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Um dia na Lagoa Feia: A vida dos pescadores

Um dia na Lagoa Feia: A vida dos pescadores

O relato a seguir nos leva a conhecer um pouco mais sobre a história da Lagoa Feia, esse patrimônio natural de , e sobre a vida dos pescadores que por ali habitavam ou trabalhavam até o final dos anos cinquenta. O texto faz parte do livro “Álbum de Formosa – um ensaio de história de mentalidades”, obra póstuma do escritor formosense Alfredo A. Saad, publicado em 2013, dois anos depois de sua morte.  Vale a pena conferir:

O ano de 1958 pode ser considerado o último do “ciclo da pesca” na Lagoa Feia.

Ainda naquele ano, lá viviam inúmeras famílias de pescadores. Não tantas quantas alguns anos antes, mas bastantes para animar a região com a agitação própria de uma pequena comunidade harmônica.

Desde o início da colonização na região, muito gente deve ter optado pela comida certa, ao invés de aguardar que o acaso a presenteasse com o ouro que diziam existir em Santa Luzia, em Paracatu e em outros locais próximos.

Aqueles que escolheram a Lagoa Feia, podiam contar, então, com os bagres, as traíras, as piabas e, nas margens, os jacarés, todos encontrados em grande quantidade por ali. Em torno da Lagoa Feia, não havia fome.

Os moradores da Lagoa Feia constituíam  uma comunidade típica de pescadores pobres, sem outro meio de sustento que não os peixes ali pescados. Eventualmente, o em torno poderia oferecer oportunidades para coletas de frutos.

Parte daquilo que era obtido servia para o escambo, ou para a venda, de porta em porta, no arraial e, posteriormente, na cidade. Era comum, até o início dos anos cinquenta do século vinte, encontrarem-se, ao amanhecer, crianças e adultos trazendo traíras recém-pescadas para abastecer a cidade. Durante cerca de cento e cinquenta anos as coisas aconteceram assim.

Na década dos cinquenta, porém, lentamente a quantidade de peixes começou a reduzir-se, por força da crescente do Córrego Josefa Gomes, o formador da Lagoa, pois a cidade foi crescendo, até que as casas da periferia alcançassem a Volta do Brejo, contaminou suas águas com os dejetos humanos e o lixo descartado daquelas habitações.

Também contribuíram a destruição da vegetação das margens e o consequente assoreamento da cava da Lagoa, o aumento do número de submoradias em favelas nas proximidades, e, consequentemente, a pesca excessiva. 

Lentamente, a Lagoa começou a agonizar e, com ela, a população marginal ali residente. Em algum tempo, os ranchos de pau a pique, coberto de capim, esvaziaram-se; do mesmo modo, rapidamente, os abrigos da canoas, também cobertos de capim, tornaram-se ruínas inúteis – não existiam canoas de pescadores para serem ali guardadas. 

Quando Brasília começou a ser levantada, em torno de 1957, a Lagoa Feia foi descoberta pelos imigrantes trabalhadores na construção da Capital e que, nos fins de semana, tornavam-se ávidos por lazer. A Lagoa se enchia de carros, surgiram botecos que serviam bebidas e comidas, a vegetação degradou-se, devido aos acampamentos, os terrenos mudaram de mãos, e a população residente não mais encontrou abrigo nas suas margens. 

Na Lagoa Feia, no final da década, praticamente não havia mais lugar para pescadores pobres. O ano de 1957, ou, no máximo 1958, foi o ano limite. Depois  a extinção daquela seria previsível – e ela realmente durou pouco tempo.

Além da população residente, havia uma população flutuante, composta por pescadores diletantes que vivam em Formosa e tinham a Lagoa como seu local de lazer. Às margens da água, assim, havia uma comunidade adventícia que lá se reunia, nos fins de semana,  ou nos feriados, ou, às vezes, apenas à noite, mesmo nos dias de trabalho na cidade.

Embora aparentemente solitária, durante o dia, à noite, a Lagoa se animava, com dezenas de canoas, indo e vindo, com conversas distantes que o silêncio noturno e a boa condução do som pela água tornavam perfeitamente audíveis.

Durante toda a noite, viam-se bruxuleios de lamparinas, ou clarões de lanternas elétricas, demarcando os locais onde estavam canoas estacionadas, com os pescadores à espera das traíras e das tubaranas. Como as traíras são peixes carnívoros, o período, antes do anoitecer, era ocupado pelos pescadores para a preparação de iscas feitas de lambaris, as iscas prediletas eram as minhocas muitas vezes trazidas de casa, na cidade.

Após uma noite inteira imóveis, dentro de uma canoa estreita e desconfortável, os pescadores costumavam reunir-se, ao amanhecer, para o café e para a troca de histórias.

Nessas horas, nos anos quarenta, reuniam-se Theobaldo de Carvalho e seu irmão, José de Carvalho, descendentes dos primeiros formosenses que, de pescador, o primeiro se tornara caldeireiro; Thiago Pereira da Silva, que antes fora pescador profissional, mas mudara de atividade e de local de residência e se tornou sapateiro, e outros.

Mesmo os pescadores citadinos, como José Abel, talvez o último deles, João Gebrim e Vicente Lobo se confraternizaram com os pescadores da Lagoa. O café da manhã, assim, era o pretexto para reuniões de prosa animada e cheias de alegria. 

João Gebrim, um imigrante sírio que chegou a Formosa, pouco depois do início do século vinte, era comerciante e possuía uma loja de miudezas, na praça da matriz. Proprietário de uma área, às margens da Lagoa, o Sr. Joãozinho cego, como era denominado, nunca deixava de comparecer para a pesca, nos fins de semana, ou em qualquer dia, se lhe desse vontade. 

Ele era um velhinho pequeno, murcho, cheio de sotaque árabe, extremamente cordial e alegre, amigo de todos os pescadores que vivam nas redondezas, e sua loja era um ponto de reunião daqueles que a buscavam para buscar anzóis, linhas, chumbadas, tralhas de caça e de pesca e qualquer outra bugiganga imaginada – a loja de Joãozinho Gebrim tinha tudo, segundo ele  mesmo afirmava. 

A sua cada na Lagoa convertera-se também em ponto de reunião, pois era para ele prazeroso poder oferecer o café da manhã aos colegas. As diferenças de língua e de cultura não serviam de obstáculo ao congraçamento do velho imigrante, sem tradição de pesca, com os rudes pescadores formosenses.

Aproveitando-se da facilidade de propagação do som, através da água,  e também do silêncio que cercava a Lagoa, durante toda a note, o Sr. Joãozinho  coava o café, antes do amanhecer, e, da porta da sua casa, chamava seus colegas: “Pescadores, venham tomar o café”.

Apesar da voz enfraquecida, o chamado era ouvido longe, e, em pouco tempo, dezenas de canoas juntavam-se à sua porta. Enquanto trocavam novidades da noite, todos bebiam o café que, se não era um primor de sabor, era oferecido como uma forma de facilitar o congraçamento dos colegas de ofício e os amadores residentes na cidade.

O Sr. João Gebrim, exatamente porque plenamente aceito como um membro do grupo, era objeto de gracejos e de brincadeiras, proferidas ou preparadas pelos companheiros de pescaria, que sobre ele inventavam histórias e anedotas. 

Diziam que uma tarde o Sr. Joãozinho comunicou à mulher, a Dona Marianinha, de pouca conversa e nenhuma paciência, que iria “dar uma chegada na Lagoa”. – “Já vai tarde!” respondeu seriamente a esposa. E o Sr. Joãozinho, talvez mal ouvindo a resposta, ou talvez fingindo-se de desentendido, explicou: – “Não é tarde, não! Dá tempo de pescar algumas piabas…”

Certa madrugada, em torno do ano de 1955, já próximo do fim da vida, o Sr. João Gebrim preparou o café e, como sempre o fazia, chamou pelos amigos. Quando chegaram, os convidados perceberam, constrangidos, que o velho, já sofrendo gravemente dos olhos, despejara o café no chão, ao invés de deixá-lo escoar no bule. 

Não havia café para ser bebido. Embora o incidente tenha sido recebido com gracejos e gargalhadas, ele era um sintoma claro de que o velho não mais ofereceria o seu cafezinho muito estimado. Com ele, foi-se embora mais um traço da cultura pescadora de Formosa, que já se encaminhava para o fim.

Com a inauguração de Brasília, o Exército tomou posse das terras que se estendiam do lado leste da Lagoa. E os bem-intencionados militares, sem consulta a ecologistas que compreendessem a complexidade daquele ecossistema, aparentemente simples, para aumentar a piscosidade do seu local de lazer, lançaram às águas tilápias alienígenas. 

Lagoa Feia jornalismo.iesb .br 1Foto: jornalismo.iesb.br


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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