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PEPE MUJICA: “NADA VALE MAIS DO QUE A VIDA”

PEPE MUJICA: “NADA VALE MAIS DO QUE A VIDA”

Pepe Mujica: “Nada vale mais do que a vida” 

O que me angustia, e muito, é o futuro que não verei – e por ele me comprometo. Sim, é possível um mundo com a melhor, mas talvez hoje a primeira tarefa seja cuidar da vida” …

Por Zezé Weiss

No último dia 29 de abril, o cultivador de flores, agricultor de vida simples, líder do Movimento de Participação Popular da Frente Ampla (partido de esquerda), ex-senador da República (2015-2020) e ex-presidente do Uruguai (2010-2015), Pepe Mujica, de 89 anos, anunciou, em conferência de imprensa, que foi diagnosticado com um tumor no esôfago, órgão que conecta a faringe e o estômago.

Perguntado se estava com medo, respondeu incisivo: “Medo de quê? De morrer? Tudo que nasce, nasce para morrer. Temos que aceitar. Eu tive muita ! Fui atingido por balas, perdi o baço, tenho uma doença imunológica.

Estou vivendo no lucro. Não tenho do que me queixar (…) vou continuar militando com meus companheiros, fiel à minha maneira de pensar e entretido com meus legumes, com minhas galinhas, porque o matungo não muda ao final do rio.”

Pepe explicou que, por padecer há mais de 20 anos de uma doença imunológica, a Síndrome de Strauss, que afetou seus rins, o tratamento será complexo, com dificuldades para a realização de uma eventual cirurgia ou de um processo de quimioterapia.

“Entretanto, eu sempre fui um torrão com patas e, enquanto o rolo for adiante, eu seguirei em frente. Mais de uma vez na minha vida a morte andou rondando a minha cama, e continuou próxima todos esses anos.

Certamente, por razões óbvias, desta vez a foice vem em punho e veremos o que acontece”, declarou o companheiro José Alberto Mujica Cordano, nascido no bairro Paso de la Arena, em Montevidéu, no dia 20 de maio de 1935.

Entretanto, mesmo nesse tempo incerto, com uma doença de difícil tratamento, o ex-guerrilheiro do Movimento de Libertação Nacional Tupamaros, preso político por todo o período da ditadura uruguaia (1973-1985), barbaramente torturado, em várias ocasiões trancafiado em cela solitária, fez questão de deixar uma mensagem otimista:

“Quero transmitir para as meninas e os meninos do nosso país que a vida é bela, mas se desgasta (…). A questão é recomeçar cada vez que cair e, se houver raiva, transformá-la em esperança”, completou o morador da chácara Rincón del Cerro, motorista de um famoso fusca azul, modelo 1987, e marido, desde os anos 1970, da ex-guerrilheira, ex-presa política e senadora da República, Lucía Topolansky.

QUERIDO MILITANTE

PEPE MUJICA: “NADA VALE MAIS DO QUE A VIDA”Foto: Ricardo Stuckert

“O que seria deste mundo sem militantes? Como seria a condição humana se não houvesse militantes? Não porque os militantes sejam perfeitos, porque tenham sempre a razão, porque sejam super-homens e não se equivoquem. Não é isso. É que os militantes não vêm para buscar o seu, vêm entregar a alma por um punhado de sonhos.”

Aos quase 90 anos, Pepe Mujica viveu e vive entregando sempre sua vida por um punhado de sonhos. Nos anos 1960, como um tupamaro, participou de operações de guerrilha, entrou para a clandestinidade e, nos enfrentamentos da luta armada, foi ferido por seis tiros, foi preso quatro vezes e, em duas delas, fugiu da prisão de Punta Carretas.

Foram longos anos de cadeia, no total mais de 15, com 13 anos de uma só vez, entre 1972 e 1985. Por sua importância política, foi tomado como refém pela ditadura uruguaia por 11 anos. Os reféns seriam executados caso os tupamaros realizassem mais ações armadas.

Com o retorno da democracia, Pepe foi libertado com base na Lei nº 15.737, de 8 de março de 1985, que decretou anistia aos delitos políticos cometidos a partir de 1º de janeiro de 1962. Anos depois, criou, junto com outras lideranças do MLN e outros partidos de esquerda, o Movimiento de Participación Popular (MPP), dentro da coalizão de Frente Ampla.

Em 1º de março de 2005, tornou-se ministro da Agricultura, por designação do presidente da República, Tabaré Vázquez. Em 3 de março de 2008, quando deixou para ser pré-candidato à presidência da República. Em 1º de março de 2010, no Palácio Legislativo de Montevidéu, Pepe Mujica tomou posse como presidente da República Oriental do Uruguai, país que governou de 2010 a 2015.

PRESIDENTE PROGRESSISTA

PEPE MUJICA: “NADA VALE MAIS DO QUE A VIDA”
Foto: Memorial da Democracia/WikiCommons

Como presidente, Pepe definiu como prioridade a educação, a segurança, a energia e o meio ambiente e, como objetivo primordial de seu mandato, a erradicação da miséria e da fome e a redução da em 50%.

Três leis progressistas marcaram a gestão de Mujica como presidente do Uruguai. A primeira delas foi a lei da descriminalização do aborto. Proposto pela Frente Ampla em 2007, o projeto de lei foi vetado pelo presidente Tabaré Vázquez. Em 2012, com Pepe Mujica, a lei foi aprovada.

Em 2013, a segunda lei progressista, a do matrimônio igualitário, foi aprovada no Uruguai. Por essa lei, a adoção por casais homoafetivos, com a ordem do sobrenome dos filhos e filhas decidida por esses pais ou mães adotantes. A lei também possibilitou o ingresso de homossexuais nas Forças Armadas.

A terceira lei progressista sancionada pelo presidente Pepe Mujica foi a legalização da maconha, com características que a faz única no mundo. Já era possível cultivar e possuir a erva para consumo individual, como em outros países, mas, com a nova lei, o Estado da República Oriental do Uruguai passou a controlar produção, distribuição e venda.

Segundo a Confederação Sindical Internacional, durante o governo Mujica, o Uruguai tornou-se o país mais avançado das Américas em termos de respeito aos “direitos fundamentais do trabalho, em particular a liberdade de associação, o direito à negociação coletiva e o direito à greve”.

DISCURSO ANTOLÓGICO NA ONU

Em setembro de 2013, o então presidente do Uruguai, José Alberto Mujica Cordano, fez um discurso antológico na 68ª Assembleia Geral da ONU, centrado, essencialmente, em uma análise ecológica da conjuntura global e em sua potente crença na força da utopia. Seguem excertos de uma das falas mais memoráveis do incomparável Pepe Mujica:

Amigos, sou do Sul, venho do Sul. Esquina do Atlântico com o Prata, meu país é uma planície suave, serena, uma história de portos, couros, trabalho, lãs e carnes. Teve décadas sangrentas, de lanças e cavalos, até que, ao começar o século XX, começou a ser vanguarda no social, no Estado, no ensino. Diria que a socialdemocracia se inventou no Uruguai.

Durante quase 50 anos o mundo nos viu como uma espécie de Suíça. Na realidade, no plano econômico fomos bastardos do Império Britânico e, quando este afundou, vivemos as amargas migalhas do fim de intercâmbios funestos e caímos paralisados sonhando com o passado.

[Ficamos] quase 50 anos sonhando com o Maracanã, nossa façanha esportiva [de derrotar o Brasil na Copa do Mundo de 1958].

Hoje ressurgimos nesse mundo globalizado, talvez aprendendo com a nossa dor. Minha história pessoal é aquela de um moço – porque já fui moço – que, como outros, quis mudar sua época, seu mundo, e teve o sonho de uma sociedade sem classes. Meus erros são, em parte, filhos de meu tempo. Obviamente os assumo, mas, algumas vezes, medito com nostalgia.

Quisera ter a força de quando éramos capazes de hospedar tanta utopia! Sem dúvida não olho só para trás, porque a realidade de hoje nasceu das cinzas férteis de ontem. Pelo contrário, não vivo para cobrar contas ou ressuscitar recordações. O que me angustia, e muito, é o futuro que não verei – e por ele me comprometo. Sim, é possível um mundo com a humanidade melhor, mas talvez hoje a primeira tarefa seja cuidar da vida.

Mas sou do Sul e venho do Sul (…). Carrego inequivocamente milhões de compatriotas pobres nas cidades, nas planícies, nas selvas, nos pampas, nos grotões da América Latina, pátria comum que está se fazendo. Trago comigo as culturas originais esmagadas, os restos do colonialismo nas Malvinas, os inúteis bloqueios a esse jacaré lagarteando ao sol do Caribe que se chama Cuba.

Venho com as consequências da vigilância eletrônica que não faz outra coisa que não seja semear a desconfiança. Desconfiança que nos envenena inutilmente. Venho com uma gigantesca dívida social, com a necessidade de defender a Amazônia, os mares, os nossos grandes rios da América.

Venho com o dever de lutar pela pátria para todos, para que a Colômbia possa encontrar o caminho para a paz, venho com o dever de lutar pela tolerância, a tolerância necessária com aqueles que são diferentes e com o que temos de diferenças e discordâncias. Não se precisa de tolerância com aqueles com quem estamos de acordo.

A tolerância é o fundamento de poder viver em paz, e entendo que no mundo somos diferentes. Combatemos a economia suja, o narcotráfico, a vigarice, a fraude e a corrupção, pragas contemporâneas concebidas por esse antivalor que sustenta que seremos felizes se enriquecermos, não importando como.

Sacrificamo-nos aos deuses imateriais. Ocupamos os templos com o deus do mercado, que nos organiza a economia, a política, os hábitos, a vida, e até nos financia, com cotas e cartões, a aparência de felicidade. Parece que nascemos só para consumir e consumir, e quando não podemos vem a frustração, a pobreza, e até a autoexclusão.

O certo hoje é que para gastar e enterrar os detritos nisso que a chama nuvem de carbono, se aspiramos consumir como um norte-americano médio, seria imprescindível três planetas para poder viver. Nossa civilização construiu um desafio mentiroso e, assim como andamos, não é possível para todos aceitar esse desafio de desperdício. Estamos sendo massificados com uma cultura dirigida pela acumulação e pelo mercado.

Prometemos uma vida de abundância e desperdício que, no fundo, é uma conta regressiva contra a natureza, contra a humanidade como futuro. É uma civilização contra a sensatez, a sobriedade, contra os ciclos naturais.

O pior: é uma civilização contra a liberdade que supõe ter tempo para viver as relações humanas, o único transcendente, o amor, a amizade, aventura, solidariedade, família. Uma civilização contra o tempo livre não pago, que não se compra e nos permite contemplar e esquadrinhar o cenário da natureza.

Arrasamos a selva, as selvas verdadeiras, e implantamos as selvas anônimas de cimento. Enfrentamos o sedentarismo com esteiras, a insônia com medicamentos, a solidão com eletrônicos, porque somos felizes alijados do entorno humano. Cabe fazer esta pergunta: ouvimos nossa biologia que defende a vida pela vida ela mesma, como causa superior, e a suplantamos pelo consumismo funcional da acumulação?

A política, eterna mãe do acontecer humano, ficou limitada à economia e ao mercado. Aos trancos, a política não pode mais perpetuar-se e, como tal, delegou o poder e se entretém, aturdida, lutando pelo governo. Desvairada marcha da historieta humana, comprando e vendendo tudo e inovando para poder negociar de algum modo o que não é negociável.

Existe marketing para tudo, para os cemitérios, os serviços fúnebres, as maternidades, para os pais, para as mães, passando pelas secretárias, os carros e as férias. Tudo, tudo é negócio. E as campanhas de marketing atingem deliberadamente as crianças e sua psicologia para influenciar os adultos e ter no futuro um espaço assegurado. Sobram provas dessas tecnologias abomináveis que quase sempre conduzem para as frustrações.

O homenzinho médio de nossas grandes cidades caminha entre as finanças e o tédio rotineiro dos escritórios, às vezes aclimatados com ar-condicionado; sempre sonha com as férias e a liberdade, com fechar as contas, até que um dia, o coração para e… Adeus.

Haverá outro soldado cobrindo as faltas do mercado, assegurando a acumulação. A se faz na impotência, a impotência da política, incapaz de entender que a humanidade não foge nem fugirá do sentimento de nação. Sentimento que está quase incrustado em nosso código genético.

Hoje é tempo de começar a trabalhar para preparar um mundo sem fronteiras. A economia globalizada não tem outro interesse a não ser o privado – de muito poucos – e cada Estado está focado em sua estabilidade.

Hoje, na minha humilde maneira de ver, a grande tarefa de nossos povos é o todo. Como se isso fosse pouco, o capitalismo produtivo, francamente produtivo, está prisioneiro do caixa dos bancos. No fundo, é o pícaro do poder mundial. Claro, cremos que o mundo requer veementemente regras globais que respeitem os enganos das ciências, que são muitos.

Mas não é a ciência que governa o mundo. Se precisam, por exemplo, de uma grande agenda de definições para financiar a luta global pela água e contra os desertos, quantas horas de trabalho, e em toda a Terra, são necessárias, e como converter as moedas locais? Como se recicla e se pressiona contra o ? Quais são os limites de cada grande querer humano? Seria imperioso chegar a um consenso planetário para deslanchar a solidariedade aos mais oprimidos, castigar impositivamente o desperdício e a especulação.

Mobilizar as grandes economias não para criar bens descartáveis, com a obsolescência calculada, mas bens úteis, sem fidelidade, para favorecer os pobres do mundo. Bens que sejam úteis contra a pobreza mundial, mil vezes mais eficazes do que fazer guerras. Voltar a um neo-keynesianismo útil de escala planetária para abolir as vergonhas mais flagrantes que existem neste mundo.

Talvez o nosso mundo necessite de menos organizações mundiais, essas que organizam os fóruns e as conferências, que muito servem às cadeias hoteleiras e às companhias aéreas que, no melhor dos casos, nada acrescentam e/ou transformam em decisões…

Precisamos, sim, refletir muito sobre o velho e o eterno da vida humana junto à ciência, essa ciência que se empenha pela humanidade não para fazer-se rico; precisamos, com os homens de ciência ao alcance, primeiros conselheiros da humanidade, estabelecer acordos para o mundo todo. Nem os grandes Estados nacionais nem as transnacionais e muito menos o sistema financeiro deveriam governar o mundo humano. A alta política enlaçada com a sabedoria científica: aí está a fonte.

Essa ciência que não está atrás do lucro, mas que olha o futuro e diz coisas que não entendemos. Quantos anos faz que nos disseram determinadas coisas que não levamos em conta? Creio que se deva convocar a inteligência para o comando da nave Terra, coisas desse estilo e outras que não posso desenvolver aqui e que nos parece imprescindíveis, mas requereriam que o determinante fosse a vida, não a acumulação.

Obviamente não somos tão ingênuos, essas coisas não passarão. São necessários ainda muitos sacrifícios inúteis, muitos remendos nas consequências e no enfrentar as suas causas. Hoje o mundo é incapaz de criar uma regulação planetária à globalização e isso se dá pelo enfraquecimento da alta política, essa que se ocupa do todo.

Por último, vamos assistir ao refúgio dos acordos mais ou menos “reivindicáveis”, que vão expor um falso livre comércio interno, mas que no fundo está construindo barreiras protecionistas, supranacionais em algumas regiões do planeta.

Vão crescer ramificações industriais importantes e serviços, todos dedicados a salvar e a melhorar o meio ambiente. Assim nos consolaremos por algum tempo, nos distrairemos e naturalmente vai continuar tudo como está: a rica acumulação para regozijo do sistema financeiro.
Continuarão as guerras e, portanto, os fanatismos, até que talvez a mesma natureza chame à ordem e torne inviáveis nossas civilizações. Talvez nossa visão seja demasiado crua, sem piedade. Vemos o homem como uma criatura única, a única na Terra capaz de ir contra a própria espécie.

Volto a repetir, porque alguns dizem que a crise ecológica do planeta é consequência do triunfo avassalador da ambição humana: é nosso triunfo e a nossa derrota, porque temos impotência política para nos enquadrarmos em uma nova época, que contribuímos para construir e não nos demos conta.

Por que digo isso? São dados, nada mais. O certo é que a população quadruplicou e o PIB cresceu pelo menos vinte vezes no último século. Desde 1990, aproximadamente, a cada seis anos se multiplica o comércio mundial. Podíamos seguir mostrando dados que estabelecem a marcha da globalização.

PEPE MUJICA: “NADA VALE MAIS DO QUE A VIDA”Foto: Acervo Pepe Mujica

O que está acontecendo? Entramos rapidamente em outra época, mas com políticos, adornos culturais, partidos e jovens, todos velhos diante da pavorosa acumulação de divisas que nem podemos registrar. Não podemos controlar a globalização, porque nosso pensamento não é global. Não sabemos se é um limitante cultural ou se estamos chegando aos limites biológicos.

Nossa época é tão portentosamente revolucionária como nenhuma outra na história da humanidade. Mas não tem uma condução consciente, ou pelo menos uma condução instintiva. Muito menos uma diretriz política organizada, porque sequer temos uma filosofia precursora diante da velocidade das mudanças que se acumularão.

A cobiça tanto pode ser negativa como pode ser o motor da história, essa cobiça que empurrou o progresso material técnico e científico, que fez o que é a nossa época e o nosso tempo, é um fenômeno com muitas frentes.

Paradoxalmente, essa mesma ferramenta, a cobiça, que nos impulsionou a domesticar a ciência e a transformá-la em tecnologia nos precipita para um abismo nebuloso; para uma história que não conhecemos, uma época sem história, e nos está derrubando sem visão nem inteligência coletiva para seguir colonizando e perpetuar nos transformando.

Se algo caracteriza o ser humano, é ser um conquistador antropológico. Parece que as coisas têm autonomia e se submetem aos homens. Por um lado ou outro, sobram ativos para vislumbrar essas coisas ou os caminhos. Porém é impossível coletivizar as decisões. Mas, claro, a cobiça individual triunfa largamente sobre a cobiça superior da espécie. Deixando mais claro: o que é o todo?

Para nós é a vida global do sistema Terra, incluindo a vida humana com todos os seus frágeis equilíbrios, que faz o possível para que nos perpetuemos. Por outro lado, um sistema mais sensível, menos opinativo e mais evidente.

No Ocidente, particularmente, porque daí viemos, embora vindos do Sul, as repúblicas nasceram para afirmar que os homens são iguais, que ninguém é melhor que ninguém, que seus governos deveriam representar o bem comum, a justiça e a igualdade. Muitas vezes, as repúblicas se deformam e caem no esquecimento das pessoas, aquelas que andam pelas ruas, o comum.

As repúblicas não foram criadas para vegetar em uma zona nebulosa; ao contrário, são um grito na história para fazer a vida funcional para os seus povos e, portanto, as repúblicas se devem às maiorias e às lutas para a promoção das maiorias.

Pelo que foi, por reminiscências feudais que estão em nossa cultura; por esse classismo dominador, talvez pela cultura consumista que nos rodeia, frequentemente as direções das repúblicas adotam um viver diário que exclui, que põe distância para o homem da rua. Pelos fatos, esse homem deveria ser a causa central da luta política na vida das repúblicas. Os governos republicanos deveriam se parecer cada vez mais com os seus respectivos povos na forma de viver e na forma de comprometer-se com a vida.

O fato é que cultivamos arcaísmos feudais, complacências consentidas; fazemos diferenciações hierárquicas que no fundo sufocam o que as repúblicas têm de melhor: que ninguém é melhor que ninguém. O jogo deste e outros fatores nos segura na Pré-História. E hoje é impossível renunciar à quando a política fracassa. Assim se estrangula a economia, se esbanjam os recursos.

Ouçam bem, queridos amigos: a cada minuto do mundo se gastam dois milhões de dólares em orçamentos militares nessa Terra. Dois milhões de dólares por minuto em armamentos! A pesquisa médica de todas as enfermidades, que tem avançado enormemente e é uma bênção para a promessa de viver uns anos a mais, essa pesquisa recebe a quinta parte do orçamento destinado à pesquisa militar.

Esse processo, do qual não podemos sair, é cego. Mantém o ódio e o fanatismo, a desconfiança, fonte de novas guerras e desperdício de fortunas. É muito poético nos autocriticarmos. E creio que seria inocência reivindicar que existem recursos para poupar e gastar em outras coisas úteis. Isso seria possível se fôssemos capazes de fazer acordos mundiais e prevenções mundiais com políticas planetárias que nos garantissem a paz e que dessem, aos mais fracos, as garantias que não temos.

Encontraríamos enormes recursos para coibir e corrigir as maiores vergonhas desta terra. Mas basta uma pergunta: nessa humanidade, hoje, aonde vamos sem a existência dessas garantias planetárias? Então cada um tem seu arsenal de acordo com sua magnitude. Estamos nessa situação porque não podemos raciocinar como espécie, apenas como indivíduos.

As instituições mundiais, particularmente hoje, vegetam à sombra consentida das dissidências das grandes nações que, obviamente, querem reter a sua cota de poder. Até que o homem saia dessa pré-história e arquive a guerra como recurso quando a política fracassa, é uma longa caminhada e um desafio que temos. E dizemos isso com conhecimento de causa. Conhecemos as solidões das guerras.

Sem dúvida, esses sonhos, esses desafios que estão no horizonte, implicam lutar por uma agenda de encontros mundiais que comecem a governar nossa história e superar, passo a passo, as ameaças à vida. A espécie, como tal, deveria ter um governo para a humanidade que supere o individualismo e trabalhe por recriar as cabeças políticas que ajudem o caminho da ciência, e não só os interesses imediatos que estão nos governando e sufocando.

Paralelamente, temos que entender que os indigentes do mundo não são da África ou da América Latina, são da humanidade toda; e ela deve, como tal, ser globalizada, empenhar-se no seu desenvolvimento, em poder viver com decência por si mesma. Os recursos necessários existem, estão nesse depredador desperdício de nossa civilização.

Há poucos dias fizeram aqui, na Califórnia, em um posto do de , uma homenagem a uma lâmpada elétrica que há 100 anos está acesa. Cem anos que está acesa! Quantos milhões de dólares nos tiraram do bolso fazendo deliberadamente porcarias para que a gente compre, e compre, e compre, e compre!

Mas essa globalização de olhar por todo o planeta e por toda a vida significa uma mudança cultural brutal. É isso que a história está nos pedindo. Toda a base material tem mudado e oscilado, e os homens, com nossa cultura, permanecemos como se não houvesse nada e, em lugar de governar a civilização, esta nos governa.

Faz mais de vinte anos que discutimos a taxa Tobin (sobre transações financeiras). Impossível aplicá-la a todo o planeta. Todos os bancos, donos do poder financeiro, se levantariam feridos em sua propriedade privada e não sei quantas coisas mais. Sem dúvida, isso é paradoxal. Sem dúvida, com talento, com trabalho coletivo, com ciência, o homem, passo a passo, é capaz de transformar em verde os desertos.

O homem pode levar a agricultura ao mar. O homem pode criar vegetais que vivam com água salgada. A força da humanidade se concentra no essencial. É incomensurável. Ali estão as mais potentes fontes de energia. O que sabemos da fotossíntese? Quase nada. Sobra energia no mundo se trabalharmos em como usá-la com eficiência.

É possível arrancar quase toda a miséria do planeta. É possível criar estabilidade e será possível às gerações futuras, se conseguirmos pensar como espécie e não só como indivíduos, levar a vida para a galáxia e continuar com esse sonho conquistador que nós, seres humanos, levamos em nossa genética. Mas, para que todos esses sonhos sejam possíveis, precisamos nos governar, nós mesmos, ou sucumbiremos porque não somos capazes de estar à altura da civilização que fomos desenvolvendo.

Esse é nosso dilema. Não nos distraiamos só remendando as consequências. Pensemos nas causas de fundo, na civilização do desperdício, na civilização do use-e-jogue-fora, pois o que estamos fazendo é tirando o tempo de vida, gastando mal, perdendo tempo com questões inúteis.  Pensem que a vida humana é um milagre. Que estamos vivos por milagre e que nada vale mais do que a vida. E que nosso dever biológico é, além de todas as coisas, respeitar a vida e estimulá-la, cuidar dela, procriar e entender que a espécie somos nós.

FORÇA, PEPE!

PEPE MUJICA: “NADA VALE MAIS DO QUE A VIDA”Foto: Ricardo Stuckert

O mundo todo vem prestando homenagens e enviando mensagens de força e solidariedade para Pepe Mujica.

Logo depois de saber do diagnóstico de Mujica, o presidente Lula publicou em suas redes sociais uma mensagem ao amigo Pepe: “Ao irmão Pepe Mujica, minha admiração e solidariedade. Você é um farol na luta por um mundo melhor. Sempre estivemos juntos nos momentos bons e nos momentos difíceis. Muito carinho e força, meus e de Janja, para você e Lucía”.

Lula e Pepe Mujica têm uma relação política e são companheiros de longa data. Em junho de 2018, o ex-presidente do Uruguai visitou o ex-presidente Lula na masmorra de Curitiba. Em janeiro de 2023, já eleito e empossado presidente para cumprir seu terceiro mandato, Lula visitou Mujica em sua chácara, nos arredores de Montevidéu.

Do Brasil, também Gleisi Hoffmann, presidenta do PT, desejou “força ao companheiro Pepe Mujica”. “Você já mostrou ser capaz de superar muita coisa. Torcemos por você.” Já o cantor espanhol Alejandro Sanz escreveu longa mensagem em suas redes sociais:

“Senhor presidente Pepe Mujica, não sei se você chegará a ler isso. Mas quero te dizer que, para além da política, você é uma inspiração como pessoa. Sua forma de se comunicar, sempre a partir do reconhecimento de todas as classes sociais e sempre com a intenção de aproximar posições, a favor da boa convivência e da igualdade, me encheram de esperança neste mundo de empurrões e agitação (…)

Te desejo o melhor e espero que esta mensagem sem importância, mandada por um simples trovador, te ajude a se sentir um pouquinho mais amado, se possível.”

Zezé Weiss – Jornalista. Editora da Revista Xapuri.

PEPE MUJICA: “NADA VALE MAIS DO QUE A VIDA”
Foto: Ricardo Stuckert

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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