Por Paulo Tarciso Okamotto

Em sua versão mais desavergonhada, propagadores dos discursos de ódio inventaram um universo paralelo no qual o governo federal seria o grande ausente. Tentaram emplacar a ideia tão irreal quanto estúpida de que se os governos saíssem de cena, deixando os voluntários fazerem seu abnegado trabalho, tudo estaria melhor e mais bem encaminhado. Para esse anarquismo tresloucado, o indivíduo é tudo, o Estado, nada.

Mas neste festival de insensatez, nem todos os gatos são pardos. Tem a extrema-direita que vocifera e anda pelo Guaíba de jet ski, como o filho 03 do ex-presidente, Eduardo Bolsonaro, buscando fazer filminhos pretensamente lacradores em suas redes sociais. Mas tem também gente fina, que simula civilidade comendo de garfo e faca entre comensais que sonham em retalhar o Estado brasileiro e deixar o povo na miséria. Proteção social e serviços públicos, para esses, são um luxo.

Parte desta turma se reuniu na semana passada em Nova York em mais um desses encontros montados pela casa de eventos e negócios do LIDE.

Algo de novo sob o céu? Nada, nadica. Guedes retomou a defesa de seu calamitoso programa e, já sonhando com a volta à Brasília de um governo de direita, afirmou que privatizações, desvinculações orçamentárias e menos proteções sociais voltarão ao centro das políticas no país. A cereja do bolo do seu receituário é algo que não conseguiu fazer quando sentou na cadeira mais poderosa da Esplanada dos Ministérios – a implantação de um sistema de capitalização na Previdência Social.

Aquele sistema levado à frente pelo finado ditador chileno Augusto Pinochet tem como fundamento o segurado dispor de uma conta individual em um fundo privado de previdência, enquanto o governo se afasta por completo. Neste regime, sai de cena qualquer ideia de solidariedade social, que é o básico na Previdência Pública, na qual o Estado recolhe dos contribuintes (empresas e indivíduos) numa ponta e distribui para aposentados e pensionistas na outra ponta.

Contra toda a evidência da explosão social do fim de 2019 no Chile, justamente para derrubar o sistema de capitalização, Guedes disse que esse regime de previdência é um sucesso. Não há, porém, nenhum estado de bem-estar social no mundo, principalmente na Europa, em que o regime previdenciário seja privado e não público.

Parte relevante dos donos do dinheiro no Brasil ensaiam um figurino “garfo e faca” para o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, que tem Paulo Guedes em conta dos gênios brasileiros. Suas agendas de privatização desmedida mostram que ambos bebem da mesma fonte de maldades contra o povo e de bondades para as elites endinheiradas. A correlação entre o que Tarcísio está em vias de fazer na venda de 30% da Sabesp, com o Estado de São Paulo renunciando ao papel de acionista majoritário na empresa pública de capital misto, tem tudo a ver com o que Paulo Guedes fez na venda da Eletrobras, na qual que a União também deixou de ser o acionista controlador.

Agora, mandam os mercados. E o que se observa? Tão somente o favorecimento sem limite dos acionistas, com a farta distribuição de dividendos. Tão farta que a primeira trava desse modelo é remover a condicionante de limitar a distribuição de dividendo a 25% do lucro, como previsto na Lei das S.A. e praticado pela SABESP. No caso da Petrobras, desde que esse limite foi retirado por Guedes, a empresa distribuiu em menos de quatro anos o valor de uma Petrobras inteira.

Como o mundo da política não é governado por desejos nem suspiros, também o pessoal neoliberal que come de garfo e faca não pisca quando se impõe estar junto com os extremistas mais eloquentes, como o ex-presidente da “gripezinha”. Esses são os que acabam dando as cartas. E fazendo perguntas que sabem ser “sem noção”, como a do deputado Eduardo Bolsonaro: o que teria sido o Brasil na pandemia se Lula fosse o presidente?

Respondeu-lhe o colunista de domingo do jornal Folha de S. Paulo, Celso Rocha de Barros: “Lula faria o mesmo… que qualquer adulto que estivesse na Presidência: seguiria as recomendações dos cientistas, compraria vacina, cooperaria com os governadores.” E de forma lapidar arrematou: “Mas sobretudo, até mais do que pelo golpe, seu pai deveria ser preso pelos vários Maracanãs cheios de brasileiros que vocês deixaram morrer se debatendo por oxigênio.”

Embora Paulo Guedes também tivesse querido estripar o Sistema Único de Saúde, nada como os fatos e a realidade. Para remover da frente os serviços e os bens públicos providos pelo Estado, em favor da acumulação selvagem de capital e riquezas, essa gente toda, coma ela com garfo e faca ou não, vai ter de vencer o Brasil civilizado e humanista nas urnas, mesmo sempre sonhando com golpes.

O fato, querido leitor ou leitora, é que para reconstruir o Rio Grande do Sul será necessário ainda mais a presença e ações do Estado em seu conjunto, com entrosamento de todas as esferas estatais. Assim como é o Estado que deverá se preocupar em aprimorar a legislação e seus planejamentos orçamentários para que as cidades não passem por esta situação em que está passando o povo gaúcho.

Aliás, os estudos demonstram que foi a ausência de Estado que nos levou para esta encalacrada. Ignorou as evidências e os alertas urgentes da ciência e, como vimos, não funcionou como deveria para proteger a população.

Esse debate é circular, repetitivo às vezes, mas inevitável. Eles não desistem. Nós muito menos.

Paulo Okamotto – Presidente da Fundação  Perseu Abramo.

Fonte: Revista Focus Brasil  

Foto:  Ricardo Stuckert/PR