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A TRABALHADORA DOMÉSTICA E A FALSA ABOLIÇÃO

Em 2019, participei de um encontro com Angela Davis, durante a vinda dela ao Brasil. Lembro que foi um dos momentos mais emocionantes que vivi naquele ano, especialmente porque há pouco havia fundado um movimento antirracista junto com outros companheiros dentro das ocupações do MTST, o Raiz da , e tínhamos ela como uma das principais referências. Logo no final do encontro, ela encerrou sua fala dizendo que a liberdade é uma luta constante, desde o passado até o futuro.

Por Ediane /Mídia Ninja

Por mais que já tivesse lido aquela frase diversas vezes, naquele momento pensei sobre o que essa ideia representava para uma sociedade como a nossa. Pensei também o que representava para mim, uma trabalhadora doméstica, já que naquele mesmo ano tinha sido privada de liberdade. Fui esquecida dentro da casa dos meus antigos patrões e resgatada por bombeiros. Hoje, depois de eleita deputada estadual, essas as palavras dela ainda ecoam dentro de mim.

Lembro que quando completou 100 anos da chamada “Abolição”, em 1988, Lélia Gonzalez, uma das nossas maiores intelectuais, refletiu sobre a mentira da falsa abolição, da falsa liberdade. Ela escreveu que o 13 de maio trouxe benefícios para todo mundo, menos para a massa trabalhadora negra, que continuava nas mesmas condições de trabalho vividas pelos seus antepassados, ou seja, como e trabalhadoras superexplorados.

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Lélia Gonzales. Foto: Reprodução/UFMG

Nos 110 anos do 13 de maio, o senador Abdias do Nascimento, em pronunciamento no Senado Federal, discursou e repetiu mais uma vez que a chamada Abolição não foi produto da benevolência de uma princesa branca e nem motivada por razões humanitárias.

Olho para Lélia e Abdias e me pergunto: por que ainda falamos dessa formalidade jurídica que este ano completou 135 anos? Porque o Brasil não quer calcular que a população negra viveu mais tempo sob o regime da escravidão do que de “liberdade”. Oficialmente, foram 350 anos sob o regime da tortura, do chicote, da privação de direitos, de tratamento desumano e humilhações de todas as formas.

O Brasil ainda não reconheceu que a falsa liberdade tem, oficialmente, pouco mais de 100 anos. O é estrutural e não causa constrangimento na sociedade brasileira.

É por isso que não podemos esquecer que a abolição no Brasil é inconclusa. Não é de hoje que os trabalhadores e trabalhadoras negros brasileiros estão sem o direito de ir e vir e de receber salários pelas funções que executam.

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Olha quantas trabalhadoras domésticas ficaram presas na pandemia do ! Muitos patrões diziam que as domésticas poderiam ficar na casa deles para não terem contato com o vírus. Esses discursos parecem carinhosos, mas escondem um falso cuidado, uma falsa proteção, um falso afeto.

Não podemos esquecer que a primeira vítima do coronavírus no Brasil foi uma diarista. Dona Rosana Urbano partiu muito jovem, aos 57 anos de idade.

Os patrões não a pouparam. Já senti na pele o que é ser apenas uma máquina de trabalho e não um ser humano. A de uma doméstica é uma vida de “nãos”. Não pode ter sentimentos, não pode sorrir, não pode ter registro em carteira, não pode comer as mesmas comidas dos patrões e não pode se ausentar do trabalho mesmo em uma epidemia mundial e com recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS)!

Preta Rara, rapper e ex-empregada doméstica que me honrou com a sua presença no dia do lançamento da Frente Parlamentar pela Valorização do Trabalho Doméstico e de Cuidados, que presido, falou sobre o livro que escreveu, onde afirma que a senzala moderna é o quartinho da empregada.

Se a senzala moderna é o quartinho da empregada, as denúncias de trabalho análogo à escravidão não só escancararam as condições subumanas que muitas trabalhadoras domésticas têm que se sujeitar para sobreviver, como também evidenciou o sistema de escravidão moderna. 135 anos se passaram, mas as condições de trabalho de muitas mulheres negras são as mesmas.

A profissão de Doméstica é um resquício do período colonial. A preta continua com a roupa para lavar, com a casa para limpar, com os filhos dos patrões para cuidar, mas sem a carteira assinada. Somos mais de 90% de trabalhadoras domésticas, mas três em cada quatro estão sem registro em carteira; sem direitos trabalhistas assegurados.

Termino a reflexão sobre a liberdade que queremos enfatizando que temos uma grande tecnologia a nosso favor: a nossa voz. A luta pela humanização da população negra é constante e a nossa voz precisa ser ouvida. Colocamos nossa boca no mundo para criar narrativas que se contraponham ao racismo e as violências físicas e simbólicas decorrentes dele.

Queremos social e reparação histórica. Meu mandato representa a presença da mulher da periferia de que luta, briga e grita pelos seus direitos como cidadã. Estamos organizadas e disputando e ocupando espaços, com a coragem e ousadia de quem quer transformar esse mundo.

Vamos ocupar todos os espaços possíveis e fazer a luta coletiva com os ativistas da luta por moradia, com a juventude, a população negra, a comunidade LGBT e com vários outros movimentos sociais. Vamos usar a nossa voz para denunciar as opressões históricas contra a população negra, gritar por liberdade e direitos e denunciar a mentalidade colonial que ainda faz parte da nossa sociedade. Nós resistimos! E queremos existir com dignidade e afeto.

Fonte: Mídia Ninja           Capa: Reprodução/Mundo Negro

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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