Ferreira: Gal era o grito contra a ditadura e a moralidade careta

Dandara Ferreira: “Gal era o grito contra a ditadura e a moralidade careta”

Em “Meu Nome é Gal”, filme que conta a dos primeiros anos de Gal Costa, a diretora Dandara Ferreira renova o olhar sobre o tropicalismo e as décadas de 1960 e 1970. Leia resenha após a entrevista.

Por Fundação Perseu Abramo

Entre as estreias de “O Nome Dela é Gal” e “Meu Nome é Gal” há uma distância de seis anos e uma cineasta. O nome dela é Dandara Ferreira, que dirigiu o documentário (2017) em quatro episódios e, logo em seguida, engatou num projeto de prosseguir contando a história de Gal Costa, desta vez em forma de um longa de ficção. De acordo com o plano, a vida de Maria da Graça Penna Burgos Costa, nascida em Salvador em 26 de setembro de 1945, seria narrada, com a participação da cantora, em pelo menos três partes. 

O filme que estreou em 12 de outubro está delimitado por dois marcos importantes na carreira de Gal: da saída de Salvador em 1965 à estreia do show “Fa-Tal – Gal a Todo Vapor”. Parece curto demais, para uma carreira mais de quase seis décadas, mas é justo o período em que se arma a Tropicália, da qual ela seria a voz mais distintiva. Para Dandara Ferreira, que recebeu a reportagem da revista Focus Brasil na semana de estreia do filme, essa era uma maneira abordar esse período formativo e totalmente decisivo na carreira artística de Gal Costa, ao mesmo que traçar uma linha narrativa que desse conta dos dilemas e das crises de uma jovem mulher.

“O filme é justamente isso, sobre essa menina tímida que acaba entrando num dos movimentos culturais, estéticos, políticos mais importantes daquele período, que é a Tropicália; sobre como que ela enfrentou, como que ela lidou com isso, com a ditadura, com a moralidade”, afirma Dandara. A diretora, que também faz um pequeno papel no filme, como ninguém menos que Maria Betânia, conversou com a reportagem da revista Focus sobre o filme que fez, em duas semanas, mais de 100 mil espectadores. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.

Focus Brasil — Assisti o filme no cinema aqui e fiquei impressionada com a quantidade de jovens na plateia – e que aplaudiram o filme quando acabou… 

Dandara Ferreira – É, isso que é bom, essa molecada se conectando com Gal. Na verdade, desde que Gal gravou “Recanto” () que percebo que tem uma juventude se conectando com a música de Gal. E ela ficava muito feliz com isso. Eu lembro que, na época que ela fez o “Recanto” com o Caetano, um disco novo, que marcava um retorno dela aos palcos, ela ia fazer um show no Circo Voador, por sugestão do Moreno.  Ela ficou meio na dúvida, achando que os jovens não iriam ao show dela. Depois, ela comentou como ficou impressionada de ter restabelecido uma conexão com a juventude… A juventude se conecta com Gal. 

— Eu diria que pelo menos uma explicação quase óbvia e outra nem tanto.  A música pop (e aí nisso eu incluo a música popular brasileira) vive um pouco de “eterno retorno”: a cada 20 ou 30 anos, alguém redescobre uma tendência incrível de 20 ou 30 anos atrás. A outra é que a Gal que virou “a maior cantora do Brasil” tinha mesmo uma potência juvenil no canto dela. A escolha de Sophie Charlotte para protagonista, uma jovem atriz global, obedeceu a algum cálculo no sentido de atrair essa audiência?

— Não, não teve, Bia. Foi coincidência total. Esse projeto tem seis anos e foi de lá para cá, foi que Sophie Charlotte, que já se destacava como uma atriz promissora, ficou ainda mais popular. E foi ainda mais recente, por causa desses últimos trabalhos dela, essa novela “Todas as Flores”. A Gal sempre disse que ela era uma pessoa intuitiva, mas acho que foi também uma intuição minha. Na hora que fomos montar o projeto, eu pensei na Sophie, me veio a Sophie, não sei por quê. Se você olha para a Sophie, não é a aparência física que remete ela à Gal, ou pelo menos, não é a primeira coisa que chama a atenção.

Mas me veio a Sophie na cabeça, eu acho que veio também por causa de um filme que ela fez chamado “Serra Pelada”, era um papel dela que não era tão grande, ela não era a protagonista, mas a personagem dela tinha uma expressão corporal e uma sensualidade que a Gal também tinha, principalmente nesse recorte de tempo do filme. Acho que isso ficou na minha cabeça.  Eu não sabia nem que Sophie sabia cantar. E aí quando eu liguei para a Gal e falei que estava pensando na Sophie, a Gal falou “puxa, excelente escolha”. E ela falou mais duas coisas: a primeira era que Sophie tem uma doçura no olhar que ela tinha também na mesma idade. E também mencionou falou que a Sophie tinha um timbre muito próximo ao dela. Foi aí que perguntei: “mas como é que você sabe?” Gal me contou que tinha visto ela cantando “Sua Estupidez” com Roberto Carlos. Quando eu vi esse vídeo, num especial de final de ano, foi que rolou uma conexão mesmo. Liguei para ela: “Sophie, eu dirigi um documentário da Gal, agora estou com esse projeto de ficção”. Ela na hora virou e perguntou: “Que dia a gente começa?” Foi assim.

— E essa escolha que você me relata como uma sucessão de acasos mais provou sair uma escolha acertada?

— Muito. É curioso, porque, no começo, logo que foi anunciado o filme, as pessoas apontavam mil coisas: ela não é baiana ou não parece fisicamente com a Gal. E eu estou vendo que agora as pessoas se impressionaram bastante. Pode ser que, no primeiro olhar, Sophie não se pareça com Gal, mas Sophie trouxe, até por ser tão boa atriz, uma coisa de corpo… Porque quando a gente fala de Gal, a gente fala muito da voz. Gal é a voz, mas Gal é corpo também. Gal sempre se comunicou através do corpo. Inclusive nesse recorte que a gente está falando, no final dos anos 1960 para os 1970, ela se tornou a voz política, não só por causa das músicas, mas também pela comunicação estética do seu corpo em cena. E Sophie trouxe isso. Teve um dia que a gente estava filmando uma cena, aquela festa no apartamento dela já ali naquele período do “Fa-tal”, ou seja, em 1971, que Sophie começou a fazer umas movimentações que me deixaram emocionada no set de filmagem. Precisa dizer que sou uma pessoa muito conectada com Gal, conheço bastante, sou fã mesmo. E falei: “gente, que impressionante como que ela trouxe na sutileza esse corpo de Gal”. E nesse sentido, no filme tem esse tempo de ela virar a Gal. O filme é justamente isso, sobre essa menina tímida que acaba entrando num dos movimentos culturais, estéticos, políticos mais importantes daquele período, que é a Tropicália; obre como que ela enfrentou, como que ela lidou com isso, com a ditadura, com a moralidade. Também é a história de uma gênese, a transformação da Maria da Graça em Gracinha e daí para a Gal Costa. Quando ela chega, ela ainda é essa menina tímida, joãogilbertiana, que aí se transforma em tropicalista. É uma transformação muito grande, que exige bastante dela e que ela vai correspondendo. Logo quando a gente começou o projeto, eu já tinha toda a pesquisa ainda do meu documentário, que serviu de base para o projeto agora. E eu sempre mostrava para a equipe umas imagens da Gal. É muito surpreendente lá no começo mesmo, quando ela começou ali nos programas de televisão, nos primeiros festivais… Você vê que Gal está cantando com ombro totalmente curvado. Ela não toca no microfone, parecendo ter medo do microfone. Aí já no “Divino Maravilhoso”, você já vê a transformação. E no “Fa-tal”, então ela já está com muita intimidade. Esse microfone, ela roda com ele, ela anda com ele, está íntima do seu instrumento e ela já mostra uma presença de palco que é muito chocante. E a Sophie foi trazendo essa transformação no corpo e na voz também. A voz, no começo, é um pouquinho mais doce, depois começa essa fase mais tropicalista, tem o gritar… O grito da Gal era muito para a , uma resposta a ela.

— Por que você definiu exatamente esse recorte para o primeiro episódio? 

— Então, Bia, porque normalmente a cinebiografia sempre tenta contar a vida inteira do personagem, do artista. E você acaba nunca se aprofundando muito, porque é muito difícil você em uma hora e meia, duas horas, você contar a história de uma vida inteira, todas essas vivências. Então, desde o começo, desde o princípio, a gente sempre partiu de que deveria pensar no recorte. Para mim, eu especificamente sou muito fã da Tropicália. Fora a Semana de 22, a Tropicália foi… É um movimento cultural, estético, artístico, político, entre os mais importantes para a cultura brasileira. Então, não tinha como a gente não contar essa história sem passar pela Tropicália, até porque Gal se tornou uma personagem importante da Tropicália.  Foi uma das principais vozes femininas, pelo menos foi a voz feminina da Tropicália, foi Gal. E a gente também, esse roteiro, esse filme-projeto também demorou muito por causa do roteiro, porque era muito difícil a gente contar essa história, porque Gal, diferente, por exemplo, de Elis, cuja história tem muitos marcos externos. Gal é muito uma transformação interna e isso é muito difícil você colocar em cinema, é muito difícil. Esse roteiro ia para lá, ia para cá, ia para lá, ia para cá, e a gente não conseguia ter esse roteiro. Na ideia inicial, o filme começava na Bahia, tinha esse ano 60, 70 ali, essa ida para o Rio de Janeiro, , e terminava no Gal Tropical, ali na fase dela de sucesso já nos anos 1980. Só que a gente viu que não estava encaixando, não estava, o filme já terminava ali, essa história que a gente queria contar, justamente disso, dessa gênese, dessa origem, não só dessa artista, mas acho que teve uma transformação também pessoal da Gal ali, que é justamente nesse recorte, nesse período. O que vem depois já é A Gal Costa, mas a gente queria contar como é que surgiu, de onde vem essa transformação dela ali, que é a do recorte desse filme. E aí foi muito louco, porque a primeira vez que Gal foi na Paris Filmes (a produtora) para ouvir sobre o projeto… Quer dizer, eu já conversava bastante com ela, a ligação do projeto era muito minha e dela, a gente trocava mensagens… Mas ela foi logo no começo, na Paris, para poder ouvir, para poder conhecer as outras pessoas que estavam envolvidas no projeto. E tinha esse pedaço dos anos 80 ainda. Aí tivemos uma pandemia, uma demora para a feitura do roteiro, e em 2021, a gente retomou o projeto. Fomos na casa dela, a gente ainda estava em pandemia, para apresentar o novo recorte, para apresentar o novo projeto, porque nunca mais tínhamos falado muito mais sobre o projeto. Ela só sabia algumas coisas porque a gente ficava se falando, mas não pela produtora, não numa relação formalizada. E aí ela chegou no cantinho para mim e falou: “que bom que tirou os anos 80, eu não estava feliz com isso”. Acho que ela entendeu que realmente, não que não fosse bom os anos 80, mas acho que Gal tinha uma consciência que realmente esse filme teria que terminar ali no Fatal, porque é ali, a gente está falando disso, desse começo dessa artista, dessa mulher, dessa transformação também ali de uma menina, ela fala isso, que no Divino Maravilhoso ela entra menina e sai uma mulher, ela se define nesse momento. Ou seja, já era uma história suficientemente densa essa transformação dessa menina e mulher, dessa menina tímida que encara a Tropicália. E quando o Gil e o Caetano são exilados, ela segura com toda a firmeza, fica com essa voz política, essa voz de ali no “Fa-tal”.

Isso é notável, porque realmente o disco “Fa-tal” é um ponto de inflexão na MPB: um álbum conceitual duplo e ao vivo; com repertório completamente destrambelhado no melhor sentido, porque quase que cabe tudo em termos de história da música popular brasileira.  Nesse sentido, tem  uma coisa bem  importante que o filme recoloca, que é ela Gal Costa,  quem segura a Tropicália enquanto Caetano e Gil estão exilados. 

— Isso. Exatamente.

— Agora, eu senti um pouco de falta de ver mais como a turma que ficou, ou seja, Tom Zé, Macalé, mais Torquato Neto e Wally Salomão foram decisivos para essa Gal quase pós-tropicalista.  Até porque é uma turma que ficou mais no bastidor, nem todo mundo conhece… 

— Exatamente. São eles que botam Gal para frente, todos os amigos, em cada encontro… É isso que você está falando: esse filme, embora tenha uma explosão desses personagens importantes, icônicos, às vezes pode ser confundido com uma história documental desse período, mas para mim, para o filme, eles estão lá porque, nessa época, Gal conviveu com essas pessoas. Só que o filme ficou o tempo inteiro muito Gal – e a gente sempre pensou muito nisso. É uma câmera que está muito próxima da Gal. Mas todos os encontros, todas essas relações foram muito importantes para levantar a Gal, para essa transformação da Gal.  Não só o que estava acontecendo externamente no país, mas cada amigo… Você vê que ela tem sempre um encontro pontual. É com o Gil, é com o Caetano, é com a Bethânia. E cada um desses foram muito importantes para levantar a Gal.

Só um parêntese aqui, antes que eu esqueça e isso eu ainda não falei em nenhum nenhum lugar. Você falou da importância do “Fa-tal”. O Fatal também para mim, tive uma relação muito próxima, afetiva e tem várias homenagens ali para meu pai (Juca Ferreira). Aquela cena do filme em que o Wally fala para a Gal dos militares foi muito baseada numa história que meu pai me contou e que eu não sabia. Só soube na época que comecei a fazer esse projeto e aí meu pai me contou. Essas histórias ali da ditadura, meu pai não gosta muito de falar, então não sei muita coisa. Mas aí ele me contou que à época do “Fa-tal”, ele morava no Rio e estava na luta armada. E meu pai era muito fã da Gal. Quando ele viu que ia ter o show, ele queria ir de qualquer jeito, mesmo com todos os amigos alertando que seria perigoso, porque provavelmente os militares iam baixar lá, porque era um lugar visado, de esquerda. E meu pai resolveu se arriscar e foi com um amigo. Foi e dançou loucamente a noite inteira. E às tantas, acho que o Wally acaba reconhecendo meu pai, mas não quis falar muito com ele, para não se arriscar nem botar meu pai em risco. E meu pai morrendo de medo de sair dali e ser preso, mas ele resolveu ir mesmo , porque ele era muito fã da Gal.

— E que tem das suas reminiscências de conviver, mesmo que mais o adiante, de Salvador e dos tropicalistas?

— Meu pai aparece de novo quando tem aquele cartaz na rua de “Procura-se”. Bom, eu apareço, porque eu faço a Bethânia e também tem uma cena na praia, correndo. E, para quem assistiu o documentário [“O Nome dela é Gal”] tem muita imagem que está ali que está também lá.

— Então, já que você mencionou o documentário, é visível que o filme parte de muita pesquisa, você tinha muito material do qual partir. E, no momento de ficcionalizar, quais foram as suas referências? Você viu algum… Tem algum filme que você falou, puta, era isso que eu queria fazer?

— Boa, boa pergunta. Foram várias etapas, para ser bem sincera. Primeiro, logo quando a gente começou o projeto, muito da pesquisa veio do meu documentário. Eu tenho muita coisa catalogada, foram dois anos fazendo isso. Mas, ao mesmo tempo, a gente precisava de ter um pouco mais sobre a Gal, sobre as questões internas da Gal, que ali não tinha. E era muito difícil conseguir isso, porque a Gal sempre foi muito reservada. A Mayra, roteirista, que está desde o começo do projeto, ela foi a única pessoa que teve alguns encontros com a Gal para poder escrever para o filme. Ainda nem começando o roteiro, mas para a pesquisa mesmo. Acho que ela chegou a ter uns três encontros com a Gal e aí depois a Gal começou a se fechar. Porque a Gal era assim. A Mayra começou a abrir conversas com pessoas próximas da Gal para ajudar a contar essa história, para poder a gente se alimentar mais do interno da Gal. Então teve essa primeira etapa, que foi bem importante.

Foram muitos anos de construção desse roteiro, muita gente participando, ia, vinha, muita troca, muitas vezes a gente olhava e dizia: isso funciona, isso não funciona. Claro que é em cima da vida da Gal, mas também é ficção, tem algumas coisas que a gente precisa adaptar para poder você ter narrativa, para você ter filme, para você ter dramaturgia.

Teve uma outra etapa muito importante de pesquisa que veio da arte. O Thales Junqueira e a Juliana Lobo, que são diretores de arte, eles trouxeram uma pesquisa que foi impressionante, não só para eles, para a questão da feitura da arte do filme, mas que foi muito importante para a etapa final do filme, para quando a gente estava ali arrematando o roteiro. Eles trouxeram muita coisa de cinema, muitas referências de filmes, desde o Bethânia Bem de Perto, mas também dos filmes do Godard à época… Porcuramos dialogar bastante com aquela estética, a cor do filme, muito veio dali… A gente trocava muito filme, muitas ideias. E a outra fase que é importante também, que tem que falar, foi o que os atores também trouxeram. A gente ficou morando um mês numa casa, onde a gente ensaiava também. Eu não ficava o tempo inteiro, porque eu também estava como diretora, mas também participei como atriz, fazendo a Bethânia. A gente nunca ficou numa sala de ensaio passando texto, era tudo muito vivo, muito orgânico, nossa vivência, nossa troca ali, que a Amanda Gabriel, a preparadora de elenco, foi muito importante nisso. A gente queria trazer esse lugar de grupo que a Tropicália tinha, então foi até uma ideia da Sophie de a gente viver nessa casa por esse tempo. No intervalo, quando a gente não estava ensaiando, eles iam atrás, cada um do seu personagem, traziam livro, traziam filme, e que foi muito importante, não só para cada um, para a construção do seu próprio personagem, mas as trocas foram muito importantes para alimentar os outros personagens, tanto que muitas falas ali foram mudadas no próprio set de filmagem, porque os atores trouxeram coisa dos seus personagens, porque estava todo mundo muito inserido, então foi tudo isso, foi uma mistura em várias etapas de várias pessoas para a gente chegar nesse lugar.

— Um método bem tropicalista, por assim dizer, não é? Juntar todo mundo, fazer uma coisa de quase provocar uma crise para chegar em uma criação coletiva…

— Sim. E que foi muito importante, porque a gente vê isso na tela, todo mundo se entrosou muito. As relações eram fortes, e que é bom para a cena, foi muito importante.

— As cenas coletivas ali das festas parecem festas mesmo, onde as pessoas estavam de fato se divertindo…

— É, porque era aquilo que a gente estava vivendo. Praticamente, a gente só levou para o set de filmagem, porque na casa era isso, era festa à noite, era ensaio de manhã e à tarde, era … Aí uma pessoa vai para a piscina para ler um livro, outro ia ver um filme, então aquilo ali já estava muito natural.

— Você tem chamado a atenção para o fato de que o filme é sobre o  processo interno da Gal, mas também me parece que tem uma leitura sobre o que era ser mulher nesse período, o que era ser mulher em um movimento artístico. Nesse sentido, se sobressaem alguns temas e personagens: a e a Dedé, por exemplo, ambas vividas por atrizes impressionantes.  

— A Chica  é uma grande atriz do teatro baiano. Ela nunca fez muito cinema. Eu fiz aula de teatro com ela e com o Rodrigo xxxx , que faz o Caetano, por isso que eu convidei eles para o filme. A Chica é uma excelente atriz e professora do Teatro Vila Velha. E a Camila Márdila, a Dedé… É ela quem faz tudo acontecer. Ela está no bastidor, mas é graças a ela que tudo acontece e, ao mesmo tempo, ela apoia a amiga, incentiva… Quanto  tem um monte de homem ali, querendo decidir a vida da Gal, e ela não deixa eles decidirem, ela vai lá e dize: “vamos ouvir a Gal”. E foi isso mesmo, ela foi uma pessoa muito importante.  Todos os amigos falavam sobre a importância da Dedé para tudo aquilo acontecer, essa força que foi a Dedé. Então, a gente quis trazer isso para o filme também. Sem falar que Camila é uma atriz que… É impressionante a Camila, gente. É impressionante.  Ela é muito boa. Ela é muito boa. Não é pouco, não. E a Camila traz isso, dessa força incrível da Dedé e das outras contribuições. Por exemplo, o Caetano e Gil, ali no começo dos festivais, eles, esteticamente, eram mais caretas, se vestiam com terninho, calça social… E Dedé foi importante nesse lugar também junto com a Regina Boni. No filme, a Regina, que fez o figurino, também aparece essa tentativa de transformar esteticamente eles, porque eles eram muito modernos na música, mas, no vestimenta, eles eram caretas.

— Tive a impressão que o filme sublinha esse olhar feminino sobre a Tropicália. De novo, essa foi uma decisão consciente do roteiro, de contar uma história com a qual as possam se identificar? 

— Sim. Foi pensado nisso. Olha, desde o documentário, sempre senti um incômodo, porque quando a gente fala da Tropicália, é muito difícil de você ter a voz feminina. É sempre Gil e Caetano falando sobre o movimento, isso já é uma coisa que eu tenho falado há muito tempo. Eu não acho nada de quase de Gal falando sobre a Tropicália. Ela fica, claro, ela foi importante ali nessa voz que eu falei, né? Na estética do corpo, não sei o quê, mas a gente tem muito pouco ela, até porque Gil e Caetano são mais o discurso. Então, quando a gente pensou no projeto, a gente falava muito disso também, dessa homenagem também, de trazer esses personagens que normalmente as pessoas não têm esse mesmo olhar, porque acabam ficando tão dito, tão explícito a participação, mas que foram importantes, de a gente trazer um destaque para isso, não só para Gal, porque Gal foi esse lugar de uma referência para diversas mulheres, diversas gerações. Ainda hoje eu sou de uma geração muito mais nova do que Gal, mas eu tenho ela como uma referência, eu tenho essa conexão com Gal, dessa ruptura, de tudo que ela simbolizou para nós mulheres e principalmente nesse período. Você mesma falou quão difícil que era ser mulher cantora nessa época, ainda mais que era ser cantora, mulher, era uma coisa que era subestimada, que o filme também fala desse lugar também, não é fácil você chegar ali no palco e cantar em 1968 “é preciso estar atento e forte, não temos medo de temer a morte.” E a gente queria trazer também a Dedé, que sempre ficou uma personagem de bastidor, mas ela foi essencial para tudo isso acontecer. Então isso foi pensado para trazer essas figuras femininas para o primeiro plano.

— É impressionante que, com a morte da Gal e depois da Rita Lee, como essas mulheres foram as grandes criadoras e referência de tudo, desde as letras, comportamento, jeito de se vestir até comportamento sexual, de como fazer uma presença corporal libertária, um monte de coisas que foram fundamentais para a sua geração, que é mais nova que a minha, mas também para a minha e seguem sendo importantes. A comoção na morte das duas foi muito semelhante nesse sentido. E acho que o filme recoloca também o lugar dessas mulheres, cantoras, intérpretes, como criadoras. 

— Sim, muito! Sim, Gal não é compositora, mas ela tem uma questão da criação também, através da interpretação que ela leva para o palco também. Isso também precisa ser dito. É muito único, cada interpretação da Gal. Então isso tem esse lugar também da criação ali. Interpretação, repertório, porque no Fatal é onde ela fala que o repertório é outro.

Resenha: “Meu Nome é Gal” traz uma perspectiva feminina

Filme das cineastas Dandara Ferrereira e Lô Politti refaz o percurso da cantora baiana entre 1966 e 1971, quando o movimento tropicalista deixou uma forte marca na música popular brasileira

Bia Abramo

A cineasta Dandara Ferreira teve um azar enorme. Enquanto desenvolvia e filmava “Meu Nome é Gal”, feito em parceria com Lô Politti, ela perdeu a amiga e personagem Gal Costa, que acompanhava, mesmo que de longe, a feitura do filme. A morte de Gal, em 9 de novembro de 2022, interrompeu a contribuição que a cantora poderia dar  à sequência que estava na cabeça de Dandara como possibilidades de mais dois longas ou mesmo uma série. E, no entanto, o filme teve uma espécie de sorte amarga de acabar estreando em outubro de 2023, ou seja, no mesmo ano em que a também perdeu Rita Lee. 

A comoção por essas duas desaparições abruptas são parcialmente responsáveis pela enorme expectativa criada em torno de “Meu Nome é Gal”. A escolha de uma atriz jovem, que faz sucesso na televisão, para protagonizar a trajetória de Gracinha a Gal, pode ser elencado como outro fator externo que ajudou a criar o buzz. Um terceiro? A permanência da Tropicália como uma espécie de fundador de uma cultura jovem, contestatória, rebelde e moderna.

Nada disso, no entanto, aguentaria de pé por si só, caso o filme fosse desalinhavado. E não é. Para começo de conversa, “Meu Nome é Gal” escolheu o caminho mais árduo de representar um pedaço da história, a partir de um roteiro escrito sem um lastro maior de uma biografia ou autobiografia. Escolha arriscada, dado que a Tropicália vem sendo documentada em vários formatos — e, ainda por cima, tem muitos de seus principais protagonistas vivos e em atividade.

Dandara, no entanto, já tinha ido pelo caminho do documentário quando fez “O Nome Dela é Gal” em 2017, série de quatro episódios para uma plataforma de streaming, de onde saiu boa parte da pesquisa que embasa a narrativa. Outro movimento que se revela acertado é o fato de ter circunscrito a história de Gal a um espaço de tempo curto: da chegada a São Paulo em 1967 à montagem do show “Gal a Todo Vapor” em 1971. São apenas quatro anos, mas que quatro anos…

É nesse intervalo que se monta o movimento tropicalista tal como ficou célebre. São esses os anos dos festivais de televisão que catapultam (ou enterram) as carreiras de muitos artistas da música de então e que a cultura brasileira tem um pico de criatividade imaginativa pouco comparável a outros períodos. Ao mesmo tempo, no meio desse caminho havia uma ditadura militar radicalizando sua atuação repressiva. 

Nesse sentido, “Meu Nome é Gal” se constrói também como um filme de coming of age — é a história de uma menina que vira mulher num tempo conturbado, de uma pós-adolescente talentosa que se torna a voz, o grito, o sussurro e o gemido da tropicalismo e do que virá depois. E é um filme feito por mulheres que especula, por meio das transformações do corpo, das guinadas na carreira e pela profundidade das escolhas musicais de Gal, como será que era ser uma mulher naquele tempo e naqueles lugares que, hoje sabemos, foram tão decisivos.

Sim, estão lá Caetano Veloso e Gilberto Gil, com seus perfis bem demarcados — a liderança poética performática de Caetano, a musicalidade transbordante de Gil. Mas está também a turma que acolhe Gal quando Caetano e Chico são presos e, depois, partem para o exílio em Londres: Jards Macalé, Wally Salomão, Tom Zé e Torquato Neto. E ainda que Caetano e Gil “organizem o movimento, orientem o Carnaval” e estejam na posição de destaque de compositores e letristas, o filme procura sublinhar também o protagonismo da “dona da voz” — e, se havia alguma dúvida de que Sophie Charlotte era adequada ao papel ela se dissipa exatamente quando ela interpreta “Divino Maravilhoso”. 

Ainda que não confronte outras histórias “oficiais” da Tropicália e que não pareça essa ter sido a intenção de Dandara, acaba por também começar a construir uma narrativa alternativa e feminina, quebrando (ou arranhando) a perspectiva exclusivamente masculina da história do movimento. 

Centrada na jornada existencial de Gal, os personagens de destaque serão outros além dos óbvios. Há Dedé Gadelha, mulher de Caetano naquele período e mãe de Moreno, em interpretação magistral de Camila Márdila. Também surgem as aparições-relâmpago de Maria Bethânia, vivida pela própria diretora Dandara Ferreira, a mãe de Gal — a incrível Chica Carelli — e o empresário Guilherme Araújo, interpretado por Luiz Lo Bianco. O filme é essencial para compreender esse período da história.

Fonte: Fundação Perseu Abramo Capa: Reprodução


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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