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“A MEMÓRIA DO ANJO” 

“A MEMÓRIA DO ANJO” 

“A Memória do Anjo” 

Em seu recém-lançado Por trás das chamas – – 60 anos do golpe militar de 1964, editora Expressão Popular, 2024, os autores Nilmário Miranda, Carlos Tibúrcio e Pedro Tierra (Hamilton Pereira da Silva) relatam que: 

“Nenhuma outra palavra poderia definir de forma tão cabal o objetivo da ditadura civil-militar em relação às forças de esquerda que se levantaram contra ela (…) A esmagadora maioria [dos e das militantes eram jovens], não alcançara os 30 anos. 

A literatura de resistência ao regime imposto pela ditadura registrou, recorrendo à metáfora para contornar a censura e o espírito obscurantista da época, a violência sufocante do Estado e a resistência a ela. 

Anos mais tarde, o poeta Pedro Tierra descreveu no poema “A Memória do Anjo” as últimas horas de Rui Carlos Vieira Berbert, na cadeia pública de Natividade, pequena vila perdida no norte de Goiás, hoje Tocantins

Foi preso ao fim da tarde.

É certo que havia sol no momento da captura.

As lhe ofereceram uma rede e cordas,

para que não dormisse sobre o ladrilho úmido,

naquele de chuvas.

(…) 

“Que espécie de desesperada esperança

aquela que nutre a palavra 

e os gestos desses anjos incendiários?

De que jazida de esmeralda líquida

a extraem?

E quando a algum deles recorro

e indago,

o que recolho é que não importa 

o porto

mas a paixão de navegar…”

Afonso, o soldado, lhe deixara cigarros e fósforos.

Contabilizou, cuidadoso, cada palito, cada cigarro,

como alguém que já cumprira pena

em algum lugar. 

A cela: grande, sombria, 

apesar das paredes brancas.

Chão de ladrilhos,

grades de madeira escura,

escurecidas por muitas medidas de tempo 

e silêncio.

Voltadas para a rua.

A cidade inteira sabia que o anjo fora preso.

Sabia e vigiava.

Até as pedras.

Alta e sombria, a cela.

Cruzada de fora a fora por um travessão,

de aroeira, talvez. 

Inatingível para a fuga ou para a morte.

(…) 

As moças, hoje senhoras golpeadas

pela misteriosa beleza do anjo –

recordam vagamente que ele atravessou

mais de uma noite

à espera da morte.

(…) 

Amanheceu suspenso no ar por uma corda

atada ao pescoço.

Só um anjo, golpeado pela desgraça

ou pela melancolia eterna 

seria capaz de voar silencioso 

até o travessão 

e lançar-se

para a morte, sem deixar vestígio…

(…) 

Alguém fez alusão a duas ou três palavras

inscritas com sangue na parede branca.

Ninguém, ao que se sabe, se aventurou

a revelar o que diziam.

 (…) 

Ao anjo lhe deram o nome de João Silvino Lopes,

uma de suas identidades terrenas,

para que não sucumbisse aos vermes da terra

sem nome algum

e assim se registrasse no livro de óbitos.

“A MEMÓRIA DO ANJO” 
Foto: Reprodução/Acervo Histórico

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Pedro Tierra – Ex-preso político da ditadura. Poeta. Conselheiro da Revista Xapuri. Poema publicado em Poemas do da Noite – 5ª edição revisada. , 2024.

 

 

 

 

 

RUY CARLOS VIEIRA BERBERT 

Nascido em Regente Feijó (SP), Ruy Carlos Vieira Berbert permaneceu em sua cidade natal até a conclusão do segundo grau. Aprovado no vestibular da PUC e da USP, optou por cursar a Faculdade de Letras na USP, passando a residir no conjunto residencial da universidade, o Crusp.

Trancou o curso de Letras após um ano e passou a dar aulas particulares em cursinhos. Nesse período, participou do XXX Congresso da UNE, em Ibiúna (SP) e acabou sendo preso, em outubro de 1968.

Após sua soltura, retornou à sua cidade natal, ali permanecendo por cerca de duas semanas. Após este período, partiu e não retornou mais à sua família, que recebeu notícias suas em dezembro de 1969, em uma escrita por ele, vinda da Europa, e meses depois, um bilhete em que dizia que estava bem.

De acordo com informações dos órgãos de segurança, em 4 de novembro de 1969, Ruy Berbert, acompanhado de outros nove militantes da Ação Libertadora Nacional (ALN), teria sequestrado um avião da Varig da rota Buenos Aires—Santiago, desviando-o para Cuba. Depois de concluído seu treinamento militar em Cuba, Ruy retornou ao em 1971, já como militante do Molipo.

Ruy desapareceu após ter sido detido pela Polícia Militar do de Goiás na cidade de Natividade, hoje no estado do Tocantins, no dia 31 de dezembro de 1971.

Referências ao militante são encontradas em alguns relatórios produzidos pelas forças armadas sobre a Operação Ilha, que foi montada a partir de informações do Centro de Informações do Exército (CIE), que alertou aos demais órgãos de segurança acerca da presença de militantes pertencentes à dissidência da ALN no norte de Goiás.

O objetivo da Operação Ilha, segundo documento encaminhado pelo Serviço Nacional de Informações (SNI) à Presidência da República, era “localizar e desbaratar núcleos terroristas instalados no Norte do Estado de Goiás, constituídos por elementos da ALN, procedentes de Cuba”.

Os referidos “elementos” eram os militantes Jeová de Assis Gomes, Boanerges de Souza Massa, Sérgio Capozzi, Jane Vanini, Otávio Ângelo e o próprio Ruy Carlos Vieira Berbert, que retornaram ao Brasil após treinamento de guerrilha em Cuba.

Em 31 de dezembro de 1971, o delegado Pedro Soares Lopes, o sargento da Polícia Militar Oswaldo de Jesus e o cabo Roque Fraga Amorim detiveram Ruy Carlos Vieira Berbert na cidade de Natividade, portando documentação com o nome de João Silvino Lopes.

Segundo o relatório do delegado, já se suspeitava, na ocasião da prisão, da falsidade dos documentos em nome de João Silvino Lopes. Ainda segundo o relatório, João Silvino teria se suicidado na cadeia pública de Natividade, na madrugada do dia 3 de janeiro de 1972.

Em função da morte, o Secretário de Segurança Pública do Estado de Goiás deslocou Paulo Celso Braga, do Departamento de Polícia Federal (DPF/SDR/GO) e o capitão da Polícia Militar Eurípedes Ferreira Rios, chefe do Serviço Estadual de Informações, para averiguar a morte de Ruy Berbert.

Ao descrever a cela, Paulo Celso Braga relatou que o militante teria feito uso da corda de sua rede para cometer o suicídio. Afirmou, também, que a corda teria sido amarrada na trave do prédio da prisão, que se encontrava a uma altura superior a 12 metros.

Ressalte-se que, para o intento, Ruy Berbert teria que ter escalado paredes bastante altas sem pontos de apoio visíveis. Por outro lado, uma vez alcançado o local onde estaria atada a corda, bastaria afastar algumas telhas para poder fugir.

O delegado da Polícia Civil, Pedro Soares Lopes, explicou que diante da ausência de médicos na cidade, o laudo de exame cadavérico foi feito pelos enfermeiros Maria Lima Lopes e Carmindo Moreira Granja, e que o enterro havia sido no cemitério local às 18h30, de 2 de janeiro de 1972, custeado pela Prefeitura Municipal.

Já de acordo com o relatório da Polícia Federal, o médico que atendia a população local, Colemar Rodrigues Cerqueira, teria se recusado a fazer a autópsia de Berbert, razão pela qual teria sido feita por um farmacêutico. Sua morte e a de mais 11 desaparecidos foram confirmadas pelo general Adyr Fiúza de Castro, em declaração publicada na Folha de S. Paulo de 28 de janeiro de 1979.

Em meados de junho de 1991, a Comissão de Investigação das Ossadas de Perus 261/90 recebeu da Pastoral da Terra um atestado de óbito em nome de João Silvino Lopes, com a descrição do local, das circunstâncias de seu suicídio e com a informação de que tal documento pertenceria a “algum militante político”.

Somente em junho de 2012, com a entrada em vigor da Lei de Acesso à Informação (lei nº 12.527/2011), foi localizado no acervo do Arquivo Nacional uma pasta com seis fotografias de Ruy Carlos Vieira Berbert morto.

As fotos comprovam que o Centro de Informações do Exército já o havia identificado por ocasião de sua morte. As fotos de Ruy Carlos foram as primeiras imagens de uma vítima da ditadura militar, morta em dependências do Estado, divulgadas após a Abertura .

A família de Ruy Carlos entregou as fotos a um perito que atestou que a morte não foi decorrente de suicídio.

"A MEMÓRIA DO ANJO"
Foto: Memorial da Resistência

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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