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LEMBRANÇAS DA FESTA DO AMIGO OCULTO: ÁRVORES E LIVROS 

LEMBRANÇAS DA FESTA DO AMIGO OCULTO: ÁRVORES E LIVROS 

I think that I shall never see

A poem lovely as a treeJoyce Kilmer. Trees and Other Poems, 1914. 

Por José Bessa Freire 

No (des) governo do Coiso, as árvores se comunicaram através de suas raízes e do ar para lamentar os incêndios florestais criminosos. Agora, com o novo tratamento da Secretaria de Biodiversidade, Florestas e Direitos Animais, fizeram sua festa de amigo oculto, como seres de vida social que são, para celebrar o aniversário da recuperação da flora e fauna prevista no decreto de 01/01/2023. Não é o ideal, mas elas puderam respirar neste ano.

No réveillon de 2023 para 2024, a primeira a falar foi a Seringueira, que transpirava látex por todos os poros:    

– Conheço minha amiga oculta desde criancinha lá no Acre. Ela sempre nos protegeu, matou nossa sede, lutou contra o envenenamento dos rios e o garimpo ilegal, preservou ninhos de passarinho em nossos galhos e defendeu o manejo sustentável da floresta.

As outras árvores gritaram:

– Ma-ri-na! Marina!

A ministra do Meio Ambiente ganhou da Seringueira um cacho de florezinhas brancas perfumadas e um exemplar de A Selva, de Ferreira de Castro, que trata da exploração nos seringais. 

Lula Dino acai esse 1

O imponente Buritizeiro, com as raízes fincadas no brejo, falou do alto dos seus 30 metros olhando para Sônia Guajajara:

– Minha amiga oculta mede 1,50 metros, mas se agiganta e fica maior do que eu, quando sai pra luta. Foi eleita em 2022 uma das 100 pessoas mais influentes do planeta pela revista TIMEDou-lhe o livro Buritide Guimarães Rosa, relacionado com a cultura dos povos ameríndios e esta rede artesanal feita com fibra da minha folha.

Foi então que o Açaizeiro balançou as folhas de palmeira e anunciou:

– Tenho dois amigos ocultos. Um mora no Palácio da Alvorada e reduziu o desmatamento na Amazônia em mais de 50%. O outro impediu o golpe e vai lutar por nós no STF vestido com a toga do Batman.

Entregou então três embrulhos em papel de presente com uma fita amarrada no topo. Todas as espécies vegetais gritaram juntas:

– Abre! Abre!

Continha uma garrafa de vinho de açaí Flor da Samaúma, com sabor de vinho tinto de uva e teor alcoólico de 12%, produzido no Amapá pela vinícola de João Capiberibe, e dois livros: “Iracema de José de Alencar com palmeiras se destacando na paisagem do Ceará e a “Canção do Exílio do poeta maranhense Gonçalves Dias.

Chegou a vez daAmendoeira, a árvore de Exu, orixá da comunicação, que emigrou de Portugal. Ela presenteou duas amigas, ambas defensoras do meio ambiente:

– Uma é a cantora, que gravou a canção “Elegibô – Uma História de Ifá”. A outra, ex-jogadora de vôlei do Vasco, nasceu no Complexo da Maré e se formou em jornalismo nos Estados Unidos.  

Os olhares todos convergiram para as ministras da Cultura, Margareth Menezes e da Igualdade Racial, Anielle Franco. Ambas ganharam um vidro de licor Amarettofeito de amêndoas, e o livro da crônica “Fala Amendoeira” de Carlos Drummond, que conversa com a árvore magra atravessada por fios elétricos em frente a seu edifício, um “anjo vegetal” diz o poeta, porque dá sombra aos namorados e atende “precisões mais humildes de cãezinhos transeuntes”.

Quem veio abelhudar a festa de fim de ano foi o Pau-ferro, nome usado para várias árvores, mas essa aqui é a jovem e majestosa Pore Hi dos Yanomami que, quando começa a fenecer, troca de casca e se renova. Dela se faz chá e emplastos que curam reumatismo, feridas e outras lesões cutâneas.  Do alto do seu tronco cilíndrico disse:

– Minhas duas amigas ocultas são como eu, nunca envelhecem porque trocam de pele e se revigoram. Meus presentes vão para Xororima (Andorinha) e Maiama (Guerreira), assim batizadas pelos Yanomami.

A galera arbórea só entendeu quando Rosa Weber e Carmen Lúcia do STF, uma já aposentada, se aproximaram para receber seus presentes: a Constituição Brasileira traduzida ao Nheengatu e “A Queda do Céu” de Davi Kopenawa e Bruce Albert.

A troca de presentes prosseguiu com outras árvores, que contaram suas histórias, algumas delas registradas em “O livro das árvores” do povo Ticuna, publicado em 1997 e usado nas aulas de educação ambiental, como fruto do projeto “A natureza segundo os Ticuna”.

A comunicação entre as árvores é confirmada pelo engenheiro florestal alemão Peter Wohlleben, que durante anos estudou a fisiologia e o comportamento das espécies vegetais de grande porte e publicou o resultado no seu livro A vida secreta das árvores”:

Para nós, é difícil acreditar, em parte por causa da nossa tendência de avaliar outros seres vivos com base no nosso próprio organismo. Mas árvores são seres de vida social complexa, que trocam nutrientes e informações entre si, cuidam de seus “bebês” e combatem invasores de forma coordenada. Existe uma espécie de `internet das árvores”, que se estabelece por meio de uma densa trama de conexões entre as raízes de diferentes indivíduos vegetais. Informações bioquímicas também podem viajar pelos ares entre uma árvore e outra.

Um dia, quando eu tiver mais espaço, conto como a festa se estendeu madrugada adentro, com os presentes para titulares de outros ministérios comprometidos com as árvores: Sílvio Almeida (Direitos Humanos e Cidadania), Nísia Trindade (Saúde), Luciana Santos (Ciência, Tecnologia e Inovações), Cida Gonçalves (Mulheres), Simone Tebet (Planejamento), Fernando Haddad (Fazenda).

Participaram muitas outras: a Castanheira, o Jequitibá, a Gameleira, a Cajarana, o Ipê, o pé de Jabuticaba e outras registradas na literatura como a Árvore dos Falsos Desejos, a Árvore da Vida, a Árvore dos Mortos…

– E eu? E eu? – perguntou despeitada a não mencionada Goiabeira.

– Ah, você só ganha presente quando a Camélia cair do galho, der dois suspiros e depois morrer politicamente, por enquanto ela é senadora, que te odeia, mas te usa – respondeu a Árvore das Lembranças.  

P.S. MARICONCITO DE IGARAPÉ – Na crônica jornalística “Cómo sufrimos las flores” (9/12/1981), Gabriel García Márquez conta que um amigo biólogo dissertou sobre a alma das plantas, que dentro de casa passam a fazer parte do núcleo familiar e até sofrem com as brigas de casais. Ele usou um galvanômetro – aparelho que mede a intensidade da corrente elétrica e que, em contato com uma planta, revela suas reações e seus sentimentos mais íntimos. “Plantas têm memória” – garante Gabo, que em sua crônica se refere a estudos mostrando que a música interfere no crescimento delas. Foi então que o escritor recebeu telefonema de um amigo, que lá da Colômbia já era bolsominion, perguntando sobre o tema da próxima crônica:

 – Estoy escribiendo sobre el sufrimiento de las plantas y las flores – le contesté. Mi amigo, con una alarma cierta, exclamó:

Ah, carajo! ¿No te estarás volviendo maricón?

Jose Ribamar BessaJosé Bessa Freire – Escritor. Cronista. Conselheiro da Revista Xapuri, em Taquiprati. Fotos: Taquiprati.

 
 
 
 
 
 
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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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