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ACAMPAMENTO DO LORIN: 55 ANOS

ACAMPAMENTO DO LORIN: 55 ANOS

Acampamento do Lorin: 55 anos

No dia 20 de julho de 1969 o primeiro homem pisava na lua. Nesse mesmo dia, há 55 anos, era noite e um grupo grande de jovens, adolescentes e crianças, sob os olhos cuidadosos e amorosos do casal Alice e Louraci Chrisóstomo Noleto, corria e brincava de pega-pega, na praia de areia e brancura realçada pela luz da lua cheia.

Por Laurenice Noleto Alves

O cenário da praia deserta era até parecido com o que, naquele mesmo momento, exploravam o engenheiro aeroespacial e astronauta norte-americano Neil Armstrong e seus companheiros de viagem.

Cá na terra, os pimpolhos de Lorin – apelido de Louraci – e alguns amigos eram os únicos ocupantes da Ilha da Gaivota, no rio Araguaia, em frente à pequena e bucólica cidade de Araguacema, no extremo norte de , hoje Tocantins.

Todos riam e rolavam na areia iluminada pelo magnífico luar, escondendo-se atrás de pequenas moitas de um arbusto seco e contaminando-se pela alegria da brincadeira ingênua, sem sequer se ligarem no acontecimento científico marcava a história da humanidade e cujas notícias impressas, faladas e televisionadas corria o mundo anunciando a chegada do homem à lua.

Era a primeira vez, depois de décadas, que Lorin, agora um fiscal arrecadador, com 54 anos, voltava à sua encantada e muito cantada terra natal. Para levar sete dos onze filhos e mais cerca de uma dezena de outros jovens filhos e filhas de velhos amigos de Araguacema, ele alugou o caminhão do compadre Manelzinho e pegou quatro dias de viagem pela Belém-Brasília (a BR-153), que só tinha asfalto até a altura da cidade de Ceres.

Na hora do almoço, paravam o caminhão na beira de um rio ou riacho e Alice fazia uma panelada de “Maria Izabel”, arroz com carne seca ou linguiça, enquanto a meninada brincava na água como se não estivessem passando horas num pau-de-arara.

À noite, outra parada, mais uma de uma panela só, e as “menina-mulher” dormiam em cima do caminhão, em colchões, enquanto os homens passavam para debaixo do caminhão, cobrindo o chão bruto com uma grande lona e onde também abriam os seus colchonetes.

ACAMPAMENTO DO LORIN: 55 ANOS
Foto: Família Noleto

Depois daquele ano, praticamente nenhum 20 de julho passou sem que Alice e Lorim estivessem de férias em Araguacema com a filharada e depois com netos, netas e bisnetos.

Logo descobriram que, ao invés de passar somente os dias na praia, voltando para a casa de parentes na cidade, o melhor mesmo era ficar morando toda a temporada naquela areia branca e limpa, tomando banhos nas águas mornas do Araguaia. E essa mudança temporária para uma das praias de Araguacema foi se repetindo ano a ano.

Lorin e Alice foram repetindo, ano após ano, aquela noite de encantamento, ensinando a filhos, netos e bisnetos os saberes acumulados como filho das matas e das águas. E assim, todo ano, mesmo depois da partida do casal, sua família continua repetindo esse ritual, numa respeitosa relação de amor à mãe natureza.

E, nas noites de lua cheia, sempre tem fogueira, muitas cantorias, risos, comida caseira boa e farta – como Dona Alice sempre garantia -, a cerveja gelada e os causos que resgatam a e reverenciam os que já se foram.

E, procurando garantia de um pouco de privacidade, o Acampamento do Lorin é montado numa praia na beirada do Araguaia, em Araguacema, onde as águas do rio mais se espraiam e lhes dão o título das mais lindas de todos os mais de 1.200 quilômetros de percurso por onde passa, marcando o limite entre os estados de Goiás, Mato Grosso, Tocantins e Pará.

Talvez se possa dizer que o Araguaia é o divisor dos biomas e Mata Amazônica. O povo goiano tem essa prática, que é uma verdadeira paixão: se mudar, “de mala e cuia”, para as praias que surgem alvas e quando as águas do rio baixam, na época da seca. É um tipo de turismo quase único no Brasil. São milhares de famílias que costumam “montar acampamento” no mês de julho no rio Araguaia, durante as férias escolares.

ACAMPAMENTO DO LORIN: 55 ANOS
Foto: Acervo Família Noleto

E o “Acampamento do Lorin” é um símbolo da possível convivência totalmente pacífica, harmoniosa e amorosa entre seres humanos e demais seres viventes da terra.

Ali, o grande rancho de palha é feito com esteiras fabricadas pelos próprios moradores , que depois são guardadas para voltarem a ser usadas no ano seguinte. Nele instalam uma cozinha, o redário e conjuntos de mesas e cadeiras de plástico, que também vivem por muitos e muitos anos.

A energia é oferecida por um motorzinho a diesel, mas não tem TV e o celular quase não é usado, pois a Internet também não chega com facilidade. Serve mais como máquina fotográfica. A abundância maior do Acampamento do Lorin, desde sempre, é a alegria natural e contaminante de todos os seus descendentes. Alice e Lorin continuaram a promover esse encontro anual da família, enquanto vida tiveram.

Lá na “Cidade Alta”, numa larga avenida que leva o seu nome – Dr. Louraci Chrisósotomo Noleto – poucas pessoas sabem quem foi aquele homem que tem também ali um busto de bronze em sua homenagem (trabalho artístico do Louraci Filho). Lorin ficou órfão.

O pai (Abrão Jaborandy Noleto, vindo de Pastos Bons, no ) foi morto com um tiro de espingarda na testa, quando tomavam a merenda do final da tarde na varanda do sobradão na beira do rio. O filho tinha apenas dois anos.

E a mãe, Raimundinha Costa Noleto, nascida ali mesmo, quando a cidade ainda se chamava Santa Maria do Araguaia, era filha única de rico fazendeiro beneficiado por uma “Sesmaria” e título de coronel da Guarda Nacional no do Brasil Colônia, quando na cidade existiam apenas umas poucas casas em volta de uma igreja, um grande presídio e muitas guerras travadas com os donos originários de todas aquelas terras, os Karajá e provavelmente também os Xavante que têm história de valentes guerreiros. Ela morreu de “morte morrida” quando Lorin – ou Lôro – tinha apenas 12 anos.

ACAMPAMENTO DO LORIN: 55 ANOS
Foto: Acervo Família Noleto

Sem nenhum tutor, apesar de família muito rica, o órfão ficou sem nenhum dinheiro e saiu no mundo, trabalhando primeiro como mecânico e barqueiro do Araguaia, depois subiu o rio e, encontrando-se com o irmão de criação, Dodô (Boanerges Tavares de Souza), virou garimpeiro de diamantes, mergulhando como escafandrista, aprendeu música e a tocar praticamente todos os instrumentos de sopro e de corda, integrando a Orquestra 13 de maio e a Banda de Jazz Popular, formada somente por garimpeiros, na pequena vila de Cassununga, distrito de Guiratinga, no Mato Grosso.

Ali conheceu Alice, casou-se e viveu por longos anos, quando nasceram sete dos seus onze filhos (Louralice, Lenice, Letice, Laurice, Laurenice, Louraci Filho e Lauro).

Depois, nasceram Laurenito, Abrão e Wagner em Iporá, para onde a família se mudou em busca de escola para os filhos. E, em 1959, mudaram-se todos para Goiânia, ainda à procura de escola pública para que os filhos continuassem estudando e onde nasceu o rapa do tacho, Zênio.

Depois dos filhos criados, foi a vez dele próprio, que já era fiscal do , formar-se em Direito, aos 65 anos.

Lôro e Alice ensinaram os filhos a viverem com honestidade, dignidade e simplicidade. A amarem sua família e Araguacema, respeitarem a natureza e, ainda, mostraram que a felicidade é maior quando se é compartilhada. Pra isso, teriam sempre que lutar como guerreiros, porém “sem perder a ternura jamais”.

Nos Acampamento do Lorin – antes, durante todo julho e, agora, somente nos últimos dez dias do mês – a fraternidade, a convivência respeitosa com a mãe natureza, a alegria e a música são as marcas do sucesso que perdura durante todos estes últimos 55 anos.

Seja na hora de repetir a tradição indígena ensinada pelo pai, fazendo um “Birarubu” (cabeça de boi inteira enrolada em folhas de bananeiras e assada numa fogueira acesa dentro de uma grande cova na areia); seja nas cantorias com toques de violões, pistons, saxofones, pandeiros, chocalhos, em volta da fogueira em noite de lua cheia; ou simplesmente deitados naquela areia fina, já na “praia dos Noleto” (do lado do Pará, na barra do Chicão, uma praia mais afastada da “muvuca”), só vendo o piscar das luzes da cidade, de papo pro ar, no silêncio de uma noite escura e observando as inúmeras constelações que disputam lugar para brilhar no céu.

Eu cresci assim feliz. E sabia.

Laurenice Noleto – Jornalista goiana. Conselheira da Revista Xapuri. 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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