Não se trata de um ataque gratuito aos que comercializam os escândalos, mas do estudo sobre um fenômeno influente nas disputas que emergem no século XXI. A tecnologia comunicacional para informar, desinformar ou omitir vem de longe. Roberto Marinho elegeu o “Caçador de marajás”, depois o apeou da Presidência. As redes cibernéticas não inventam a roda.

O professor de Cambridge foca três escândalos: “abuso de poder” (Richard Nixon/Watergate); “político-financeiro” (Parlamento Europeu/Catar); politicossexual (Bill Clinton/Mônica Lewinski). No Brasil, apelos aos quartéis ignoram violações dos direitos humanos jogadas debaixo do tapete (Vladimir Herzog/Tortura). Ocorrências sofrem de espancamentos e choques elétricos no pau-de-arara para proteger as Forças Armadas. Os desaparecidos aguardam ainda agora, pela justiça.

O ruim fica pior com as fake news para enxovalhar a imagem dos adversários, o que envolve um conluio da mídia com o judiciário. A situação evoca o compromisso para, com novos mecanismos, corrigir os desvios de agentes públicos. A encenação serve de palco aos palhaços sociopatas sem noção republicana tipo o italiano Silvio Berlusconi, o brasileiro Jair Bolsonaro e o argentino Javier Milei. O circo é cosmopolita. A reprodução dos escarcéus sobrevive à demagogia institucional, que propaga a antipolítica, o livre mercado e criminaliza a esquerda – bode expiatório do desconforto.

A máquina de triturar do lawfare aciona episódios fictícios. As denúncias forjadas desmontam as empresas nacionais de engenharia, a indústria naval, o pré-sal, a Petrobras. A solapa dos vira-latas obedece a ditames estrangeiros.

O livro Lava Jato: O juiz Sergio Moro e os bastidores da operação que abalou o Brasil, de Vladimir Netto, elogia o homem sem qualidades ungido herói pela Rede Globo. Difícil saber onde termina a ausência de reflexão crítica da imprensa corporativa, e onde começa o cinismo de quem engana sem a discrição dos hipócritas, permitindo que a impostura seja flagrada pelos observadores. No teatro de falsidades, a verdade desce o ralo; ratazanas vêm à tona.

Democracia sob ameaça

A mídia não é a democracia, senão o espetáculo no ato de produzir sentido. Para tal: (a) substitui o uso da razão “pela expressão em público de sentimentos”; (b) substitui o direito de cada um e todos de expressar um parecer pelo “formador de opinião”.

Em Simulacro e poder: uma análise da mídia, Marilena Chaui insere a pantomima na “destruição da esfera da opinião pública”. Nas enchentes do Rio Grande do Sul, os repórteres perguntam aos moradores o que sentem diante das inundações, ao revés de indagar o que pensam sobre a vergonhosa inoperância da Prefeitura.

O desastre reduz-se a uma fatalidade doméstica, sem encadear as incúrias governamentais. A manobra blinda o prefeito do “kit-covid” de cloroquina e ivermectina distribuído durante a pandemia, na triste capital gaúcha.

Escândalos abalam o poder e, às vezes, geram flagelos pessoais; vide o destino do “pai dos pobres” Getúlio Vargas e do reitor da UFSC Luiz Carlos Cancellier – um inocente acusado por “convicções” sem PowerPoint.

Não que os erros desconstruam a confiabilidade sistêmica, em si. O Congresso está repleto de aventureiros que surfam em campanhas caluniosas e difamatórias. Vale tudo no pé de goiabeira de emendas parlamentares em causa própria, ilustrativas da grave crise de dedicação à res publica por amor à filosofia da avareza, que ergue o deus-dinheiro no altar do hiperindividualismo.

A missão do jornalismo de fiscalizar os governos, revelar as falhas e erradicar os males – em nome do interesse público – é subvertida. Há desrespeito ao éthos da profissão inspirada nos princípios iluministas, com a nobre incumbência de diagnosticar as enfermidades sociais. No oligopólio das comunicações, a dita independência dos jornalistas é canibalizada pela alta hierarquia. Mentiras, a soldo, são ecoadas por paladinos da moral e costumes para esconder a responsabilidade das “elites”.

Já as mudanças nas relações trabalhistas levam à busca por sustentação nas urnas, além das antigas classes sociais. Com divisões ideológicas atenuadas, progressistas compõem com outros segmentos para vencer as eleições, e potencializam as manchetes negativas fruto de alianças não programáticas com parcerias dúbias. Haja equilíbrio na balança das práticas, desejos, expectativas e resultados.

A tríade dos escândalos

John B. Thompson aborda eventos do hemisfério Norte, ao esmiuçar a tríade dos escândalos. Entre nós, o desafio está em desbravar acontecimentos acobertados pelo silêncio da mídia. Seguem cases que travam “lutas pelo poder simbólico, em que a reputação e a confiança estão em jogo”, na dura realidade. São metáforas de reatualização da dialética colonialista para a dominação/subordinação.

i) Escândalo politicossexual (e racista). O Projeto de Lei (PL 1.904/2024) proíbe o aborto após a 22° semana, inclusive por estupro, e estipula às transgressoras uma pena de homicídio superior ao previsto na legislação para estupradores.

A mobilização de diversos grupos feministas nas principais metrópoles impede a tramitação na Câmara Federal. A mídia enfatiza o nonsense da penalidade e confina o assunto à dosimetria. Não investiga os partidos e os políticos com mandato que cometem a violência sexista (e racialista). A lei atinge as meninas pretas e pobres de 8 a 12 anos, as grandes vítimas nas estatísticas ao longo do tempo. A bandeira do direito natural da mulher ao corpo não é hasteada. E o medievalismo bolsonarista sai incólume do golpe contra os valores da modernidade.

ii) Escândalo político-financeiro. O crime de lesa-pátria da Taxa Selic do Banco Central retira do Erário R$ 816,2 bilhões, em 2023. Para comparar, o orçamento do Ministério da Saúde é R$ 231 bilhões; da Educação, R$ 180 bilhões.

Alvo de acusações por investimentos em offshores em conflito com a função, o presidente do Bacen obtém dividendos pessoais com os juros elevados. Estes incentivam a desindustrialização e o modelo neocolonial-exportador, que incendeia biomas e florestas. A política monetária em curso inibe o crescimento da nação com geração de empregos e distribuição de renda. Os rentistas e os extrativistas agradecem a gentileza, com os bolsos cheios. E o neoliberalismo bolsonarista sai imune do golpe contra os valores do Estado de bem-estar social.

iii) Escândalo de abuso de poder. No desgoverno, a criação na Associação Brasileira de Inteligência de uma “ABIN paralela” visa um órgão de vigilância típico dos regimes de exceção. À revelia do processo legal, a invasão de privacidade alcança trinta mil cidadãos; sequer são poupados os amigos da famiglia miliciana.

Ao contrário do famoso triplex que não era do Lula, a conspiração direitista não recebe atenção no noticiário. Ninguém é preso. Passa-se pano na articulação terrorista entre o fascismo sociopolítico, o laissez-faire econômico e o conservadorismo cultural. E o totalitarismo bolsonarista sai ileso do golpe contra os valores civilizatórios do Estado de direito democrático.

Não esquecer as flores

“O mistério das coisas, onde está ele? / Onde está ele que não aparece / Pelo menos para mostrar que é mistério?”, lê-se no poema de um heterônimo de Fernando Pessoa. Os escândalos proibidos movem o moinho do populismo extremista, na exata medida em que a ideologia empreendedorista individual apaga a dimensão do público, no imaginário social.

A utopia pode e deve ser antecipada com a desconstituição das ilusões atomizadas em templos neopentecostais ou apostas digitais em BETs. Só a participação e a cooperação formam os sujeitos transformadores da ordem estabelecida.

Norberto Bobbio, autoproclamado “liberal-socialista”, considera a mídia uma ameaça à democracia por pasteurizar as consciências e manietar o juízo autônomo dos indivíduos. A circunstância possui um agravante no abandono de áreas essenciais: água, luz, saneamento, transporte.

A privatização converte direitos em mercadorias acessíveis apenas para quem paga. Sebastião Melo (MDB/RS) e Ricardo Nunes (MDB/SP) sequestram os equipamentos públicos para prestação de serviços; nem parques escapam da fúria privatista. Terceirizam as obrigações funcionais e também o que não lhes pertence, como fazem os gestores sem competência para administrar. Melhor devolvê-los aos seus donos, trocá-los pelo Orçamento Participativo (OP). Sem medo de ser feliz. Com gana de vencer.

Luiz Marques é docente de Ciência Política na UFRGS; ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul

Este é um artigo autoral. A opinião contida no texto é de seu autor e não representa necessariamente o posicionamento da Revista Xapuri.