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25 gerações de resistência contra os mensageiros de Jurupari

Eu sou Gu-ê-Crig, único sobrevivente de um povo que se extinguiu. Dentro da nossa cosmovisão originária, povoa um personagem enigmático, maligno e demoníaco, ao qual os meus irmãos indígenas atribuem o nome de Jurupari.

As mulheres e crianças das aldeias ficam arrepiadas quando seu nome é mencionado. Ninguém sabe como é, ninguém conhece sua forma, porque ele nunca aparece, sempre atua através de mensageiros, que tomam formas humanas e sempre chegam aos territórios dos meus irmãos indígenas após um som estranho, imitando o ruído produzido por um instrumento de sopro feito de cabaça doce.

Chegam travestidos de inúmeros personagens e por onde passam deixam um rastro enorme de desestruturação, mudam o rumo dos caminhos, criando dessa forma encruzilhadas confusas e arriscadas. Intimidam os homens com artifícios perigosos qual choque de poraquê, desrespeitam as mulheres, principalmente as mais jovens, e ainda cometem um mal maior: espancam as crianças.

Os geraiseiros, que tomaram emprestado um pouco da descendência indígena e convivem nos sertões dos Gerais, afirmam que Jurupari aparece nas noites de lua minguante, no alto das copas de sabiú, planta típica daqueles Gerais. Nessas fases lunares, todas as noites, seus secretários, súditos e bajuladores se reúnem para ouvi-lo. Depois, tocam o tal instrumento de cabaça doce, dançam e desaparecem em várias direções.

Os geraiseiros ainda contam ser esta a causa da compactação do solo debaixo dos sabiús; por isso, nenhuma plantinha germina ali. Com toda certeza, Jurupari ficou sabendo dos paraísos indígenas desde muitas luas. Até os dias atuais, seus mensageiros e bajuladores ainda andam perseguindo meus irmãos. Não contentes com o que fizeram, os atormentam de diversas outras maneiras.

Antes, porém, de lhes mostrar a atual encruzilhada em que os seguidores de Jurupari fizeram enveredar os indígenas, vou relembrá-los um pouco da história que as nações indígenas construíram nos sertões de dentro, desta terra que mais tarde seria conhecida como Brasil.

Desde abril de 1500, quando as naus portuguesas chegaram ao litoral deste território, numa enseada batizada com o nome de Bahia de Todos os Santos, cerca de 25 gerações se passaram. Naquela época os meus ancestrais indígenas já estavam na região dos grandes sertões há pelo menos 550 gerações.

Quando eles chegaram ao centro do que hoje é o Brasil, uma sensação estranha lhes tomou conta: pensaram ter descoberto o paraíso, tal a opulência de recursos. As paisagens, com seus inúmeros rios de águas cristalinas, repletos de peixes, com seus variados frutos comestíveis, com uma diversidade enorme de animais e ainda com inúmeros abrigos naturais, os acolheram de forma tão carinhosa que eles souberam retribuir a acolhida com uma grande pitada de carinho cultural e harmonia.

Os ameríndios, como também nos apelidaram, chegaram neste ambiente como nômades, caçadores, pescadores e coletores das sobrevivências. As moradias eram os abrigos naturais ou cavernas, locais onde enterravam e veneravam os mortos. Nestes locais, sempre realizavam cerimônias, gravavam mensagens, ou simplesmente decoravam artisticamente suas paredes.

Mais tarde, com as diversas oportunidades que o ambiente oferecia, aprendemos a domesticar alguns dos vegetais nativos, e dessa forma alguns dos meus ancestrais se transformaram em horticultores.

Com isso, deixamos a moradia das cavernas e passamos a colonizar os verdejantes vales dessa terra, onde se implantaram grandes aldeões. Entretanto, mesmo vivendo em áreas abertas ou aldeias, nunca deixamos de visitar os abrigos naturais ou cavernas, as antigas moradias, pois sempre soubemos respeitar e reverenciar a memória de nossos antepassados.

O futuro chegou com a rapidez de um relâmpago, com sua ideologia economicista, passou sobre nossa ancestralidade como um rolo compressor.

Todos foram e são estereotipados na forma de vários preconceitos. Até o título de preguiçoso nos cunharam, simplesmente porque não aceitávamos, e não aceitamos até hoje, o regime da escravidão. Segmentos da sociedade, os fiéis mensageiros de Jurupari procuraram marginalizar meus antepassados de várias maneiras, incluindo o uso da força. E, por isso, muitos tiveram que refugiar nos rincões mais escondidos e inacessíveis dessa terra.

Entretanto, a cultura e sua identidade com a terra era tão forte que, mesmo deixando somente rastros, ficaram profundas heranças das inúmeras gerações na cultura do povo que foi se formando e mais tarde recebeu o nome de brasileiro. E, se tiverem a honestidade de olhar além das aparências, verão que não somente os brasileiros, mas muitos outros povos incorporaram no seu viver cotidiano elementos que os indígenas lhes legaram.

Assim aconteceu com o feijão, por exemplo, tão apreciado como alimento desde o Brasil até o Texas. Esse vegetal é uma planta da família leguminosae que foi domesticada pelos meus ancestrais da mesma forma que domesticaram o abacate, o abacaxi, o tomate, o pimentão e a pimenta, plantas essas que foram muito disseminadas mundo afora.

Também domesticaram o tabaco, planta da família solanácea, e o usavam em rituais para amenizar as dores e situações de estresse, da mesma forma que meus irmãos do altiplano andino usavam e ainda usam a coca para amenizar os efeitos da altitude e evitar a labirintite causada pela escassez de oxigênio.

A sociedade que se formou, cujos valores são modelados pela conhecida civilização ocidental de origem europeia e arábica, aproveitou essas plantas e deu a elas outras formas de uso.

Os irmãos mexicanos criaram o milho, cruzando dois tipos de gramíneas nativas. Esse cereal irradiou com tamanha força e tamanho sucesso entre todos os meus ancestrais das Américas que hoje movimenta parte da economia mundial.

Algumas das bebidas, cremes e doces que também meus ancestrais utilizavam, e alguns de seus descendentes ainda utilizam, alcançaram mercados mundiais, como o guaraná, bebida energética e refrescante, os cremes das palmeiras Açaí, Patauá, Bacaba, Buriti… aos quais atribuíam o nome de sembereba. O creme de Cupuaçu, as Castanhas do Pará, do Caju, do Baru, do Pequi, amendoins… fazem parte de uma imensa listagem dessa contribuição.

Um dos nossos cremes ficou tão famoso que o mundo até esquece sua origem indígena. Trata-se do creme da amêndoa do cacaueiro, planta nativa das florestas equatoriais, cujo doce hoje em dia é o mais apreciado da Terra, isto porque os europeus se apossaram dele e nele adicionaram o leite taurino, dando origem ao chocolate.

Os indígenas ensinaram o mundo a usar o látex da seringueira, planta nativa do ecótono Amazônia e Cerrado. Hoje essa matéria-prima movimenta desde os corpos das pessoas pelos solados dos sapatos até caminhões e aviões pelos pneus.ind1

Também domesticaram batatas, inhames e mais de trezentas raças de mandioca, que hoje é alimento importante na vida de muita gente. Ensinaram a consumi-la cozida ou assada e a processá-la na forma de tapioca, polvilho, crueira, puba, beijus, e dela fizeram o primeiro alimento desidratado da história da humanidade: a farinha.

Ensinaram os novos colonizadores a consumirem muitas plantas nativas para saciarem a fome e curarem certas doenças. Assim, a sociedade aprendeu a consumir a mangaba, o caju, o pequi… a beber o chá da douradinha e da congonha-do-campo e a curar a malária usando a entrecasca do quinino.

Muitos outros segredos vegetais conseguiram ensinar ao novo colonizador, que hoje os incorporou na farmacopeia universal. Entretanto, muitos ainda estão guardados com o pouco que restou dos indígenas, não por egoísmo, mas porque a sociedade que se formou nunca se importou em conhecê-los para o benefício de toda a humanidade.

Mas os mensageiros de Jurupari conseguem esses conhecimentos para uso comercial e empresarial, na forma como a sociedade designa de biopirataria.

Este é o resumo da minha e da nossa trajetória indígena. Não sei quantas línguas desapareceram. Sei somente que sou o único sobrevivente de um grande massacre que ainda fala a antiga língua que era do meu povo Akroá.

Vivo refugiado, solitário nas escarpas de uma serra. Era jovem quando os mensageiros de Jurupari chegaram à minha aldeia. Não pude suportar tamanha dor e saí correndo feito um caititu espantado. Quando olhei para trás, ainda pude enxergar, por entre os galhos, minha graciosa rede de buriti.

Os meus outros irmãos indígenas, que hoje tentam viver em aldeias, devem ter organizado mais de uma vez a sua sociedade e a sua cultura com os restos que salvaram do impacto, readaptando-os de acordo com as novas condições e necessidades.

Tudo que meus irmãos indígenas ensinaram aos mensageiros de Jurupari eram coisas verdadeiras e úteis. Em contrapartida, quase tudo que nos falaram e prometeram eram falsidades e mentiras. Digo quase tudo, porque sei que nem todos são mensageiros de Jurupari.

Apenas uma verdade eu e meus irmãos aprendemos com os mensageiros e que, por incrível coincidência, se assemelha à história que meu povo contava sobre Jurupari e que pode ser resumida numa única frase: o Diabo, quando não vem, manda o secretário.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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