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JÚLIA DO BOM DESTINO

JÚLIA DO BOM DESTINO

Júlia do bom destino

O meu Bom Destino 

Meus olhos sondavam a escura que teimava em fechar o caminho cheio de curvas e desvãos. O sol, aos poucos, ia rasgando a escuridão da madrugada e iluminava os nossos passos rápidos, como deve ser o caminhar de quem foge.

Por

Fugíamos, minha mãe e eu, do sofrimento e da solidão.

A mão de minha mãe, que quase me arrastava por cima de troncos e pontas de tabocas (um tipo de bambu), era quente e úmida, igual à floresta em que estávamos perdidas.

Em alguns momentos corríamos, rompendo no peito a barreira de espinhos que parecia querer no deter.  Com braços, pernas e peito sangrando, aqui e acolá trocávamos olhares, numa cumplicidade silenciosa de quem sabia que nunca mais voltaríamos para aquele lugar.

JÚLIA DO BOM DESTINO
Júlia e Marcos Jorge – Foto:

Enfim, o rio.  Imenso, transbordante em suas águas barrentas, sussurrava os meus ouvidos vozes que contavam histórias de bichos medonhos e cobras grandes, que meus olhos de menina amedrontada procurava nas ingazeiras que se debruçavam sobre a margem, e cujos frutos me alimentaram ao longo da viagem.

Enfim, o barco que nos recolheu subia o rio, lutando contra a correnteza. E os balseiros, traiçoeiros, iam rasgando com força as águas, abrindo na contramão nosso incerto futuro. 

Chegamos ao porto das catraias ao amanhecer, quase noite. A escadaria que existia à época era imensa, de uma altura assustadora. 

Meus olhos, aos poucos, foram sendo invadidos por coisas que eu não sabia o nome, cores nunca vistas, gente estranha; e, mesmo depois de acomodada para dormir, teimavam em não fechar. 

Foi o das descobertas. Tristes descobertas. Da incompreensível diferença da cor da pele, que definiu o meu lugar na classe social, da rejeição pela dureza do meu cabelo e da grossura do meu nariz e dos meus lábios, que só desejavam beijos de carinhos. Negra cor.

Eu trazia comigo as costas riscadas pelas chicotadas, desde os porões dos navios negreiros; pela dureza da e a cara enfumaçada pelo fogão à lenha das casas dos grandes senhores. Minha classe social era o borralho. A beira do fogão e o chão da cozinha eram o meu destino.

JÚLIA DO BOM DESTINO
Foto: Marcos Jorge Dias

Contudo, uma fada madrinha veio me salvar. A fada me deu uma classe. A chance de frequentar uma sala de aula, onde, aos 10 anos, conheci as primeiras letras. A me deu uma carruagem de ferro e na qual disparei para lutar no mundo. Passados os anos, desembarquei na

Novas descobertas. Tempo de construção de amizades que duram até os dias atuais. Obtenção de conhecimentos históricos de concepção socialista que me fizeram acreditar que sol pode nascer para todos, para todas. Tempo de quebrar com as mãos os arames farpados da ditadura militar, de plantar ideais em corações companheiros.

Sigo caminhando, lutando para que todas as pessoas tenham seu lugar ao sol. Luto com alegria, cantando e acreditando no ser humano e nas , apesar dos tratores, dos canhões e, nos tempos atuais, dos novos fuzis.

Sigo pela vida acreditando que, quando os sonhos são partilhados, deixam se ser sonhos para se tornarem realidade. 

Júlia Feitoza da Silva, assim registrada, nascida nos confins do Acre, num seringal de nome Bom Destino. Prólogo do livro “Júlia Feitoza, a militante por detrás das bandeiras vermelhas”, editora Xapuri, julho 2024, em celebração dos 70 anos de Júlia Feitoza, completados em 21/07/2024. 

Júlia do Bom Destino
Seringal Bom Destino – /Acre – Foto: Governo do Estado

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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