Um retrato de Paulo Freire, andarilho da utopia!
“Viver
E não ter a vergonha de ser feliz
Cantar e cantar e cantar
A beleza de ser um eterno aprendiz.”
Gonzaguinha, “O Que É, O Que É”
Por Eduardo Carli de Moraes/A Casa de Vidro
Paulo Freire nasceu no Recife, no bairro da Casa Amarela, em 1921. Sobre sua meninice, rememora uma cena marcante de seu cotidiano: “fui um menino da geração dos lampiões e uma das coisas que eu mais gostava na minha vida era ver o homem lampião, como a gente chamava, com aquela vara no ombro, e que marchava com uma dignidade fantástica, com a sua chama na pontinha da vara, dando luz à rua…”
Esta lembrança de infância, evocada por Paulo Freire em entrevista concedida ao Pasquim em 1978, parece-me emblemática para descrever este brasileiro que, como poucos, soube andarilhar pelo mundo “dando luz à rua” e compartilhando-se com os outros feito um pequeno sol. Sem poupar no doar-se, na exuberância e na generosidade de sua inteligência crítica e sua práxis transformadora, refulgente lampião humano!
Na noite dos fascismos horrendos e nas trevas do autoritarismo desumanizador, eu torço pra que possa seguir raiando, pro nosso bem coletivo, a reflexão e a ação, a vida e a obra, de Paulo Freire, andarilho da utopia, cantador dos inéditos viáveis!
Paulo Freire: – “Eu sou de uma geração que viu e participou, como espectador, pelo menos, de um mundo de modernizações. Vivíamos numa casa grande, com um quintal enorme, cheio de árvores, de bananeiras, cajueiro, fruta-pão, mangueiras. Eu aprendi a ler à sombra das árvores, o meu quadro negro era o chão, meu lápis um graveto de pau.”
Por estas parcas palavras já percebe-se que, além de pedagogo, Paulo Freire foi também um poeta, com um sabor similar ao de Manoel de Barros, o grande lírico pantaneiro. Freire, além de poeta, foi um rebelde de coração ardoroso, um pouco como Maiakóvski, Brecht, Ernesto ‘Che’ Guevara, Pablo Neruda, tendo defendido a noção de que “a revolução é um ato de amor”.
Quem for poeta, que o entenda! Pois poesia e boniteza ele semeia quando a abre a boca ou deixa fluir sobre o papel a pena. Ensinava assumindo-se aprendiz, aprendia com os que ensinava, ambos co-partícipes de um processo entre sujeitos que, conscientes de sua inconclusão, buscam ser mais. Nossa vocação ontológica não é o de sofrer opressão, e a liberdade agredida berra em nós em revolta contra os grilhões de todas as opressões. Escola não deve ser espaço de domesticação ou controle, mas espaço de curiosidade e busca, diálogo e descoberta, interação e co-laboração…
Paulo Freire foi ainda – multihomem! – um filósofo político dos mais perspicazes que já nasceu do solo brasileiro, autor do clássico internacional, traduzido para dezenas de línguas, A Pedagogia do Oprimido (editora Paz e Terra). Freire soube muito aprender com as obras de Gilberto Freire (sobretudo Casa Grande e Senzala e Sobrados e Mocambos), Antonio Candido, Álvaro Vieira Pinto…
Tinha sólida formação filosófica e sociológica, leitor e intérprete lúcido e penetrante não só de Marx e Engels, mas também de autores como Erich Fromm (Medo à Liberdade) ou Frantz Fanon (Os Condenados da Terra), Freire escreverá uma obra que me parece uma das referências obrigatórias das ciências humanas na América Latina. Dentre os temas que mais intensamente interessam a Paulo Freire, parece-se, está o problema da revolução, ou seja, a transformação radical da realidade social. Longe de ser um idealista ingênuo, Freire alerta que
“Não podemos idealizar a revolução. Uma das nossas tendências é não pensar nas injustiças que cometemos na sociedade burguesa – na quantidade de pessoas que não possuem o que comer hoje ou nas crianças que não têm escolas para estudar – e ficar apenas olhando as distorções da revolução. (…) Mas eu sempre digo que a revolução não pode criar o Paraíso. A revolução é a história dentro da história. A revolução é feita por seres humanos e não por deuses ou anjos… A China não é o Paraíso. Não pode ser porque é história e assim sendo sempre cometerá erros. Precisamos ver historicamente – de um ponto de vista humano – o que está acontecendo na China, e não esperar de lá, ou de Cuba, ou de qualquer outro lugar, um tipo de Paraíso…” (…)
(…)
Paulo Freire, se é leitura essencial para qualquer brasileiro que se interesse por História, é menos um narrador de fatos idos do que um homem que reflete sobre o tempo, um filósofo da duração, mescla de Bloch e Bergson, Illich e Jaspers. Alguém, além disso, com uma mirada profundamente enraizada no que ele mesmo chamará de eticidade. Um filósofo da ética do quilate d’um Hans Jonas, dum André Comte-Sponville. Sim: Freire, mestre de ética! Mas que pensa sempre perto e íntimo das vivências, das experiências concretamente vivenciadas em carne-e-osso.
O exemplo supremo desse vivenciar-na-carne é a própria vida de Paulo Freire que exemplifica: na infância, ele passou pela experiência da fome – e ninguém passa por isso incólume, nem mesmo a crença cristã. A fome fez de Freire alguém que recusa o cristianismo reacionário:
“Desde muito jovem, muito inocente, eu não aceitava que ser cristão significava ser um reacionário. Tive uma infância muito difícil. Passei fome. Eu sei o que é estar faminto. Eu sempre digo que estar faminto é não saber quando você poderá comer novamente. Tive que caçar, pescar, matar pássaros com meu estilingue.” (…)
“Eu tive a experiência da fome, sei o que significa ter fome. O sujeito que faz dieta para ganhar um corpo mais bonito não sabe o que é fome, porque esse tipo de fome existe na medida em que a gente sabe que pode superar. Mas a outra, a que entra sem pedir licença, essa é dura.”
Um dos charmes maiores do livro publicado pela Azougue, na série Encontros, sob a organização de Sergio Cohn, é revelar muitos detalhes biográficos que desvelam a realidade concreta em que cresceu Paulo Freire. Quando menino, além da experiência de estar faminto e sem saber quando é que poderia papar o próximo rango, viveu também o lúdico, a vida como brincadeira, e compartilha saborosas memórias de suas traquinagens infantis:
“Olha, apesar da fome, minha infância foi muito feliz. Essa fome a gente até que conseguia matar de vez em quando furtando os quintais alheios, roubando jaca, roubando manga, roubando banana. Eu, junto com meu irmão Temístocles, conhecia perfeitamente a geografia dos quintais dos outros. E então, quantas vezes a gente escondeu cachos de banana em buracos secretos… A gente acomodava as bananas em folhas secas e mornas que aceleravam a sua maturação… Naquela época, na minha escola primária, eu não sabia quanto era 4 vezes 4, nem sabia a capital da Inglaterra, mas sabia, primeiro, a geografia desta fome, segundo, eu sabia calcular muito bem em quantos dias eu devia voltar para pegar a banana madura no meu esconderijo.”7
O menino Freire também está exposto à experiência estética, mesmo em meio à geografia da fome. O estômago roncando e doendo por dentro, mas na casa o som de um piano decorando o espaço invisível viajado pelos sons: a família não se desfazia jamais de um piano alemão onde a tia de Paulinho tocava Beethovens e Bachs…
Ora, parece estranho que famílias que estejam passando fome agarrem-se assim a pianos e outros ditos “bens supérfluos”; mas Paulo Freire garante que sua família viveu não a fome dos miseráveis, mas a fome de uma “pequena burguesia que lutava fantasticamente para não perder sua posição de classe. (…) A gravata no pescoço do meu pai e o piano alemão na sala de visitas não eram apenas expressões, a primeira da moda masculina e a segunda do gosto artístico da minha tia. Eram expressões de classe.”
O piano, relíquia da família, era também signo de status, oferecia ao mundo uma aura que minorava o efeito daquela fome devastadora, e ainda mais cruel para outros ainda mais famintos do que os Freires. Se eles se apegavam tanto ao piano, garantia de pertença a uma certa casta de “gente de classe”, era pois “não era possível perder a expressão de classe, porque aí significava marchar diretamente para os mocambos dos alagados, de onde jamais voltaríamos.”9
O medo de descer ainda mais na escala social parece ser um elemento muito presente na família em que Paulinho cresceu; “pequena burguesia” caída na pobreza, a família não tem condições de oferecer educação de ponta à filharada. Com 15 anos de idade, “já na adolescência”, lembra Paulo Freire, “é que foi possível entrar no ginásio. Quando os meus camaradas de geração cujas famílias tinham condições, estavam começando a faculdade, eu estava começando o 1º ano de ginásio, escrevendo rato com dois erres.”
Aquele que demorou para vencer o analfabetismo e com 15 anos ainda escrevia “rato com dois Rs”, acabou por entrar para a história como figura-chave na renovação e ampliação dos métodos de alfabetização, mundo afora. Paulo Freire compreendeu como poucos os analfabetos, talvez por ter sido, também, um deles, por ter vivenciado esta condição que, vendo superada, ele quis ajudar outros a superarem. Paulo Freire: o bodhisatva do alfabeto!
Fonte: A Casa de Vidro.
Edição: Redação Xapuri.