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A NECROPOLÍTICA DE ISRAEL

A NECROPOLÍTICA DE ISRAEL

A necropolítica de israel

Há quantos anos os palestinos sobreviventes suportam a agonia da desterritorialização imposta? O governo israelense de extrema responde à pergunta com a naturalização de um genocídio.

Por Luiz Marques/Fundação Perseu Abramo

As manchetes da imprensa provocam a confusão entre a crítica ao sionismo e o sentimento antissemita, na tentativa de convencer a opinião internacional. Israel atualiza a noção foucaultiana de soberania como controle da vida, através dos corpos. A isso, o pensador francês denomina “biopolítica”. Em tese, a coesão da sociedade implica a autoinstituição e autolimitação do sujeito: leia-se a disciplina. Não obstante, a assertiva de enaltecimento do contrato social oculta a vontade de poder do soberano sobre a vida e a morte. No fundo da caverna, trava-se uma luta capaz de ludibriar a astúcia da razão.

A soberania política, in extremis, não respeita os limites a que o temor submete as individualidades. Não lhe basta a finitude dos indivíduos, é preciso apagar seus rastros na memória da coletividade. O desaparecimento corpóreo de vítimas e a censura às lembranças foi uma rotina nas ditaduras civis-militares, na América Latina. Instalada em 2012, a tarefa da Comissão da Verdade visava fixar os devidos constrangimentos ao exercício da autoridade do Leviatã, para exorcizar os desvios sádicos dos agentes oficiais e impor, ao -nação, a indispensável pedagogia dos direitos humanos.

A iniciativa governamental trouxe implícito o reconhecimento do risco de conversão do aparelho estatal em uma máquina mortífera, que extrapola os preceitos constitucionais. Neste sentido, Achille Mbembe, em Necropolítica, propõe “uma leitura da política como o da morte”. O biopoder mantém elos com a concepção schmittiana de política (amigo vs. inimigo), marca do extremismo de direita. Caíram em desuso as disputas sem dedo no olho entre adversários que acatavam as normas procedimentais da , sem apelar ao ódio e às no emaranhado da pós-verdade.

A violência é o denominador dos racistas. Vide o Esquadrão de Proteção da SS (Schtzstaffel) em ação, na Alemanha hitlerista. Ou a Klan (Ku Klux Klan) em favor da supremacia nacionalista dos brancos e da anti-imigração, nos . Ou o BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais) considerado a melhor tropa de snipers contra periféricos, no Brasil. O laço que une organizações remete aos inimigos fictícios que, perseguidos, têm os direitos à liberdade, à felicidade e à vida – cancelados. Os condenados da terra deixam de ser gente, antes de retornar ao pó. “Ó meu corpo, faz sempre de mim um homem que questiona”, brada o psiquiatra e ativista Franz Fanon.

O Estado assassino

O fascínio armamentista explica Israel afigurar-se referência do neofascismo hoje. O país possui duzentas ogivas nucleares, quiçá o maior e mais sofisticado paiol de todas nações atômicas; dispõe de 170 mil soldados na ativa, 130 mil por terra, 10 mil navais, 30 mil na Força Aérea. Conforme a GFP (Global Firepower) aplica 4,5% do PIB (Produto Interno Bruto) no aparato militar.

A energia guerreira é uma metáfora de Esparta, ao revés da pólis que amava a participação dos camponeses e dos artesãos livres em decisões da democracia direta, nas ágoras. Atenas soviética inspira a fusão dos governantes e governados. Mas o projeto não anacrônico de república pautado no término das desigualdades, agora, inclui as mulheres. O século V a.C. é um ponto de partida, não o de chegada.

Mais do que o pensamento de classe que traduz a história como uma luta pela hegemonia, a raça é uma sombra presente nas políticas do Ocidente de desumanização das culturas estrangeiras. Hannah Arendt, em as Origens do totalitarismo, assinala que “a raça é, não o começo da humanidade, mas o seu fim. Não o nascimento natural do homem, mas a sua morte antinatural”. A filósofa receava a criação de um Estado cercado de hostilidades, pois empurraria o nacionalismo judaico ao sionismo em detrimento do espírito (spiritus, respiro, coragem) universal. Virou uma persona non grata.

Também o abolicionista Joaquim Nabuco antecipou desconfortos no horizonte, após 350 anos de grilhões. O fato de a Abolição não vir acompanhada da indenização pelo trabalho forçado e de uma reforma agrária, para garantir a existência digna aos ex-escravos cujos afazeres tradicionais eram no campo, está na raiz do mal-estar das ditas elites com as lutas atuais de emancipação. “A escravidão permanecerá muito tempo como a característica nacional”. O espancamento de um morador de rua, preto, no vandalismo de 8 de janeiro, revela o racismo e a aporofobia nas dobras da bandeira verde-amarela. Arendt e Nabuco agiram como os profetas bíblicos, na acepção do Primeiro Testamento.

A função do racismo é regular a biopolítica para a distribuição da morte por intermédio do Estado assassino, que não é uma exclusividade dos regimes de exceção. Sociedades que se proclamavam democráticas conviveram com o sistema de plantation e a tripla perda da condição dos escravos: o lar, o direito sobre o corpo, o estatuto de cidadão. Na África do Sul, a soberania inventou zonas para relegar os colonizados no hiato entre o sujeito e o objeto.

“Distritos” e “bantustões” agudizaram a opressão e pobreza severas. A espacialização planejada para a ocupação colonial traçou uma divisão em compartimentos, com linguagem alegórica para o gerenciamento do exército de reserva de mão de obra gratuita. Primo Levi descreve uma atroz mecânica de aniquilamento, em É isto um homem?

O soberano sionista

O termo que dá título ao ensaio do intelectual camaronês, de 71 páginas, aparece na de número 41, onde sublinha que a ocupação da colônia combina “o disciplinar, a biopolítica e a necropolítica”, que subjuga a vida ao poder da morte. “A forma mais bem-sucedida de necropolítica é a ocupação colonial contemporânea da Palestina. O Estado colonial tira a pretensão fundamental de soberania e legitimidade da autoridade de seu próprio relato da história e da identidade.

A narrativa, reforçada pela crença de o Estado israelense ter o direito divino de existir, entra em competição com outra narrativa pelo mesmo espaço sagrado”. Os discursos e os povos são quase inextricáveis. Contudo, Israel alega o alicerce divino à nacionalidade, e reivindica uma posição acima da outra divindade. No , o misticismo envolve o conflito em desrazão: a paixão, a fantasia, o destino.

A presença expansionista se apoia no terror abençoado com expulsões em massa, reassentamento de pessoas “apátridas” em campos de refugiados e estabelecimento de novos polos de colonização. O objetivo consiste em “impossibilitar qualquer movimento e implementar a segregação à moda do Estado do apartheid, com fronteiras internas e várias células isoladas” – política de verticalidade. Sob ruínas de hospitais, fossas com ossadas de centenas de palestinos exalam o massacre, enquanto no céu se ouve o grito mudo do Homo demens, a morte indizível, o mal-absoluto: o Holocausto.

As técnicas de combate ao inimigo passam pela sabotagem da rede de infraestrutura social e urbana, a apropriação de recursos naturais (terra, água, atmosfera), o bombardeio de pistas de aeroporto, edifícios, comunicações eletrônicas, transformadores de energia elétrica, equipamentos médicos, o desenraizamento das oliveiras e a violação de símbolos culturais e administrativos do Proto-Estado que não nasce. Estamos diante de uma infraestrutural, como no Afeganistão e no Iraque. Um povo inteiro é arrasado pelo fanatismo do soberano sionista. Generaliza-se a insegurança, banaliza-se a morte, ignora-se o sofrimento, rompe-se a linha limítrofe que separa a civilização da barbárie.

“A guerra se inscreveu como fim e necessidade, não só na democracia, mas também na política e na cultura. Encadeadas umas às outras, causa e consequência umas das outras, tornaram-se e veneno, nosso phármakon”, anota Achille Mbembe, no clássico intitulado Políticas da inimizade. O estado de exceção é a regra em escala mundial.

A indústria das atrocidades e das letalidades não poupa nem as crianças. Enquanto todas as guerras de 2019 a 2022 mataram 12.193 crianças, os seis meses iniciais do conflito em Gaza já ceifaram a curta vida de 12.300 pequenos inocentes. Um cruel crime contra a espécie, desproporcional ao ato de terror e desespero cometido pelo Hamas, em 7 de outubro de 2023. O flagelo dos impérios Asteca, Hernán Cortés, e Inca, Francisco Pizarro, ora recepcionam na galeria desonrosa dos conquistadores a bête humaine que é Benjamin Netanyahu.

O primeiro-ministro neofascista deseja “restaurar Israel do tamanho que teve no auge, à época de Davi e Salomão”, assinala Leonardo Boff. Daí o empenho em colonizar territórios da Cisjordânia, como se fossem seus por graça de Deus, e a determinação para expulsar árabes e muçulmanos. Sua ideologia autoritária e totalitária aponta para uma teocracia de extermínio. O sionismo, ao associar a religião ao nacionalismo belicista em expansão, encarna uma ameaça – para além da Faixa de Gaza – à paz na região, às relações internacionais e à humanidade. A extrema direita aplaude o genocídio.

Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul

Fonte: Fundação Perseu Abramo Capa: Agência Wafa

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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