Agrotóxico tenta expulsar comunidades do Cerrado

Agrotóxico tenta expulsar comunidades tradicionais do Cerrado

“Eu fingi que não ouvi. Então, eles sacaram a arma e começaram a atirar contra mim”, lembra Ednaldo Lopes, morador da zona rural de Formosa do Rio Preto, no Oeste da Bahia.

Em setembro do ano passado, Lopes pastoreava o gado, como sempre fizera, quando três homens armados da empresa Agronegócio Estrondo o mandaram descer do cavalo. Na negativa, atiraram de uma distância de 50 metros.

“Se quisessem, teriam me matado”, diz.

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Guarita depredada expõe o tenso em Formosa do Rio Preto. Foto: Flávia Milhorance

Essa não foi a única violência que Lopes sofreu por agentes do megaempreendimento de soja que ocupa a localidade do Vale do Rio Preto, em Formosa, onde seis comunidades tradicionais dos chamados geraizeiros habitam desde o século XIX. O primeiro incidente aconteceu em 2014, depois que ele e seu irmão protestaram contra a construção de uma cerca próxima à sua comunidade. Acabaram algemados dentro de uma caminhonete que rodou pela região por três horas.

“Só saio daqui morta”

Desde 1975, quando chegou a Formosa, a Agronegócio Estrondo tem progressivamente expandido seu território num processo sob acusações de grilagem. Muitos geraizeiros já se mudaram da região, contam os moradores. Mas a família Lopes quer ficar.

“Só saio daqui morta”, diz Catarina, de Ednaldo.

Catarina 1521818937A geraizeira Catarina Lopes Leite, que nasceu e quer permanecer na região. Foto: Flávia Milhorance

A instalação de cercas tem sido o principal motivo de conflitos na área. Recentemente, a companhia bloqueara a estrada local que conectava comunidades à cidade e reorientou o tráfego por uma nova passagem. Das guaritas, homens armados liberavam o trânsito apenas em determinados períodos do dia e sob identificação.

A reação dos moradores veio duas semanas antes da nossa visita ao Vale do Rio Preto, no fim de fevereiro. Encontramos cercas e duas guaritas destruídas. Os homens armados, até o momento, não voltaram à região. Quando perguntamos como tudo aconteceu, desconversam.

Estrondo gigantesco

Formosa do Rio Preto tem apenas 22 mil habitantes, mas uma área gigantesca de 1,6 milhão de hectares – maior que países como Bahamas, Jamaica ou Irlanda do Norte. Só a Estrondo ocupa 350 mil hectares – mais do dobro da cidade do Rio de Janeiro -, dos quais 150 mil estão destinados ao plantio de soja e outros grãos.

O município está a 1.026 quilômetros da capital baiana Salvador, e, portanto, distante das instituições políticas. As maiores forças sobre o município são do agronegócio, que colheu ano passado 1,4 milhões de toneladas de soja e espera aumentar sua produção em 23% até 2027, segundo o Ministério da Agricultura.

Grandes fazendas se instalam principalmente nas chapadas de Cerrado, ideais para a plantação por serem planas e receberem bastante chuvas. São as mesmas que os povos geraizeiros usam para criar seu pequeno rebanho. Como os povos indígenas, os geraizeiros são reconhecidos pelo governo por terem desenvolvido seu modo de vida enraizado ao seu território. Mas essas comunidades tradicionais estão na iminência de serem deslocadas às custas do avanço da fronteira agrícola.

400 conflitos em 5 anos

O Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais é uma entidade do governo para apoiar no reconhecimento e garantia de direitos destes grupos. Na lista de 29 comunidades, estão os geraizeiros e outros povos do Cerrado.

No entanto, a expansão desordenada do agronegócio sobre o bioma desconsiderou muitas destas comunidades. A expansão da última fronteira agrícola do rumo aos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia – que juntos são conhecidos como Matopiba – vem provocando uma escalada de conflitos.

Um levantamento feito com base nos dados da Comissão Pastoral da Terra revela que esses quatro estados testemunharam um aumento de 56% para 400 conflitos em cinco anos (2012-2016). Isto representa 30% do total de casos no país e está acima da média nacional de 21% de aumento, para 1.295 conflitos no período. Na Bahia, o aumento foi de 61%, para 86 conflitos.

Geraizeiros e o Cerrado

Os geraizeiros são descendentes de exploradores, ex-escravos e indígenas que se estabeleceram no Oeste da Bahia a partir do século XIX. Fugiram de conflitos, como a Guerra de Canudos, e das fortes secas do semiárido. Construíram suas casas em áreas inabitadas que pertenciam ao (as terras devolutas).

Ocuparam o Cerrado. E assentaram-se nos baixões, por onde os rios correm em abundância fluindo das terras altas. Nas chapadas ou gerais, eles criavam gado na savana e colhiam frutas e plantas medicinais. A terra era compartilhada por todos os vilarejos, sem cercas. Cerca de cem famílias de oito comunidades geraizeiras ocupam as margens do Rio Preto – não há dados sobre os números anteriores.

A criação de gado é uma importante parte da dos geraizeiros. Alguns de seus descendentes chegaram ao Oeste baiano como criadores de gado em busca de pastagens naturais. Lá, o rebanho é criado solto, sem desmatar o Cerrado.

Além de gado, os geraizeiros cultivam feijão, milho, mandioca e outros vegetais em seus quintais. Também extraem frutas, e caçam espécies do Cerrado numa pequena escala e apenas para o consumo imediato. Eram poucos os itens que precisavam vir da cidade. Por muito tempo, este sistema funcionou aliado à preservação da floresta.

Era mata, agora é soja

Adaltiva Guedes vive em Cacimbinha, uma das últimas comunidades do Rio Negro, a mais de 130 quilômetros do asfalto. Ela colhia capim dourado das veredas para a produção de artesanato, mas diz que a passagem está bloqueada pela Estrondo:

“Há pouco capim sobrando, e não podemos buscar mais”.

As cercas vão sendo instaladas e a paisagem de Cerrado vem mudando drasticamente diante da intensa ocupação da agricultura industrial. Em vez de arbustos e pequenas árvores tortuosas entre rochas, há 360 graus de soja da fazenda.

“Conheci esta região quando era só mata,” diz Gisélio Lopes Faria, de 70 anos, na beira de uma plantação da chapada. “Por volta de 2005, eles trouxeram os correntões e quebraram toda a vegetação aqui”.

Abner Mares é da ONG 10envolvimento, que acompanha o caso. Ele explica que houve denúncias à polícia e ao Ministério Público. Uma decisão liminar reconheceu a posse das comunidades e determinou a retirada das guaritas em maio de 2017, mas só mês passado ela foi citada pessoalmente. Mares também mostra documentos, entre eles um livro do Incra de grilagem de terras de 1999, do processo contra a empresa.

A Estrondo foi contactada seguidas vezes, mas não se manifestou.

Grilagem verde

São Desidério é a cidade vizinha e também tem relevância no mercado de soja: produção de 1,2 milhão de toneladas no último ano e estimativa de crescimento de 34% até 2027.

Pelos arredores do Vale do Rio Guará, no município, espalham-se geraizeiros acessíveis por longas estradas de terra. Seu isolamento dos centros urbanos contribuiu para reforçar sua identidade e garantiu-lhes proteção por gerações. Eles desenvolveram práticas com base no bioma, onde encontraram não só comida, mas inspiração para seus ritos. Inventaram um conhecimento próprio sobre os recursos naturais e mantiveram uma próxima relação com as espécies de animais e frutas. Mas poucos têm títulos de terra, uma realidade que afeta muitas famílias rurais no Brasil.

“A estratégia de conservação do bioma invariavelmente depende do fortalecimento dessas comunidades com seus modos de vida”, afirma Valney Rigonato, professor da Universidade Federal do Oeste da Bahia e que escreveu sua tese de dourado com base nas comunidades tradicionais de São Desidério. “Isto significa garantir o acesso à terra e aos recursos naturais”.

Projetos de infraestrutura e a monocultura hoje pressionam sete vilarejos geraizeiros e suas 257 famílias. Na entrada da comunidade de Ponte de Mateus, placas mostram que a área pertence a um grupo de fazendas. “Isto é o que chamamos de ‘grilagem verde’”, diz Rigonato.

Ele explica que o Código Florestal exige que donos de terras protejam parte da vegetação original de sua propriedade, mas não obriga que estas áreas sejam adjacentes a suas plantações. Assim, há companhias que ocupam áreas de comunidades tradicionais ainda preservadas para servirem como suas reservas legais.

A terra cobiçada não é a pastagem, mas aquela onde o Cerrado está de pé. Os interessados pelas vegetações contratam intermediários para pressionar famílias geraizeiras, seja para vender barato os poucos títulos que existem ou forçar seu deslocamento, explica Rigonato. No Vale do Guará, as comunidades permanecem, mas se sentem afuniladas. “Cada dia é um grileiro diferente vindo aqui. Eu graças a Deus tenho meu título”, conta Joana de Jesus.

A Associação de Agricultores e Irrigantes da Bahia (Aiba), que representa 1.300 associados da região, foi contactada, mas não retornou.

Eucaliptos na paisagem

Posicionado numa área estratégia de expansão do agronegócio, o Oeste baiano tem a previsão de receber 47 hidrelétricas. O projeto da ferrovia Oeste-Leste corta São Desidério. Outro, de uma termelétrica, rodeia as comunidades. A Bolt Energia venceu um leilão de cerca de R$ 700 milhões e já plantou oito mil hectares de eucaliptos – que costumam puxar bastante água do solo. Eles servirão de combustível para o empreendimento.

Os eucaliptos foram cultivados pelos geraizeiros, que ficaram animados por ter um salário por alguns meses. Agora, não há mais funcionários por lá, o projeto parece abandonado. Mas moradores nos levam às beiras de riachos e contam que eles estão mais secos. E creditam o impacto à termelétrica. “Desde que plantaram tanto eucalipto, os riachos diminuíram ainda mais”, diz  Maria Souza dos Santos, representante dos moradores de Ponte de Mateus.

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Plantação de eucaliptos em São Desidério, no Oeste da Bahia. Foto: Flávia Milhorance

A Bolt Energia afirma que detém licenças ambientais e que ainda não começou a construção do projeto. Não deu previsão de início, nem se pretende estender a plantação. Mas, sobre a água, reforçou que outras culturas como milho ou café consomem mais que o eucalipto e que sua plantação pode reduzir a pressão de uso da madeira do Cerrado no município.

Opções de emprego são muito limitadas na área. Além de artesanato, criação de gado, agricultura familiar e trabalhos temporários, muitos dependem do Bolsa Família. O agronegócio se apresenta como uma oportunidade para os geraizeiros, embora sejam comumente explorados. Genilson Conceição de Jesus tem 21 anos e trabalhou numa de soja local. Ele recebia R$ 35 por dia para catar raízes do solo, preparando-o para a plantação. Apesar do trabalho pesado, ele estava feliz: “Era bom ter um salário”.

“Prefiro a minha lavoura. A gente tem pouco, mas é melhor do que aquilo”.

Já Maycon Gomes de Santana, de 23 anos, da comunidade de Larga, trabalhava para uma fazenda de café e não tem boas lembranças. Ele viu um colega vomitando sangue por causa de uma intoxicação com e outros trabalhando 12 horas por dia sob o sol, sem almoço ou descanso, para ganhar R$1.200. “Eles estavam passando dos limites”, diz Santana, que trabalhava menos por menos dinheiro e que pediu demissão dois meses depois. “Prefiro a minha lavoura. A gente tem pouco, mas é melhor do que aquilo”.

Há muitos jovens nas comunidades tradicionais do Vale do Guará. Seis deles se juntaram para uma conversa em Ponte de Mateus. Apesar da falta de perspectiva e das pressões contra o território, todos querem permanecer na vila. Fernanda Batista, de 19 anos, é uma das poucas de lá a chegar à universidade. Este mês ela se muda para Barreiras, a principal cidade da região, para cursar a Universidade Federal do Oeste da Bahia. Vai focar em meio ambiente:

“Depois eu quero voltar, quero ajudar a melhorar a vida daqui”.

Este texto foi originalmente publicado em inglês por Mongabay. por  Alicia PragerFlávia Milhorance


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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