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A MENINA, O ABORTO, O BISPO E NÓS, OS EXCOMUNGADOS

A menina, o aborto, o bispo e nós, os excomungados

Ela é apenas uma criança. De nove anos. Pesa 33 kg e mede 1,36 m. Vive em Alagoinha, a 230 km. de Recife. Lá, foi estuprada pelo padrasto. Ficou grá de gêmeos. Os médicos da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) constataram que a vida dela corria perigo e retiraram os fetos, interrompendo a gravidez na 15ª semana.
 
Por José Bessa Freire 
 
Após o aborto, na quarta-feira, “ela ficou brincando com a boneca e o ursinho. Não sei se entende o que passou” – disse o diretor da Maternidade, Sérgio Cabral, que não tem culpa do nome que carrega.

Quem, com certeza, não entendeu bulhufas foi o arcebispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso Sobrinho, 75 anos, recém-aposentado. Ele tentou convencer o pai biológico e a mãe da menina a desistirem do aborto. Fracassou.

A Arquidiocese decidiu, então, que vai denunciar os pais da vítima ao Ministério Público, acusando-os de duplo assassinato. Sem chances, porque a legislação brasileira permite o aborto em vítimas de estupro até a 20ª semana de gestação e também no caso de ameaça à vida da mãe. De acordo com avaliação médica, o aborto é, portanto, duplamente legal.

O bispo, no entanto, está se lixando para as leis dos homens:

– “A lei de Deus está acima de todas as coisas e o aborto é um crime previsto nas leis de Deus”, diz, citando o Código Canônico, que em seu artigo 1.398 pune os que praticam o aborto com a excomunhão. Omite que não foi Deus, mas os homens que escreveram o Código. A proibição é, pois, da Igreja Católica Apostólica e Romana, que é uma criação histórica dos homens. Deus, coitado, não tem nada a ver com essa história, seu nome está sendo invocado em vão. Tem documento assinado por Deus com firma reconhecida no cartório? Tem? Ora, não me venha com chorumelas.

Não importa. O bispo mostrou que é o herdeiro legítimo da Inquisição e da intolerância. Sem levar em conta a situação real da menina, o bispo confundiu cinto com bunda e cipó com jerimum e excomungou todos os adultos que participaram da operação: os pais da menina, os médicos, o motorista da ambulância, o transportador da maca, as atendentes, os enfermeiros que esterilizaram os instrumentos cirúrgicos, as representantes de ongs em defesa da mulher, enfim todo mundo.

E o padrasto? Foi também excomungado? Necas de pitibiribas! Esse foi o único que escapou. Pressionado pelo Jornal Hoje, da Rede Globo, o bispo afirmou que o pedófilo estuprador, já preso pela lei dos homens, não foi excomungado pela lei divina:

– “Esse padrasto cometeu um crime enorme – admitiu – mas não está incluído na excomunhão. Ele cometeu um pecado gravíssimo. Agora, mais grave do que isso, sabe o que é? O aborto, eliminar uma vida inocente”.

Acredite se quiser. Mas o bispo disse essa besteira monumental e estarrecedora. Eu ouvi. Milhões de brasileiros são testemunhas. O bispo segue, assim, a máxima malufista do “estupra, mas não mata”.

A excomunhão, que é a pena máxima da igreja, condena ao do inferno pessoas misericordiosas, que tiveram compaixão com o sofrimento dos outros, mas poupa o estuprador. Aumenta assim nossa sensação de impunidade. Com esse senso de , parece até que o Código Canônico foi escrito pelo ministro do STF, Gilmar Mendes, para livrar a cara do Daniel Dantas e dos latifundiários.

BAIXANDO O NÍVEL 

A fala episcopal teve repercussão internacional. Os jornais da Europa e dos e as redes de televisão, como a BBC de Londres e a Karachi News do Paquistão, abriram manchetes com a declaração do bispo, que chocou a opinião pública e provocou indignação generalizada, mostrando a posição arcaica, retrógrada e rançosa da igreja, “que não se adequou à realidade do estado laico e da democracia”, como afirmou Cristina Buarque, secretária estadual da Mulher do Estado de Pernambuco.

Um dos médicos excomungados, Rivaldo Albuquerque, católico praticante, que assiste missa todo domingo, chova ou faça sol, lembrou que ele e seus colegas já foram excomungados pelo bispo Dom José desde 1996, quando foi inaugurado o serviço de atendimento a mulheres vítimas de sexual da UFPE. O médico mostrou, felizmente, que está cesar-maiando e andando para essa excomunhão e nessa questão não reconhece a autoridade do bispo, cuja postura é “inadequada e pouco humanitária”. Não se intimidou. Continuou seu trabalho.

– “O povo quer uma igreja do perdão, do amor, da misericórdia, da caridade e da . Tenho pena do nosso arcebispo que não conseguiu ter misericórdia por uma criança inocente, desnutrida, franzina, em risco de vida, que sofre violência desde os seus seis anos” – declarou Rivaldo.

Mas nem todo mundo ficou com pena do bispo. Muita gente ficou com raiva. Na internet, o House abriu uma página, perguntando: “O bispo José Cardoso Sobrinho é maluco? Ou boiola?”. Muitos internautas votaram.

Um deles atacou:

“Um sujeito que excomunga os médicos responsáveis pelo aborto do feto de uma criança de 9 anos que foi estuprada, não merece crédito algum perante a . Não passa de um desqualificado moral e intelectual, que prega conceitos ultrapassados ao nosso tempo”.

Outro indagou: –  “Quem pediu a opinião desse sujeito? Quem se importa com o que ele fala?”

Na realidade, embora o “sujeito” Dom José Cardoso Sobrinho não se dê respeito, não concordo com a baixaria de ofendê-lo. Devemos ser caridosos com ele e ajudá-lo, criticando-o com argumentos. Afinal, ele não é “boiola”, nem “maluco”, o que não constitui, na nossa perspectiva, uma ofensa, mas foi proferida com essa intenção.

Para usar uma categoria menos ofensiva e mais objetiva, ele é apenas, com todo respeito, um babaca, com cara de babaca, discurso de babaca, postura de babaca. Não é pastor do seu rebanho, mas um burocrata, funcionário obscurantista, preocupado com questões formais e não com a vida das pessoas. Para ele, dane-se o mundo e a menina, desde que o artigo 1.398 do Código Canônico seja cumprido.

MITRA E BÁCULO 

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O bispo não esboça qualquer sentimento de piedade com a dor e o sofrimento alheio. Seu discurso em defesa da vida é tão demagógico quanto o de Silvio Berlusconi, no episódio recente da jovem Eluana Englaro, que durante 17 anos permaneceu em estado vegetativo, até que os médicos suspenderam sua e hidratação artificial, mantida através de uma sonda, deixando-a morrer, naturalmente, em paz, como pediu sua família.

Dom José, que diz falar em nome de Deus, é um homem extremamente vaidoso. Adora a pompa, a solenidade, a imponência, as vestimentas pontificais, os ornamentos episcopais, a alva de linho, a estola luxuosa, a sobrepeliz de rendas, a capa de seda, o anel de ouro, a cruz peitoral, o báculo de metal precioso, a mitra, que é o símbolo do poder e o solidéu – aquele gorro de cor violácea – com o qual ganharia qualquer concurso de fantasia carnavalesca.

Talvez por isso seja tão apegado ao poder contra o qual jamais se manifesta.

O bispo – estamos em pleno Dia Internacional da Mulher – ofende e desrespeita todas as mulheres. Revela um machismo primário ao relativizar o crime do padrasto estuprador contra uma criança, que ele tinha a obrigação de proteger. Não deixa de ser corporativismo machista minimizar esse crime e invocar a natureza divina de um código escrito por homens, não como representantes do gênero humano, mas como machos.

Saudades de Dom Helder Câmara, o antecessor de Dom José. Já não se faz bispos como . Dá vontade de abrir uma página na internet: “Eu apoio a ação dos médicos de Recife e também quero ser excomungado por Dom José”. Sou o primeiro a me inscrever.

Um apelo: Dom José, deixe a menina brincar com sua boneca e o seu ursinho, deixe os médicos em paz, deixe de ser ranzinza, não seja leso, vá rezar, vá pedir perdão dos seus pecados, vá pedir inspiração a Dom Helder, vá excomungar o Collor, o Sarney, o Renan Calheiros e todas essas figuras sinistras que vem atentando contra a vida em nosso país, envolvidas em maracutaias e corrupção, matadoras de nossas esperanças.

E se não for falta de respeito a um prelado – data vênia – digo, rimando, em nome dessa menina de nove anos, que ainda brinca de boneca: Dom José, vá cheirar seu pé.

P.S. – Crônica recolocada nas redes sociais em 13/06/2024, diante do projeto de lei que equipara o aborto após a 22ª semana de gestação ao crime de homicídio, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), prevendo uma pena muito mais dura à mulher que fizer o procedimento, hoje protegido por lei, do que para o homem que a estuprou.

Segundo o , o aborto será igualado ao artigo 121 do Código Penal, de homicídio simples, que estabelece pena de prisão de seis a 20 anos. Enquanto que o crime de estupro, previsto no artigo 213 do Código Penal, tem como pena mínima seis anos e máxima que pode chegar a apenas 10 anos, quando a vítima é adulta.

A bancada evangélica, que  segue os passos do bispo José Cardoso Sobrinho, pede regime de urgência na Câmara para que a “lei de Deus” se transforme em lei dos “homens” – digo dos machos – no Brasil.

A MENINA, O ABORTO, O BISPO E NÓS, OS EXCOMUNGADOS
Foto: Agência Brasil/Marcelo Casal Jr./Arquivo

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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