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A comida como sagrado e como direito: da semente do milho branco ao Àkàsà

A comida como sagrado e como direito: da semente do milho branco ao Àkàsà

Lançamento da farinha de Àkàsà celebra parceria entre Ylê Asé Egi Omim e Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA)

Por Natália Almeida, Dieymes Pechincha, Robson Madredeus e Beto Palmeira/Xepa

Quais os riscos do agronegócio para a comida de santo? Essa foi uma questão de diálogo entre Ya Wanda Araújo, Baba Wanderson Flor do Nascimento e Beto Palmeira no último 15 de novembro no Ylê Asé Egi Omim em Santa Tereza, Rio de Janeiro.

A comida é um legado ancestral que está profundamente interligado à formação do povo brasileiro e desempenha um papel fundamental na cultura das diferentes formações sociais do nosso povo. A nossa cultura alimentar é transmitida de geração em geração: muitas tradições culinárias são uma expressão da história e das raízes do povo, refletindo ingredientes, técnicas de preparação e receitas que foram passadas ao longo do tempo.

A comida desempenha ainda um papel importante na conexão com as raízes ancestrais. Muitas pessoas procuram receitas tradicionais de suas culturas de origem para se reconectar com sua herança e manter viva a memória de seus antepassados. Além disso, a comida pode ser uma forma de celebrar conquistas, mudanças de estações, novos plantios e orientar ritos específicos entre as pessoas, as comunidades e a natureza, reforçando assim a conexão com a ancestralidade pois orienta festas e constrói um dos grandes pilares identitários da cultura dos povos.

A defesa do sagrado e as roças nos terreiros

Nos povos de matriz africana a comida desempenha um papel sagrado e muito significativo, pois é usada em cerimônias como oferenda aos orixás e depois partilhada entre os membros do terreiro, o chamado “ajeum”, tendo o propósito de estabelecer e manter uma conexão entre as pessoas praticantes e os orixás.

A preparação dos alimentos é realizada com grande cuidado e respeito, seguindo tradições e conhecimentos transmitidos ao longo das gerações de cada terreiro. A comida é considerada um elo com os orixás, ou seja, assim como para as famílias camponesas, nos terreiros a comida é vista como sagrada, não apenas por seu valor nutricional, mas também por seu papel vital nas práticas religiosas e na manutenção das relações comunitárias, suas histórias e tradições

“Não coincidentemente, os terreiros também são chamados de ‘roças’”, diz Beto Palmeira, coordenador do MPA no Rio de Janeiro. Na conversa com Ya Wanda e Babá Wanderson, no dia do lançamento, retomamos o conceito de roça e sua ligação com os terreiros relembrando que grande parte das casas de umbanda e candomblé são ambientes simples construídos dentro de áreas protegidas pelas matas, onde, além do barracão, há clareiras, roçado de alimentos, canteiros de plantas de poder, sombreado de algumas árvores, que também são guardiãs. Várias dessas casas, barracões e roças ficam no entorno dos centros urbanos, nos subúrbios e nas áreas de transição entre o urbano e o rural. Os terreiros desempenham um papel fundamental na preservação e defesa dos territórios não urbanizados e das áreas verdes, onde inclusive se mantêm rios, nascentes, córregos e lagoas.

Para nos ajudar a identificar qual é o impacto do agronegócio na nossa alimentação e na nossa cultura, Beto relembra que, tanto nos terreiros como nas comunidades camponesas, “a gente come resistindo e resiste comendo, pois o agronegócio impõe uma forma de produzir alimentos, oferece um tipo de trabalho e espalha doenças, como um certo tipo de escravidão que mudou de forma, mas continuou assolando as comunidades, principalmente, os mais pobres e o povo preto. Comer mal e aprisionar as pessoas em modos de trabalho precários e dependentes de venenos e sementes modificadas (transgênicas) são formas de escravidão”, exemplifica ele.

Beto aponta que respeitar a natureza e as pessoas é uma aposta da agroecologia e dos sistemas populares de comercialização cultivados pelo MPA. “O agronegócio destrói as águas das matas onde moram os orixás. A luta de vocês é a nossa luta também”, complementa.

O lançamento da farinha de Àkàsà

Beto, Ya Wanda e Babá Wanderson relembram que as práticas da agroecologia e do candomblé resgatam as práticas do comer junto. Para Wanderson, falar do Àkàsà é lembrar que a farinha de mandioca é uma prática que nasce do manejo indígena, atravessa oceanos para se misturar às tradições de vários países africanos e se consolida pelo encontro.

Ya Wanda é carioca, filha de Omolú, coordenadora de projetos sociais como o Se Essa Rua Fosse Minha, e também é ialorixá há 40 anos. Seu terreiro ficava em Ilha de Guaratiba, mas, em 2018, ela baixou com a família e filhos de santo numa casa em meio à Floresta da Tijuca, em Santa Teresa. Em 2012, Wanda criou o Centro Cultural de Tradições Afro-brasileiras YIê Asè Egi Omim, que funciona em paralelo ao calendário sagrado do Terreiro, onde articula e apoia inúmeras ações que conectam a natureza, a comida, a arte, a cultura e o sagrado.

Amigo de longa data de Wanda, Wanderson Flor é professor do departamento de filosofia da Universidade de Brasília (UnB), e desenvolve pesquisas no âmbito das filosofias africanas e afrodiaspóricas, relações raciais e tradições brasileiras de matrizes africanas. Ambos falam do terreiro como espaço de comer e como a alimentação pode criar e fortalecer relações de comunidade dentro e fora do terreiro. Ao promover inúmeras conexões em sua fala, Wanda relembra aos seus filhos e filhas que “corpo nutrido, cabeça nutrida”. Ao partilhar histórias de como o àkàsà e outros preparos eram feitos antigamente nos terreiros, fala que “a comida é importante no terreiro. Tão importante que não compramos ela de terceiros. Nós somos responsáveis por ela”, reforça a dirigente da casa. 

Cultivar milho saudável para sermos pessoas saudáveis

Uma pasta de milho branco ralado ou moído, envolvida ainda quente em folha de banana ou em outro recipiente. O àkàsà é tanto servido aos orixás como partilhado entre os praticantes durante os rituais.

Ao falar da força do milho, Wanda celebra seu compromisso em plantar as sementes trazidas pelo MPA por meio de uma parceria com o povoado de Boa Vista, localizada em Duas Barras, estado do Rio de Janeiro.

Wanda diz que “o milho veio ao nosso encontro porque ele está procurando pessoas e locais saudáveis e alegres pra resistir”. Aprender a louvar a força do milho, a força da folha e a força de estarmos juntas e juntos são palavras repetidas pela Ya.

O agronegócio tem sua base fundada no processo de colonização que aqui ameaça os alimentos sagrados e o direito a comer. Ao retirar a palavra cultura do termo agricultura, há uma transformação do alimento em mercadoria. Assistimos, assim, a um imenso processo de artificialização das relações entre cultivo, colheita, consumo e partilha dos alimentos. 

Ao lançarem a farinha de àkàsà, o Ylê Asé Egi Omim e Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) celebram o início de parcerias que passam pela defesa da vida do plantio à partilha da comida e do sagrado. Cuidado, fortalecimento de laços comunitários, defesa da identidade cultural e respeito pelas tradições e da diversidade são princípios que caminham juntos.

Fonte: Mídia Ninja. Foto de capa: Comunicação MPA.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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