Antes da pandemia, Ailton Krenak mantinha uma agenda intensa. Por conta da produção, viajava com frequência pelo Brasil. Desde a chegada do vírus, Krenak cumpre, porém, a quarentena na terra indígena de sua etnia, a 200 quilômetros de Belo Horizonte. “Mantemos as nossas famílias próximas. Podem encontrar-se no quintal, podem comer juntos, não precisam usar máscara. Temos um regime orientado por um protocolo comunitário”, conta. No oásis à margem esquerda do Rio Doce, em meio ao caos sanitário, ele segue alerta para os dramas do mundo, como demonstra na entrevista a seguir. Veja a matéria concedida por Krenak à Carta Capital:
Carta Capital: Você e os Krenak passam juntos a quarentena. Como tem sido a experiência?
Ailton Krenak: A pandemia não é um evento local. Posso estar sem contágios na minha aldeia, mas há vários casos no entorno. Nos grandes centros urbanos há alguma vigilância. Mas nas bordas do Brasil, na periferia, nas beiradas, no Porto de Manaus, no Porto de Belém, ninguém controla aquele fluxo. Lá na reserva, observamos preocupados. Não adianta nos protegermos se o lado de fora está bagunçado. O recrudescimento da Covid-19 é um risco grave para nossas vidas. Temos consciência, mas tememos que os vizinhos não tenham. Somos uma sociedade do contágio. Por mais que um de nós tome cuidado, sozinho não consegue evitá-lo. Mantemos nossas famílias próximas, as irmãs, os cunhados, podem encontrar-se no quintal, podem comer juntos, não precisam usar máscara. Temos um regime orientado por um protocolo comunitário, tomamos decisões juntos. Lá não há decisões individuais. Se alguém põe em risco o coletivo, pode sofrer algum tipo de sanção, inclusive posto para fora.
CC: Quais são as consequências e as lições desta pandemia?
AK: A morte deixa um trauma tão mal resolvido que ninguém consegue sair ileso. Há perda de identidade, de memória e acomodação em uma condição de sobrevivente. Isso não é bom para uma comunidade que precisa administrar suas necessidades materiais. Voltar a trabalhar, voltar a cuidar da rotina doméstica. Muitos não conseguirão. E isso é muito ruim. Estamos vivendo um tempo no qual ser otimista é falta de educação. É sinônimo de estar alheio ao sofrimento dos outros.
CC: Você protagonizou uma das cenas mais memoráveis da Assembleia Constituinte. Dói, 33 anos depois, ver tantos ataques à Constituição?
AK: O trato dos poderes com a Constituição piorou. Mas não é algo que acontece só nos últimos tempos. Havia PECs tramitando há anos para mudar o capítulo dos índios, tirar o direito dos quilombolas, reduzir políticas públicas. Essa fúria contra a Constituição piorou nos últimos dois anos. E deixou de ser tentativa para se tornar fato. É o desaparelhamento interno do Estado brasileiro. Das condições necessárias para fiscalizar e proteger os territórios indígenas. E um estímulo crescente à violência contra nós, banalizando a ideia de proteger o meio ambiente, como se fosse coisa de gente boba. Quem é sabido mesmo passa o trator, passa a boiada. Esse ministro do Meio Ambiente é um playboy fazendo fantasias tecnológicas do que ele acha que é administrar. É uma ofensa à história da luta ambientalista no Brasil o que esse sujeito faz.
CC: Ainda é possível firmar consensos no Brasil?
AK: Estamos no Brasil em uma situação desgraçada, que mistura pandemia e essa miséria política. Fora do Brasil, ao menos, há esperança de abrir outros debates acerca das desigualdades que a pandemia agravou, as mudanças climáticas, os refugiados… Essa é uma questão muito importante até para entender a pandemia. Essa movimentação de gente, atravessando fronteiras no mundo inteiro, pode ser um vetor de novas pandemias que podem arrasar a gente.
CC: O mundo está mais tribal?
AK: O mundo não é uma pessoa. O mundo, idealmente, seria a humanidade, constituída por gente igual. Como não somos nada iguais… No livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo, eu ponho em questão o tópico da humanidade. Pode ser um propósito, uma intenção, mas não existe. Antes, havia uma divisão por classes. Os ricos e os pobres, os brancos e os pretos, o rural e o urbano. Eram divisões bem primárias. Agora temos coletivos, dentro de uma mesma cidade, hostilizando um ao outro. Intolerância religiosa… Há uma guerra entre esses mundos que se articula com as outras irritações de diferentes setores dessa coisa que somos nós todos, mas que não constitui uma comunidade. Somos ajuntamento de povos sem nenhuma afinidade. Se não quisermos desembocar em uma guerra civil, precisamos construir consensos, mas os políticos estão todos perdidos, feito cegos em tiroteio. Ninguém sabe o que está fazendo, nem o governo nem os que estão fora.
CC: Muitos estudiosos veem neste momento de crise sinais de queda do capitalismo. Você concorda?
AK: Vivemos uma fase grotesca do capitalismo, mas não acho que estamos em uma crise que vai diminuir a potência dele. O capitalismo tem produzido uma mudança em si mesmo porque não fomos capazes de produzir uma mudança fora. Ele vai destruir o mundo do trabalho como conhecemos, e vai dispensar a ideia de população. Essa, para mim, é a próxima missão do capitalismo: se livrar de ao menos metade da população do planeta. O que a pandemia tem feito é um ensaio sobre a morte. É um programa do necrocapitalismo. A desigualdade deixa fora da proteção social 70% da população do planeta. E, no futuro, não precisará dela sequer como força de trabalho. Quem promete um mundo de pleno emprego é cínico ou doido. Não existe nenhuma possibilidade material de as coisas voltarem a funcionar assim.
CC: Mas não há nada positivo nisso? Por exemplo, a chegada de grupos marginalizados ao poder. Mais gente preocupada em repensar a relação com o consumo…
AK: O fato de ter parlamentares indígenas, LGBTs e etc. mostra um endurecimento desse processo de transição. Isso não muda as coisas, apenas será integrado ao processo de desestruturação programada em que estamos todos metidos. Quanto à renúncia à vida de consumismo de quem, como um hamster, só se preocupa em comer e consumir, sem saber de onde vem, só uma parcela notou que está errado. Não representa mudança no sistema global, no aquecimento do planeta, na erosão da vida. Os cientistas mais ilustres dos anos 1980 em matéria de mudança climática, quando viram o tempo que nos resta, foram para suas fazendas no Texas, no Maine, deram no pé. Hoje, vários acreditam em redução de danos, mas é difícil encontrar algum que afirme ser possível contornar a degradação.
Fonte: Revista Carta Capital Publicado na edição n.º1138 de Carta Capital, de 30 de dezembro de 2020.
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