Estadão: Vai mal um país cujo presidente claramente não entende qual é seu papel

O editorial “Quebrando Louças” , publicado pelo jornal O Estado de São Paulo (Estadão) nesta sexta-feira, 8 de março, condena o presidente da República por suas declaração de ontem de que a democracaia e a liberdade só existem quando os militares permitem.

Pegando pesado no presidente que ajudou a eleger, o jornal afirma:  “Em Davos, precisou de seis minutos para mostrar sua incompetência administrativa. Com os fuzileiros navais, não precisou de mais de quatro minutos para revelar sua face autoritária e sua ignorância cívica”. 

Segundo o Estadão, ” Vai mal um país cujo presidente claramente não entende qual é seu papel, especialmente quando não consegue dominar os pensamentos que, talvez, lhe venham à mente.” Confira o editorial na íntegra: 

QUEBRANDO LOUÇAS

Chega a ser comovente o esforço de comentaristas para encontrar nas destrambelhadas manifestações do presidente Jair Bolsonaro algum sentido estratégico, como se fizessem parte de um plano racional de comunicação.

Desde seu grotesco discurso de posse, atulhado de arroubos e bravatas ginasianas, já devia estar claro para todos que Bolsonaro nunca se viu na obrigação de medir suas palavras e gestos, adequando-os à sua condição de chefe de Estado. Ao contrário: a julgar pelo comportamento muitas vezes grosseiro e indecoroso de Bolsonaro, o presidente provavelmente se considera acima do cargo que ocupa, dispensado dos rituais e protocolos próprios de tão alta função. Até à disseminação de pornografia pelas ele tem se dedicado, para estupefação nacional e internacional.

Se estratégia há, é a de deixar o País apreensivo a cada novo tuíte ou discurso presidencial, pois nunca se sabe o que virá. Bolsonaro parece imaginar que foi eleito para dizer o que lhe vem à cabeça, sem se importar com os estragos – e seus assessores que se esforcem para tentar reduzir os prejuízos decorrentes de seus excessos.

Mas há casos em que nem mesmo o mais habilidoso ministro é capaz de remendar. Como explicar, por exemplo, o discurso de ontem do presidente, durante cerimônia no de Fuzileiros Navais do Rio, quando ele disse, com todas as letras, que “ e só existem quando as Forças Armadas assim o querem”? Será necessário um grande malabarismo retórico para não considerar esse discurso como explícita manifestação de um pensamento irremediavelmente autoritário, de quem acredita que a democracia é apenas um favor dos militares aos civis. Para o presidente da República – é o que se conclui –, a democracia e a liberdade seriam meramente circunstanciais, pois dependeriam não da força e da solidez das instituições democráticas e da honestidade de convicção dos homens que ele próprio chefia, e sim dos humores dos quartéis.

Vai mal um país cujo presidente claramente não entende qual é seu papel, especialmente quando não consegue dominar os pensamentos que, talvez, lhe venham à mente. Como chefe de Estado, Bolsonaro tem a obrigação de saber que todas e cada uma de suas palavras nortearão o político nacional, seja no Congresso, seja nas ruas, e terão consequências também no delicado campo da . O presidente deve ter consciência de que não é mais candidato, condição que lhe permitia incorporar o personagem histriônico e falastrão que seus fanáticos seguidores apelidaram de “”. Deve entender que sua retórica truculenta e polarizadora pode ter sido muito útil para viabilizar sua candidatura presidencial, mas é péssima para agregar apoio político para um governo que começa sem base visível no Congresso.

Antagonizar foliões do nas redes sociais, como fez Bolsonaro de forma imprópria e estouvada, divulgando um vídeo pornográfico a título de “expor a verdade”, provavelmente não agregará um único voto dos tantos necessários para aprovar no Congresso os projetos de real interesse do País. Nem mesmo alguns de seus mais sinceros apoiadores aprovaram a grosseria, razão pela qual os assessores presidenciais se viram na contingência de soltar uma nota oficial para tentar explicar o inexplicável, obviamente sem sucesso.

O bom senso sugere que não se deve esperar que Bolsonaro de repente compreenda seu papel e se transforme num estadista, capaz de, em poucas palavras, guiar as expectativas do País. Diante disso, a ala adulta do governo parece ter decidido trabalhar por conta própria, tentando reparar os danos da comunicação caótica e imprudente de Bolsonaro – desde os prejuízos econômicos causados pelo despropositado antagonismo público do presidente em relação à China e aos países árabes, até a dificuldade de arregimentar apoio a uma reforma da Previdência na qual Bolsonaro parece não acreditar. Pelo que se viu até aqui, todo o esforço que alguns de seus auxiliares estão fazendo para que o presidente desastrado não quebre toda a louça será inútil. Bolsonaro está ficando cada vez mais rápido e certeiro. Em Davos, precisou de seis minutos para mostrar sua incompetência administrativa. Com os fuzileiros navais, não precisou de mais de quatro minutos para revelar sua face autoritária e sua ignorância cívica.

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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