ÁGUAS EMENDADAS SOB PRESSÃO: OS DESAFIOS DA CONSERVAÇÃO

ÁGUAS EMENDADAS SOB PRESSÃO: OS DESAFIOS DA CONSERVAÇÃO

Águas Emendadas Sob Pressão: Os Desafios da Conservação

A defesa das Águas Emendadas como Patrimônio Mundial é uma causa urgente e essencial, pois trata-se de um território estratégico para a conservação ambiental e a garantia do abastecimento hídrico do Distrito Federal, do Brasil e da América do Sul

Por Adeilton Oliveira de Souza

Como Santuário Hídrico Estratégico, a Área de Proteção Ambiental de Águas Emendadas representa o elo de ligação de duas importantes bacias (Tocantins/Araguaia e do Prata), fundamental para a recarga de aquíferos vitais, ultrapassando fronteiras geográficas e assegurando a sustentabilidade da região em longo prazo.Além de sua função hidroambiental, Águas Emendadas é um remanescente precioso de integridade do Cerrado, um dos biomas mais ameaçados do planeta.

Seu papel como hotspot de biodiversidade preserva uma rica variedade de espécies nativas, funcionando como um refúgio natural indispensável para a manutenção dos processos ecológicos regionais.A área também possui valor cênico ímpar e conexão histórica significativa, reconhecida como Patrimônio Misto. Essa região faz parte da Picada da Bahia — rota histórica que liga a Bahia ao Planalto Central desde o período colonial — agregando valor cultural à sua riqueza ecológica e reforçando a importância da preservação integrada dos aspectos históricos e naturais.

Do ponto de vista científico e histórico, Águas Emendadas tem sido objeto de estudos desde o século XIX, incluindo importantes expedições como a do Visconde de Porto Seguro, Francisco Adolfo de Varnhagen, e a Missão Cruls, que consolidaram seu papel fundamental na compreensão da geografia, hidrologia e ecologia brasileiras.É também sede da memória do lendário Mestre d’Armas, perito armeiro que morava nas mediações de Águas Emendadas, considerado o fundador lendário do povoado que deu origem à cidade de Planaltina, marcando um importante elo entre a história cultural e ambiental da região.

Por fim, o reconhecimento das Águas Emendadas como Patrimônio Mundial representa um compromisso ético e científico com a proteção deste berço das águas brasileiras. Tal reconhecimento garantiria a preservação da sua função ecológica, o valor cultural e o legado científico, blindando-os contra ameaças futuras e assegurando que este patrimônio natural siga beneficiando as próximas gerações.

A importância ecológica e simbólica de Águas Emendadas (ESEC-AE) é inegável, mas a unidade de conservação enfrenta sérios desafios que ameaçam seu equilíbrio. Um dos problemas mais visíveis é a invasão de plantas exóticas, que dominam e sufocam a grande vereda, alterando a vegetação nativa.

Além da ameaça botânica, a presença humana irregular é constante. Registra-se a invasão de caçadores dentro da unidade, colocando em risco a fauna local. Pior ainda é o problema dos animais domésticos abandonados nas margens; esses animais se tornam selvagens e passam a caçar a fauna silvestre, desregulando o ecossistema. Tudo isso se soma à intensa pressão antrópica exercida pelas ocupações e atividades nos arredores da ESEC-AE.

Monitoramento hídrico de um ano, tendo como referência a nascente símbolo de Águas Emendadas.

A sequência temporal do monitoramento fotográfico de Águas Emendadas ilustra perfeitamente o ciclo hidrológico extremo da região.

Linha do tempo consolidada de registros visuais de 1 ano:

jun
Junho de 2024: Início do registro, mostrando o nível inicial da água na nascente.
ago
Agosto de 2024: Observa-se a água já em declínio acentuado.
set
3. Setembro de 2024: Registro da nascente da Grande Vereda totalmente seca.
out
Novembro de 2024: Após o retorno das chuvas, a nascente aparece cheia novamente.
mar25
Março de 2025: Registro do auge do volume hídrico, com a nascente completamente cheia no período final das chuvas.

Essas imagens são uma prova concreta da dinâmica da água no Cerrado.

A dinâmica da nascente de Águas Emendadas segue rigorosamente o regime de chuvas e secas do Cerrado, como evidenciado pelo monitoramento de um ano.

A variação hídrica da nascente demonstra uma resposta direta ao período hídrico local, oscilando entre o volume máximo e a ausência total de água:

1. Período de Transição (Junho/2023): No final do período chuvoso de 2023, a nascente apresentava uma quantidade de água considerada boa, indicando o volume acumulado das chuvas anteriores.
2. Declínio da Estiagem (Agosto/2023): Com a chegada da seca, o volume de água começa a diminuir progressivamente.
3. Seca Total (Setembro/2023): O ponto crítico é atingido, com a nascente da Grande Vereda secando completamente, evidenciando a vulnerabilidade do sistema durante a estiagem.
4. Recuperação Imediata (Novembro/2023): Com o início do novo ciclo de chuvas, a nascente demonstra uma rápida capacidade de recarga, voltando a ficar plena.
5. Saturação Hídrica (Março/2025): Durante o auge e final do período chuvoso (março), a nascente mantém-se plenamente abastecida, confirmando que seu funcionamento é intrinsecamente ligado ao ciclo sazonal de precipitação.

Essa observação reforça como a saúde da nascente depende diretamente da manutenção do regime de chuvas do bioma.

O último registro da dessa nascente é a de Rui Faquini em 2006, antes desse monitoramento histórico de 1 ano não havia outros registros.

Captura de tela 2025 10 24 143000
Imagem de Rui Faquini 2006.

Potencial Arqueológico e Histórico na ESEC-AE: A Constelação de Nascentes

Durante o monitoramento da Estação Ecológica de Águas Emendadas, a equipe foi conduzida à área denominada “Constelação de Nascentes”, um local caracterizado pela alta densidade de fontes hídricas, cuja quantificação exata ainda é indeterminada pelos servidores locais.

Neste sítio, foram identificados elementos que sugerem ocupação humana pretérita de longa duração:

Captura de tela 2025 10 24 143055

  1. Estruturas Antigas: A presença de um muro de arrimo de considerável antiguidade foi documentada. Embora a datação precisa ainda dependa de estudos especializados, as características construtivas apontam para uma possível datação entre 100 e 200 anos.
  2. Vestígios Líticos: Nos arredores da estação, em áreas de cerrado rupestre, foram observadas lascas de pedra retiradas de afloramentos rochosos. A clareza das marcas de intervenção nessas rochas sugere a ocorrência de atividades de confecção de artefatos ou manejo de recursos por grupos humanos passados.

Diante desses indícios materiais, torna-se imperativa a formação de uma equipe multidisciplinar para a realização de estudos arqueológicos e, possivelmente, paleontológicos na região de Águas Emendadas. A urgência reside em analisar metodologicamente esses vestígios antes que a pressão antrópica circundante comprometa sua integridade.

É um achado promissor que reforça a necessidade de valorizar e proteger este território.

Adeilton Oliveira de Souza é Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB

Respostas de 2

  1. O autor esquece, ou não cita de maneira deliberada, a total ausência de um política de conservação para Águas Emendadas por parte do GDF. A fiscalização na região é praticamente inexistente, tanto na questão do uso irregular e abusivo do recurso hídrico quanto do parcelamento irregular de terras rurais. Outorgas são dadas sem um estudo de disponibilidade hídrica específico do local e sem estudos dos possíveis impactos ambientais sobre a unidade de conservação. O GDF também permite o avanço urbano e do agronegócio sobre a unidade de conservação e insiste em projetos absurdos que só farão piorar o atual estado de degradação, como, por exemplo, o projeto de duplicação da rodovia DF 128 exatamente no trecho que passa ao lado da ESEC-AE. Estudo da UnB/FUP já comprovou a contaminação por mercúrio do solo e da vegetação e do solo da ESEC-AE por conta da intensa queima de combustível fóssil nas rodovias próximas. O GDF só quer piorar as coisas.
    A negligência do poder público distrital está afetando seriamente a disponibilidade hídrica em toda a região da ESEC-AE e já existem dados que comprovam o rebaixamento do lençol freático, como os números de medição de águas subterrâneas da Estação 19, da Adasa. Além disso, a perda de volume de água na vereda está fazendo com que espécies típicas de solos drenados invadam o que antes era território de espécies de solo hidromórficos, descaracterizando a grande vereda originalmente de 6km de extensão. Em outubro de 2024 a TV Câmara Distrital registrou pela primeira vez na história uma área simbólica da grande vereda, o Poço do Jacaré (área da foto desta matéria), totalmente seca.
    Isso não pode ser normalizado ou escondido. É um grito de socorro que a nascente Águas Emendadas está emanando para todos nós. Devemos escutá-lo e não fingir que está tudo bem ou deixar de lado as mazelas de quem tem a responsabilidade de zelar por esse imenso e incomensurável patrimônio natural do Brasil e da América do Sul.

    GAE – Guardiães de Águas Emendadas
    @gaeaguasemendadas

    1. Excelente análise. Podemos expandir esses comentários em uma matéria? Por gentileza, se tiver interesse, entre em contato com Zezé Weiss 61 9 9872 1313. Gratidão!

Deixe seu comentário

UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

PARCERIAS

CONTATO

logo xapuri

REVISTA

💚 Apoie a Revista Xapuri

Contribua com qualquer valor e ajude a manter vivo o jornalismo socioambiental independente.

A chave Pix será copiada automaticamente.
Depois é só abrir seu banco, escolher Pix com chave (e-mail), colar a chave e digitar o valor escolhido.