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A Peste de Albert Camus (1947)… Tão iminente e atual

A Peste de Albert Camus (1947)… Tão iminente e atual

“A grande cidade silenciosa não passava então de um aglomerado de cubos maciços e inertes, entre os quais as efígies taciturnas de benfeitores esquecidos ou de grandes homens antigos, sufocados para sempre no bronze, tentavam sozinhos, com seus falsos rostos de pedra ou de bronze, evocar uma imagem degradada do que fora o homem.

Esses ídolos medíocres reinavam sob um céu espesso nas encruzilhadas sem vida, brutos insensíveis que bem representavam o reino imóvel em que havíamos entrado ou pelo menos, a sua ordem última, a de uma necrópole em que a peste, a pedra e a noite teriam feito calar, enfim, todas as vozes.

Mas a noite também estava em todos os corações, e as verdades, como as lendas que se contavam sobre os enterros, não eram feitas para tranquilizar nossos concidadãos. Porque é efetivamente necessário falar dos enterros, e o narrador pede desculpas. Sente naturalmente a crítica que lhe poderia ser feita a respeito, mas a única justificativa é que houve enterros durante toda essa época e que, de certo modo, o obrigaram, como obrigaram a todos os nossos concidadãos, a preocupar-se com enterros.

Não é que ele goste desse tipo de cerimônias, preferindo, pelo contrário, a sociedade dos vivos, e, para dar um exemplo, os banhos de mar. Mas, afinal, os banhos de mar tinham sido suprimidos, e a sociedade dos vivos receava durante todo o dia ser obrigada a ceder lugar à sociedade dos mortos. Era a evidência. Na verdade era sempre possível esforçar-se por não vê-la, fechar os olhos e recusá-la, mas a evidência tem uma força terrível que acaba sempre vencendo.

Qual o meio, por exemplo, de recusar os enterros no dia em que nossos entes queridos precisam ser enterrados? Pois bem, o que caracterizava no início nossas cerimônias era a rapidez. Todas as formalidades haviam sido simplificadas e, de uma maneira geral, a pompa fúnebre fora suprimida. Os doentes morriam longe da família e tinham sido proibidos os velórios rituais, de modo que os que morriam à tardinha passavam a noite sós e os que morriam de dia eram enterrados sem demora. Naturalmente, a família era avisada, mas, na maior parte dos casos, não podia deslocar-se por estar de quarentena, se tinha vivido perto do doente. No caso de a família não morar com o defunto, apresentava-se à hora indicada da partida para o cemitério, depois de o corpo ter sido lavado e colocado no caixão.

(…)

Num extremo do cemitério, num local coberto de árvores, tinham sido abertas duas enormes fossas. Havia a fossa dos homens e a das mulheres. Sob esse aspecto, as autoridades respeitavam as conveniências, e foi só muito mais tarde que, pela força das circunstâncias, este último pudor desapareceu e se enterraram de qualquer maneira, uns sobre os outros, sem preocupações de decência, os homens e as mulheres.

Para todas essas operações era preciso pessoal e este estava sempre prestes a faltar. Muitos desses enfermeiros e coveiros, primeiros oficiais, depois improvisados, morreram de peste. Por mais precauções que se tomassem, o contágio acabava por se fazer um dia. No entanto, quando se pensa bem, o mais extraordinário é que nunca faltaram homens para exercer essa profissão durante todo o tempo da epidemia.

(…)

Mas, a partir do momento em que a peste se apossou realmente de toda a cidade, então seu próprio excesso provocou consequências bastante cômodas, pois ela desorganizou a vida econômica e suscitou assim um número considerável de desempregados.

(…)

Sabia também que, se as estatísticas continuassem a subir, nenhuma organização, por melhor que fosse, resistiria; que os homens viriam a morrer amontoados e apodrecer na rua, apesar da prefeitura, e que a cidade veria, nas praças públicas, os mortos agarrarem-se aos vivos, com um misto de ódio legítimo e de estúpida esperança.”

– Trechos de A Peste, de Albert Camus, 1947.

Fonte: The Intercept Brasil

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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