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Mitos e Lendas do Planalto Central:

O ANDANTE GERAISEIRO

Mitos e Lendas do Planalto Central: O Andante Geraiseiro 

Seu Nhandu era um senhor esguio, pernas compridas e tez morena clara. Ninguém sabia ao certo sua moradia. Era um andarilho dos gerais. Nada se ouvia de sua boca a não ser, vez em quando, um lapso de humm… humm…!

Percorria época sim, época não, as feiras animadas, que existiam nos pequenos povoados daqueles sertões de dentro. Sempre carregava um velho e surrado alforje, no qual colocava alguns presentes que ganhava dos feirantes: farinha, rapadura, sal, arroz e até beijuzinho de tapioca. 

Às costas trazia um saco de estopa com alguma coisa volumosa, leve e disforme, que despertava em todos certa curiosidade. Não fazia mal a ninguém.

Sempre tranquilo, andava com olhar aguçado reparando tudo que via; às vezes se admirava com uma ou outra coisa e, com muita atenção e sinal de respeito, ouvia a cantiga dos cantadores. Seu semblante só mudava quando pressentia o som de uma rabeca.

Ficava parado ao lado das rodas de pessoas que conversavam e trocavam opiniões sobre assuntos variados. Parecia se inteirar dos noticiários. Mas nunca dizia nada, nem pedia as coisas, o agrado vinha de graça, porque todos gostavam dele. Agradecia com gesto singular e por isso todos pensavam tratar-se de um ser que não possuía a propriedade da voz. Nunca pronunciou uma só palavra.

O ANDANTE GERAISEIRO
Foto: Pintura de Otoniel Fernandes Neto

Quando a feira ia chegando nos finalmentes, ele tomava um rumo qualquer e partia, ficava às vezes até três meses sem voltar naquele local. No outro fim de semana, lá estava ele na feira de outro povoado, carregando o mesmo tipo de comportamento. No final, sumia novamente. Ninguém sabe para onde ia.

Curioso é que, em todos os lugares que aparecia, era conhecido pelo codinome de “Seu Nhandu”, certamente apelidado pelos feirantes. A alcunha de Nhandu deveria ser pelo porte esguio, semelhante ao da ema, ave conhecida pelos geraiseiros por este nome.

Certa ocasião, Seu Nhandu desapareceu por muito tempo das feiras, cerca de três anos, mais ou menos. Todos sentiram sua ausência. E não faltaram comentários sobre o paradeiro.

Uns perguntavam “será que ainda é vivente?”; outros atreviam a dizer que onça o comera. E, assim, por esses caminhos situados entre adivinhação e lamentação, o povo das feiras desenhava o destino de Seu Nhandu.

Um belo dia, era sábado, não faz tanto tempo assim, quando as chuvas de outubro ainda não haviam dado o ar da graça e os riachos já estavam secos e o povo, meio atônito, se agonizava na feira de Santo Antônio das Águas Puras para se remediar do pouco que encontrava, ele reapareceu.

Naquele momento, uma figura esguia, maltrapilha como sempre e com um saco de estopa às costas, aponta na ladeira do areão. O povo, meio que surpreso e estupefato, não teve dúvida: – É o Seu Nhandu. E à medida que se aproximava da feira, todo aquele povo, num gesto simbólico, parecia reverenciá-lo.

Seu Nhandu, como sempre, chegou sereno, mas dessa vez estava sem os alforjes e dizem que alguém o notou angustiado. Foi então que ele, num gesto educado e calmo, pegou um banquinho de madeira e dirigindo-se ao centro da feira, assim se expressou: “Hoje tenho uma história para lhes contar”.

Um misto de comoção e surpresa tomou conta do povaréu, pois todos achavam que ele era mudo.

Foi então que ele se pôs a falar:

– Povo de Santo Antônio, meus irmãos, fiquei muito tempo longe de vocês, senti a falta de cada um como se sente a falta de um ente querido. Senti também tamanha saudade, que às vezes meus olhos não suportavam a quantidade de águas, e eu chorava.

Meu nome é Antônio e não Nhandu como vocês carinhosamente me chamam. Nas feiras dos povoados por onde andei, percebi no ar uma grande curiosidade sobre o conteúdo que eu carregava no saco de estopa. Hoje vou revelar a vocês. São sementes de tingui, conhecidas em outras localidades como timbó, hoje as deixo para vocês.

Nesses quase três anos de ausência, pude percorrer vários cantos desse imenso gerais. Presenciei coisas estarrecedoras.

Quando eu era mais jovem, gostava de ficar muito tempo à beira dos rios para ver a piracema da manjuba. Ficava dias. E me perguntava de onde vinha tanto peixe. Na espreita ao lado, vibrava quando surubins e dourados, esganados como sempre, se atiravam sobre o cardume. Gostava de visitar as aguadas, as lagoas que se formavam ao longo dos rios, recheadas de peixes.

E, também, descansar de barriga para cima à sombra de um pequizeiro onde inutilmente tentava contar o número dos bandos das aves de arribação. O sabor gelatinoso dos puçás e o agridoce vinho do buriti criavam a sensação de que eu estaria entrando no sétimo céu de Alá, descrito pelo profeta no livro do Alcorão.

Quase entrava em delírio quando algum morador desses muitos ranchos de buritis dos gerais me oferecia um copo de lata recheado com café de fedegoso adoçado com rapadura.

O ANDANTE GERAISEIRO
Foto: Pintura de Otoniel Fernandes Neto

Pois sim, meus irmãos! Nesses três anos em que me ausentei de vocês, saí quase que como numa missão para rever esses locais. O resultado dessas visitas veio como um saco de desilusão, tal qual o que carreguei a vida toda, recheado de timbó e  tingui.

Nada das minhas lembranças existe mais, as águas, as piracemas, as lagoas, os pequizeiros, os ranchos de buritis, todos queimados. Aliás, no último pelo qual passei ainda se ouvia o estalar das brasas.

Pensei, meu Deus, o que terá acontecido?

Foi aí que recordei das profecias do velho João-Cego, que morava lá pras bandas do Tabuleiro da Conceição e sempre gostava de repetir: “Vocês mais jovens tomem cuidado, porque chegará um dia em que gente estranha vai chegar neste lugar dizendo para todos bem assim:

“Quero terra”.

“Quero água”.

E, para conseguir esses bens, usarão de meios escusos, perigosos e enganadores, que eles escondem atrás de uma botija como se esta fosse do bem. Uma vez instalados, roubarão tudo que é seu, tudo que você ama e construiu, roubarão a vida de vocês que, no fundo, se confunde com a vida dos rios e dos gerais.

Eu vim aqui hoje até vocês, para lhes suplicar duas coisas: Espalhem essas notícias e nunca deixem que os forasteiros ou seus mandantes lhes roubem a alma e tirem de vocês a capacidade de sonhar.

Dizendo assim, com uma voz forte e sonora, pronunciou a frase latina: “Quod habeo tibi do”.

Depois, mansamente desceu do banco, colocou-o no local onde o pegou e seguiu mundo afora no rumo do areão.

O povo, atônito, não sabia o que fazer, nem o que dizer, um silêncio fundo tomou conta do lugar. Ninguém deu um pio.  Quando todos acordaram de seu estado quase letárgico e procuraram pelo senhor Antônio, ou Seu Nhandu, este já havia sumido.

Só se avistou no centro da feira um monte de sementes secas de Tingui.

http://xapuri.info/fabula-pe-de-sabiu-felicidade-ganancia/

O ANDANTE RAISEIRO
Foto: Pintura de Otoniel Fernandes Neto
 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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