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DONA FLOR: "TERRA DUS ÍNDIO, TERRA DUS NEGRO"

DONA FLOR: “TERRA DUS ÍNDIO, TERRA DUS NEGRO”

Dona Flor: Terra dus índio, terra dus negro

O povão rico daqui [da Chapada dos Veadeiros], o mais véi daqui, depois que conheceu os turista e eles pegou e vendeu as terra tudo e mudou pra lá …

Por Dona Flor do  

O povo foi todo daqui pra Brasília, Formosa, e agora tá doido pra voltar, mas o dinheiro que eles têm não dá pra voltar mais. Isso aqui era lindo demais, daqui cê escutava us índio tocando flauta ali. À noite, cê ia ver o movimento dus índio aqui. 

Quando eles chegava lá [no Solarium], a gente sabia que eles chegou por causa do cocar. De galinha da angola, avuava tudo, a gente sabia que era eles que tava chegano. Os cachorro não latia. Eles largava dois latido e depois baixava o tom. A gente sabia que era eles.

Antes de ficar fazendo muito movimento praqui, lá em cima eles tocava lá, nós escutava aqui. Gaita é bunitu, bunitu. É terra deles, né? É terra dus índio, terra dus escravo. Isso aqui não era de ninguém. [Foi] depois que o povo tomou deles. Aí eles vão lá pro . Vai vendeno as terra e eles vão [indo embora].

A do Moinho [povoado de Alto Paraíso de ] é uma história mesmo, não tinha cerca de arame, não tinha cerca de pedra, aqueles murão bem altão.

Pessoal andava a pé mesmo. Pessoa igual eu não tinha cavalo. E a gente vai ficano veia, o povo vai vendeno tudo. O povo aqui fazia cachaça, o alambique era bem ali na casa da Ceição, eu alembro que eu ia mais minha vó, ela trazia pano pra costureira fazer. 

Até costureira tinha fixa aqui, tinha costureira que só costurava pra homem, agora tinha as outra que fazia pras muié. Dona Maruca fazia pra homem e pra muié. Fazia terno, xadrez. Era bom porque as muié fiava, fiava algodão, tingia linha, a outra ia fazia o tecido, a outra cortava, fazia os mutirão. 

Quando uma muié tava nos dia de ganhá o neném e ela tinha que fazer a roupa porque não tinha roupa, aí as otra muié juntava todo mundo e ia fiá pra ela. Aí quando ela ganhava o neném, [e o] neném já tava engatinhando, ela voltava pra fiá pras muié. Ia uma pagano a outra.

E a vida foi indo, foi conhecendo pano, otrus tipo de pano, confoi um pouco veio a roupa feita e agora cabô, as muié não sabe mais ninguém cortar, não sabe costurar, não sabe fiá, não sabe tingir uma linha, não sabe fazer um novelo de linha, não sabe nada. E por isso veio o preço que veio, cê compra uma roupa hoje, cê põe lá na máquina pra lavar, daqui a pouco tá tudo desfiado.

Naquele tempo que as muié fazia renda, fazia tricô, muié fazia isso, fazia aquilo, hoje não tem mais nada. Hoje pra cê ver um pé de algodão no quintal precisa ser parteira, se não for, não planta mais. Aí depois foi ficano assim (…). 

Eu tive meus 18 filhos assim, eu sofri muito. Eu não tinha terra, eu não tinha casa, porque no meu tempo qualquer casa era casa. Fazia uma casinha de palha, não tinha nem fogão, fazia umas de pedra. 

Às vezes a gente ficava até debaixo dos pau, pé de angico, pé de braúna, pé de aroeira, pé de tingui. Debaixo a gente varria tudo, e aí a gente ficava uma de lá, outra de cá e botava um pau atravessado no meio, acendia o debaixo e aí pegava as panela e enfileirava assim, o fogo ficava debaixo. 

E ali quando não tava chovendo ficava era tempo. Quando a chuva se iniciava, corria lá no mato pegava uma palha dobrava assim, só pra dormir. Não tinha como fazer, não tinha nada. Não podia fazer uma casa na terra dos otrus. Porque se a gente fizesse a casa, a gente era posseiro, aí o dono não aceitava. Aí às vezes ele dava permissão pra gente fazer.

Aqui pro [povoado do] Moinho, eu já mudei pro que é meu. Eu lutei, lutei, comprei um terreno, comprei uma casinha velha de palha que eu agradeço a Deus até hoje. Só tinha adobe no fogão.

Comprei essa casa com fumo, que é o que ocêis chama de tabaco, frango, ovo, sabão de tingui, farinha, polvilho, gergelim, aí matei um porco, vendi também e fiz o negócio. 

Eu morava na mata, e eu já tinha muito filho na mata, e eu queria pôr meus filho na . A gente foi mudano de um lugar pra otru. Até que o homem que me criou e eu fui lá e pedi pra que ele me desse um pedaço de terra que eu precisava fazer uma roça, criar meus filho, que eu precisava de ter uma coisa pra mim vender, pra eu vim pra cá e pra botá os meus filho na escola. Que ele viu que não estudei e que eu queria que meus filho estudasse.

E ele falou assim:

– Olha, eu vou lá pra mim ver essas terras.

Aí ele mandou um rapaz pra vim ver essas terras, aí eu mostrei onde eu queria, queria perto do rio, mas não muito perto. Aí ele deu pra mim a terra aqui, meu marido acabou de criar mais ele, eu acabei de criar mais ele, então ele já conhecia nós, nós trabalhava pra ele. Aí ele mandou plantar meia.

– Não, meia não, eu tem muito fii, cobra renda, cê tem muita terra. 

– Tá bom, então assim no meu controle, se cê colher dez sacos de arroz, um é meu, nove é seu.

(…) Aí fui roçar a roça, botou fogo nessa roça, queimou tudo, aí foi meu marido, muntuou os pau pro fogo não passa pro otru mato, fazia aquela cercona assim, aí botava fogo e queimava, eu já ia ali já panhava a cinza já guardava lá no cestão pra fazer sabão. E foi crescendo assim…

Dona Flor do Cerrado – Florentina Pereira Santos, erveira, raizeira e parteira cerratense, falecida em 09/08/2023, aos 85 anos, em O partejar e a farmacopeia de dona Flor – História e ensinamentos de uma mestra quilombola, organizado por Juliana Floriana Toledo Watson, editora Avá, 2022.

Terra dus índio, terra dus negro
Foto: Isabelle Araújo/Agência Brasil/Divulgação

DONA FLOR DO MOINHO É HOMENAGEADA APÓS A MORTE

“Em uma noite estrelada, a flor retornou à terra”. Foi dessa forma que a morte de Dona Flor do Moinho foi comunicada em suas redes sociais.

A parteira e raizeira que vivia no povoado de Moinho, na Chapada dos Veadeiros (GO), morreu esta semana aos 85 anos. “Todas as que ela semeou germinaram e germinarão”, concluiu o post, feito no perfil oficial de dona Flor.

“Que sorte eu tive de conhecê-la pessoalmente. De ela segurar minha barriga e abençoar meu filho. De ter ouvido o puxão de orelha dela. Aceita isso aí que tá dentro de você, menina. Aceita de coração porque isso aí é pura vida’”, postou uma seguidora de dona Flor do Moinho, a fotógrafa Isabelle Araújo.

Segundo ela, dona Flor do Moinho costumava dizer que é preciso colocar mulher grávida pra plantar porque elas têm vida nas mãos. “Tá com vida nela toda e a planta sente”, dizia, de acordo com o relato da fotógrafa. Isabelle acredita que a parteira e raizeira cumpriu sua missão. “Tomara que a gente consiga ter a sabedoria de seguir todos os seus conselhos”, finalizou.

A jornalista Mara Régia fez uma à dona Flor do Moinho no programa Viva , da Rádio Nacional. “Justo quando se prepara para fazer florir margaridas no chão de Brasília, uma flor muito especial acaba de deixar o chão de sua terra para viver a eternidade dos céus”, disse, fazendo referência à Marcha das Margaridas, que acontece na próxima semana na capital federal.

“Tive o prazer de conhecê-la pessoalmente quando em uma visita à Chapada dos Veadeiros, onde agora ela descansa em paz”, contou Mara, ao citar o que dona Flor do Moinho deixou por escrito para que fosse colocado em sua lápide:

“Quando eu morrer, não quero choro. Quero todo mundo alegre. Já vivi o que tinha que viver. Já fiz o que tinha que fazer. Cumpri minha missão aqui na terra. Na minha morte, a única coisa que quero é perdão e água. Porque gerei na água, vivi minha vida toda na água e não quero morrer com sede”.

DONA FLOR: "TERRA DUS ÍNDIO, TERRA DUS NEGRO"
Foto: Reprodução/Internet

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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