 26). 20

Assim como Adorno, Foucault não nega a relação inevitável do eu com a sociedade e com as normas que tentam fundamentá-la. Não há como se isolar ou criar um mundo paralelo, recluso, sem o envolvimento com o já está construído historicamente. Agir sobre si e sobre o outro, levantar conjecturas, traçar um caminho de busca de identidade, de identificação ou mesmo de desatrelamento de uma requerida, é um comportamento, portanto, social, além obviamente de se tratar de questão de sobrevivência e convivência. O existir do eu e do outro, o tratamento ético entre esse ―nós‖ só é possível se for levado em consideração os quadros normativos existentes, os cenários culturais existentes, mesmo que seja para contestá-los, o que não se pode é ignorá-los. O próprio reconhecimento social mútuo está intimamente ligado a esse reconhecimento de existência de mundo já configurado.

Sobre  essa  ―troca‖  de  reconhecimentos,  conformada  pelas  normas,  Butler  faz  a seguinte colocação:

Submeto-me a uma norma de reconhecimento quando te ofereço reconhecimento, ou seja, o ―eu‖ não oferece o reconhecimento por conta própria. Na verdade, parece que o ―eu‖ está sujeito à norma no momento em que faz a oferta, de modo que se torna instrumento  da  ação  daquela  norma.  Assim,  o  ―eu‖  parece  invariavelmente  usado pela norma na medida em que tenta usá-la. Embora eu pense que estivesse tendo uma relação com o ―tu‖, descubro que estou presa em uma com as normas. (p. 28).

Dessa forma, todo reconhecimento mútuo possível e possibilitado é resultado do conjunto de regras sociais, que estão no exterior de todo indivíduo e que dependendo dos interesses deles, de nossos interesses, sejam eles quais forem, estão determinados por uma padronização de comportamento. Essa padronização pode gerar ações espontâneas ou acuadas que no final das contas podem se parecer tanto que quase se aparenteiam, todavia como dito anteriormente, a passividade não é colocada aqui como antônimo de ser ativo, pois a ação está comprometida em atender padrões e aí que a passividade se mostra, para se manter uma aparência. A submissão, a exposição, portanto, daquilo que se é ou se externa ser para o reconhecimento do outro e vice-versa está, assim, condicionada e também ultrapassa o contato isolado desse ―eu‖ e o ―outro‖, do duplo solitário.

Hegel é um dos pensadores que sublinha essa crítica de que o quadro de referência que estipula ou delimita o reconhecimento do si-mesmo e do outro está localizado fora dele, de forma extática. Hegel tem uma visão impessoal das normas. Nem o ―eu‖, nem o ―outro‖ são os responsáveis por categorizar um ao outro como sujeitos artífices das normas. Foucault, nesse aspecto, dialoga com Hegel quando interroga ―O que ‗eu‘ sou, então, eu que pertenço a essa humanidade, talvez fragmento dela […] que está sujeita ao poder da verdade em geral e das verdades em particular?‖. (p. 44). 21 Para o filósofo alemão, a relação de reconhecimento entre dois sujeitos, ultrapassa a ela mesma, a troca diádica é o além deles.

  • troca diádica refere-se a um conjunto de normas que excede as perspectivas daqueles envolvidos na luta pelo reconhecimento. Quando perguntamos o que torna possível o reconhecimento, descobrimos que não pode ser simplesmente o outro capaz de me conhecer e reconhecer como dotada de um talento ou uma capacidade especial, pois esse outro também terá de se basear em critérios, ainda que apenas implicitamente para estabelecer o que será e não será reconhecível sobre si-mesmo para todos, um quadro de referência também para em ver e julgar quem sou. (p. 31).22

Mas esse quadro de referência, aquilo que já existe, desde o nascimento do sujeito, não exclui sua individualidade, sua personalidade– ―ninguém pode ser exposto em meu lugar, e por isso sou insubstituível‖, 23 p. 47 –, cada sujeito é um indivíduo, e assim é e pode ser produtor de experiências, de pensamento e de desconstrução de mundos, mesmo inserido numa sociedade quebra-cabeça ideal. E assim os indivíduo, agindo sobre si mesmos e sobre os outros, com sua formulação e formação de vida se relacionam e trocam reconhecimento, e reconhecimento seletivo, de certa forma.

Sobre isso, Butler coloca de maneira bem didática dois apontamentos:

É preciso fazer pelo menos duas observações […]. A primeira tem a ver com nossa dependência fundamental do outro, o fato de que não podemos existir sem interpelar o outro e sem sermos interpelados por ele, e que é impossível nos livrarmos da nossa sociabilidade fundamental, por mais que queiramos […] A segunda observação limita a primeira. Por mais que cada um de nós deseje o reconhecimento e o exija, nós não somos como outro, e, da mesma maneira, nem tenha argumentado que ninguém pode reconhecer o outro apenas em virtude de habilidades críticas ou psicológicas especiais e que as normas condicionam a possibilidade de reconhecimento. Acontece que, na verdade, nós nos sentimos mais reconhecidos de maneira apropriada por uns do que por outros. (p. 35 e 36). 24

Ser naturalmente diferente parece ser uma tarefa simples, comprometer meu discurso, final, é óbvio que não somos iguais, cada um é cada um, mas por que será que a sociedade quer nos disciplinar tanto, quer nos fazer iguais? A mídia, a internet, livros, revistas?

Conseguir o equilíbrio diante das condicionantes das normas, com a rigidez imposta pelas políticas de reconhecimento, de encaixe social, tratando com sanidade à busca exaustiva de um eu que seja capaz de alcançar o topo, de ser competitivo, de alcançar metas, de ser empreendedor, de ser ativo, de conseguir o desempenho esperado, de abraçar o outro igual e repelindo o eu diferente, de não fugir à regra, às disciplinas e não sofrer com as camaleônicas condenações, num jogo pesado de ataque e defesa, tudo isso através de uma velada violência ética, pode causar mais, uma irreparável violência neuronal acarretada pela violência da positividade, segundo Byung-Chul Han em A sociedade do cansaço. 25

Vivemos atualmente, no século XIX, numa sociedade cuja violência é neuronal. De forma dissimulada com outra forma de abordagem e até de linguagem as pessoas são forçadas a acreditarem que possuem alto poder de desempenho, produtividade e podem assim serem suas próprias empresárias.

Antes o que se tinha era uma sociedade que sofria de violência viral, o que pode ser perfeitamente comprovado através de inúmeros estudos. Houve assim, uma mudança na paisagem patológica da nossa sociedade. O outro, antes visto, como rival, inimigo, estranho, que merecia ser atacado, exterminado, morto, num processo altamente imunológico, é só quando se pensa em Guerra Fria e no avanço científico de combate às infecções para defesa do próprio corpo. Pode-se afirmar que o paradigma imunológico foi determinante nesses séculos. Pela defesa, afasta-se tudo que é estranho. O objeto da defesa imunológica é a estranheza como tal. Mesmo que o estranho não tenha nenhuma intenção hostil, mesmo que ele não apresente nenhum perigo, é eliminado, em virtude de sua alteridade. (p. 23). 26

Percebe-se que essa pesquisa, o estudo do eu e sua relação com o outro perseguiu e persegue muitos filósofos, escritores literários, sociólogos, médicos etc, desde muito tempo, e o intrigante até hoje é a possibilidade ou inexistência de um eu e em que magnitude o outro influencia na construção ou desconstrução de um si-mesmo equilibrado emocionalmente. Tantas são abordagens que analisam comportamentos dos indivíduos e narrativas pronunciadas que talvez não procurem respostas, mas que problematizam o assunto para se refletir o todo social formado por partes comuns, parecidas ou espaçadamente diferentes.

4.  CONCLUSÃO

 É óbvio que a discussão proposta nesse artigo não se esgota, a temática é instigante e propulsora de outras abordagens que invadem vários campos de conhecimento e de estudo do comportamento humano. Sintomas, características, comportamentos, em especial os patológicos, não foram aqui conceituados ou aprofundados, até porque não era uma intenção. O que se trouxe foi mais uma contribuição, com aporte de textos literários, para somar ao debate de como o conhecimento do eu e construção dele, dependendo da pressão que ele sofre, pode ser concebida ou recebida como ação consciente por parte desse sujeito, de maneira, no mínimo inteligível, para que não se torne escravo, um eu desnorteado fruto de um sistema que só cobra e propaga positividade, desempenho e sucesso. A figura desse outro como observador e cobrador, que parece não fechar os olhos, em eterna vigilância, que estipula padrões é determinante na relação interpessoal, pois a depender da violência que ele empreende sobre os indivíduos, estes, comprimidos, esgotam-se num si-mesmo confuso, que se veste daquilo que lhe é ofertado, muitas vezes sem questionar absolutamente nada, nem sobre quem se é ou quem é esse outro que dita como se deve pensar e ser. Teve-se como conclusão de que entender dessa influência e força do outro sobre o eu, gera um conflito angustiante desse eu e esta dupla conclusão, não se pretende nesse trabalho que sirva, de forma alguma, uma estratégia de defesa que apenas culpa o outro pela instabilidade do eu, mas sim o de afirmar que se trata de uma condicionante quando não questionada, estabelecendo-se, assim, um cenário de violência ética, de ausência dela e fere, pois, a grandiosidade da identidade, da individualidade, do surgimento e arranjo do ser, do eu, mesmo que exista uma literatura vasta a afirmar que a possibilidade de existência do eu não seja incrível.


NOTAS

1 OLIVEIRA, Alex. Heráclito – Fragmentos ―Sobre a Natureza‖. (1973. p. 6).
2 NARCISO, DE CARAVAGGIO (Narciso. Caravaggio. 1599 – Óleo sobre tela (110 x 92cm) – Localização: Galeria Nacional de Arte Antiga, Roma – Itália).
3 FREUD, Sigmund. Uma dificuldade da psicanálise. 2010, p. 186.
4 LISPECTOR, Clarice. ―Se eu fosse eu‖, do livro A descoberta do Mundo.
5 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
6 Ibidem.
7 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=oY6UHNiWNbU / Acesso em: 21/10/ 2021.
8 Ibidem.
9 LISPECTOR, Clarice. ―Se eu fosse eu‖, do livro A descoberta do Mundo.
10 ROSA, Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
11 ASSIS, Machado de. Contos: texto integral. São Paulo: Ed. Moderna, 1983.
12 Ibidem.
13 LISPECTOR, Clarice. Perto do Coração Selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
14 Ibidem.
15 LISPECTOR, Clarice. ―Se eu fosse eu‖, do livro A descoberta do Mundo.
16 BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: Crítica da Violência ética. Trad. Rogério Bettoni. 1ª Ed. Belo Horizonte: Ática, 2017.
17 Ibidem.
18 Ibidem.
19 Ibidem.
20 Ibidem
21 Ibidem.
24 Ibidem.
25 HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Rio de Janeiro. Vozes: 2015.
26 Ibidem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSIS, Machado de. Contos: texto integral. São Paulo: Ed. Moderna, 1983.

BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: Crítica da Violência ética. Trad. Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Ática, 2017.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

FREUD, Sigmund. (2010). Uma dificuldade da psicanálise. In P. C. Souza (Ed. e Trad.), História de uma neurose infantil (―O homem dos lobos‖), Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920), Obras completas (Vol. 14). São Paulo: Companhia das Letras. (Obra original publicada em 1917a).

HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Rio de Janeiro. Vozes: 2015. LISPECTOR, Clarice. Perto do Coração Selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. LISPECTOR, Clarice. ―Se eu fosse eu‖, do livro A descoberta do Mundo.

OLIVEIRA, Alex. Heráclito – Fragmentos ―Sobre a Natureza‖. 1973. ROSA, Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

Wanessa Dias – Filósofa e escritora. Capa: Narciso Vega – Releitura. Pinterest. 


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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