Júlia Feitoza: O meu bom destino
Meus olhos sondavam a escura floresta que teimava em fechar o varadouro (caminho) cheio de curvas e desvãos. O sol, aos poucos, ia rasgando a escuridão da madrugada e iluminava nossos passos rápidos, como deve ser o caminhar de quem foge. Fugíamos, minha mãe e eu, do sofrimento e da solidão.
Por Júlia Feitoza

A mão da minha mãe, que quase me arrastava por cima de troncos e pontas de tabocas (tipo de bambu), era quente e úmida. Igual à floresta em que
estávamos perdidas. Em alguns momentos corríamos, rompendo no peito a barreira de espinhos que parecia querer nos deter. Com braços, pernas e peito sangrando, aqui e acolá trocávamos olhares, numa cumplicidade silenciosa de quem sabia que nunca mais voltaria para aquele lugar.
Enfim, o rio. Imenso, transbordante em suas águas barrentas, sussurrava em meus ouvidos vozes que contavam histórias de bichos medonhos e cobras grandes, que meus olhos de menina amedrontada procuravam nas ingazeiras que se debruçavam sobre a margem e cujos frutos me alimentaram ao longo da viagem.
O barco que nos recolheu subia o rio, lutando contra a correnteza e os balseiros traiçoeiros. Rasgando com força as águas, abrindo na contramão nosso incerto futuro.
Chegamos ao porto das catraias ao entardecer, quase noite. A escadaria que existia à época era imensa, de uma altura assustadora. Meus olhos, aos poucos, foram sendo invadidos por coisas que eu não sabia o nome, cores nunca vistas, gente estranha; e, mesmo depois de acomodada para dormir, eles teimavam em não fechar.
Foi um tempo de descobertas. Tristes descobertas. Da incompreensível diferença da cor da pele, que definiu meu lugar na classe social, de rejeição pela dureza do meu cabelo e pela grossura do nariz e dos lábios que só desejavam beijos de carinho. Negra cor.
Eu trazia comigo as costas riscadas pelas chicotadas desde os porões dos navios negreiros, pela dureza da vida, e a cara enfumaçada pelo fogão a lenha das casas dos grandes senhores. Minha classe social era o borralho. A beira do fogão e o chão da cozinha eram meu destino.
Contudo, uma fada madrinha veio me salvar. A fada me deu uma classe. A chance de frequentar uma classe de escola, onde aos 10 anos conheci as primeiras letras. A escola me deu uma carruagem de ferro e fogo na qual disparei para lutar no mundo. Passados os anos, desembarquei na Universidade.
Novas descobertas. Tempo de construção de amizades que duram até os dias atuais. Obtenção de conhecimentos históricos, de concepção socialista, que me fizeram acreditar que o sol pode ser para todos, para todas. Tempo de quebrar com as mãos os arames farpados da ditatura militar, de plantar ideais em corações companheiros.
Sigo caminhando, lutando para que todas as pessoas tenham seu lugar ao sol. Luto com alegria, cantando e acreditando no ser humano e nas flores, apesar dos tratores, dos canhões e, atualmente, de novo dos fuzis.
Sigo pela vida acreditando que os sonhos, quando partilhados, deixam de ser sonhos para se tornarem realidade.
Júlia Feitoza da Silva, assim registrada, nascida nos confins do Acre, num seringal de nome Bom Destino.
Por Marcos Jorge Dias
Mangueira, bananeiras, acerola, pitanga, carambola, tangerina, romã, goiaba, jabuticaba, coco, cacau, uva, biribá, uva, araçá e amora são algumas das frutíferas que rodeiam a moradia.
Aposentada, Júlia não para de inventar coisas para fazer. Faz bolos, cocadas, biscoitos de castanha, bombons, salame de cupuaçu e geleias. Às vezes para vender, mas quase sempre pelo puro prazer em presentear os muitos amigos e amigas que tem no Acre, pelo Brasil e no mundo.
Quando saiu do seringal Bom Destino (onde nasceu) e veio para Rio Branco, capital do Acre, Júlia não deixou a floresta. Ela trouxe a floresta dentro de si. E, à medida que foi se constituindo mulher urbana não permitiu que esse processo a distanciasse de suas raízes.
Quando chegou à cidade, aos 10 anos de idade, sem saber ler nem escrever, foi matriculada na escola Darcy Vargas, (que existe até hoje nas proximidades do local onde mora). Mal tinha aprendido as primeiras letras, foi levada para o Rio de Janeiro na condição de “quase da família”, onde ficou por dez anos.
Mas, mesmo na condição de empregada doméstica, não parou de estudar, e foi na cidade maravilhosa que deu os primeiros passos na militância que viria se consolidar no Acre anos depois.
Quando retornou a Rio Branco se engajou nas Comunidades Eclesiais de Base; fez novos amigos com os quais criou uma célula clandestina do “PRC”; fez teatro; entrou para o curso de História na Universidade Federal do Acre.
Militou ativamente no movimento estudantil; caminhou com Chico Mendes nos varadouros das matas de Xapuri e do Alto Acre; junto com o Abrahim Farhat (o Lhé), organizou as primeiras reuniões para a organização do Partido dos Trabalhadores no Acre e acompanhou o Lula na “Caravana da Cidadania” até a cidade de Assis Brasil, na tríplice fronteira do Brasil com a Bolívia e o Peru.

Em um dia em que estava “quase para morrer de dor de dente” foi fazer o concurso do Ministério da Saúde. Aprovada e servidora pública federal, organizou o Sindicato da categoria, do qual foi presidente por dois mandatos; participou da criação e fundação da CUT/Acre.
Com um livro “embaixo do braço” coletou assinaturas para a criação do Partido dos Trabalhadores, no Acre; arrecadou recursos para a permanência dos seringueiros liderados por Chico nos empates, ganhou pessoas para a causa da defesa da Amazônia.

Junto com Raimunda Bezerra, Gomercindo Rodrigues, Lhé, o apoio do bispo Dom Moacyr e outras entidades do movimento social, organizou o Comitê Chico Mendes, que foi essencial para o julgamento dos assassinos do companheiro; foi presidente do Centro dos Trabalhadores da Amazônia – CTA, organização não governamental que foi referência nacional e que serviu de escola para muitos profissionais que hoje atuam no movimento ambientalista.
Júlia é uma mulher que não consegue ficar parada. Atualmente faz parte do Comitê e da Coordenação do Memorial Chico Mendes; é militante do Movimento Negro Unificado – MNU – e do Centro de Defesa de Direitos Humanos e Educação Popular do Acre – CDDHEP/Acre.
Filha de Oxóssi, sua relação com a natureza e com a abundância de alimentos que a floresta oferece são impressionantes. Quem chega em sua casa sempre é recebido com algum suco ou quitute preparado por ela. Enquanto conversamos, descasca os buritis que coletou no quintal para fazer vinho.
Em sua trajetória de vida não faltam histórias de superação, resistência, lutas, vitórias, algumas decepções, mas também de muito companheirismo. É comum em Rio Branco chegarem pessoas de vários lugares procurando pela “Júlia, do Acre”.

Marcos Jorge Dias – Escritor e poeta acreano. Membro do Conselho Editorial da Revista Xapuri.





