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A Seca de 77

A Seca de 77

Foi em 1877 que aconteceu a grande seca no nordeste que, até hoje, não deixa de ser lembrada…

Por Hélio Melo (1926-2001) 

Aos poucos, ela foi matando as plantas e as criações, de forma que os agricultores não encontraram outra saída a não ser reunirem as suas famílias e rumar em direção à cidade, em busca de sobrevivência.

As cidades ficaram lotadas de povos vindos dos arrabaldes.

Também na cidade, essa gente passou privação. A assistência dada pelo governo era trabalho, mas não para todos, pois era grande o número de pessoas desabrigadas.

Depois de algum tempo, voltou a chover. O povo, amedrontado com acontecido, recusava voltar para roça, pensando não só na perda das criações e plantações, mas também na perda de pai, parentes e irmãos. Nem todos pensaram assim; uma minoria voltou às suas cabanas.

Hoje, lembramos alguns fatos dessa época, aproveitando histórias de velhos nordestinos que, em tempos de criança, foram vítimas desse acontecimento.

Como exemplo, temos as histórias contadas por Angélica da Silva que, na época da seca, tinha 14 anos de idade. Seu pai, Joaquim Serra Grande, e sua mãe, Antônia Aprígio da Silva, morava na serra de Baturité no Ceará.

HELIO MELO ilustracao 1

Dizia que, já é 1875, o povo, para conseguir água, tinha que andar de três a quatro horas de viagem. Roupa não se lavava, apodrecia no corpo. Também apareceu uma doença de nome “cola”, que dava disenteria e matava, em menos de 24 horas, os já enfraquecidos pela fome. O povo até andava com o nome escrito num papel, dentro do bolso, que era para que quando fosse encontrado morto se soubesse quem era.

Também tinha uma doença chamada “pele de lixo”. Quando a pessoa é atingida por ela, aos poucos ia largando a pele do corpo, e não havia cura, morria no maior sofrimento.

Nessa época, o remédio mais usado era o “específico”, que eles tomavam para curar todo tipo de doença. É bom saber que existiam vários tipos de “específicos”, os para crianças e adultos, os contravenenos e para curar doenças.

Na pior seca, Angélica recebeu em casa a visita do seu padrinho, e ele lhe disse:

– Minha filha, procure sair o mais breve possível para a beira-mar, porque está morrendo muita gente de fome de sede.

Deu a ela, então, uma novilha e um saco de farinha para comer na viagem.

Aconteceu que na véspera da viagem, noite Joaquim Serra Grande pegou a carne quase todo deu no pé. Mas vocês não deram muita importância pois ela era muito ruim para família.

Também não desmancharam viagem, e foi assim que Angélica, sua mãe e seus irmãos menores, Tangino, Miguel e Joaquim, se despediram das cabanas e se mandaram, estrada a fora.

Da Serra de Baturité, onde Angélica morava, até chegar à beira-mar, tinha que andar mais de 10 dias a pé.

A água, arranjaram com os fazendeiros e, assim mesmo, era regrada.

Dizia a ela que fazia dó. Aqui e acolá, encontravam uma pessoa morta à beira da estrada e cachorros escavando raízes para saciar a fome.

Teve um dia que Angélica esmoreceu, com sede; seus irmãos deixaram tudo quanto levavam e saíram correndo estrada afora, à procura de água, a qual, por sorte, encontraram.

Angélica, ao tomar a água ainda passou mal, pois tomava o líquido e vomitava, sendo que só da terceira vez é que segurou a água no estômago.

A verdade é  que a Angélica escapou,  com todos os seus, e foram ter mão na cidade, enquanto Joaquim Serra Grande talvez tenha até morrido, pois ninguém mais deu notícia dele.

Na época da seca, o governo dava passagem para os que quisessem ir para a , ou para qualquer outro lugar, pois era grande número de pessoas em busca da sobrevivência.

Angélica, que ficou no Ceará, presenciou todo o movimento da seca. Dizia a ela que, na cidade, só existia uma mulher solteira – a Carlos, mas, depois da seca, apareceu um grande número. Essas mulheres se vendiam até a troco de bolachas, e Angélica mesmo foi uma que se perdeu com 14 anos de idade. Depois da cerca, alguns voltaram para roça.

HELIO MELO ilustracao 2

Em alguns lugares, as vacas parirão de dois bezerros de uma vez. Quando isso aconteceu, em seu sermão o povo achou que era o fim do mundo, mas ficaram contentes quando o Padre Cícero falou que Deus era bom e estava fazendo isso para recuperar o que eles tinham perdido. Então, depois de algum tempo, as vacas voltaram a ter parto normal.

Também o Padre Cícero, em seu sermão, dizia que aquela grande seca era castigo, devido ao povo ser muito preconceituoso. Como, de fato, eles mantinham uma ordem rígida, a moça tique que casar com gente da família e, se não encontrasse um parente, ficava “pra titia”. A verdade é que o acontecimento da seca quebrou uma grande parte dessa tradição.

Angélica ficou com os seus na cidade. Sofreram muito porque, nessa época, tudo era muito difícil. Passado algum tempo, ela casou com um senhor de idade, de nome Sales Guerra. Juntos, construíram família e tiveram dois filhos, Francisco e Francisca.

Teve uma época em que eles estavam mal de vida e resolveram ir para a Amazônia, para o seringal Maripuá, no rio Purus. Chegando lá, Sales não quis trabalhar como freguês. Dizia ele:

– Eu quero ser é seringalista.

O certo é que deixou Angélica com os dois filhos no barracão, embarcou numa canoa e entrou no rio Juruá, em busca de fazer explorações, mas por lá os índios deram sumiço nele.

Antes de viajar, Sales já tinha sido avisado de que as explorações eram perigosas, mas ele era ambicioso e teimoso. Foi sozinho, e sozinho ficou para sempre.

Angélica ainda ficou seis meses no barracão esperando o Sales, mas o patrão, não querendo sustentar Angélica e os seus dois filhos, armou uma cilada. Fez uma carta falsa em nome de Sales, dizendo que ele não tinha feito nada na exploração de seringa, mas que, em compensação, tinha arranjado um bom emprego em , e que ela fosse para onde ele estava.

Angélica, ao receber a carta, deu saltos de alegria, abraçada a seus filhos; o patrão se encarregou de conseguir passagens, e eles viajaram. Chegando em Manaus, ficou um dia e uma noite a bordo do navio, e Sales nunca apareceu. A verdade é que ela chegou a dormir três noite pelas ruas da cidade, passando fome com os filhos pequenos, até que resolveu viver de lavagem de roupas. E assim foram mais de dois anos de sofrimento.

Angélica era muito devota e sempre pedia a Deus um meio de melhorar de vida. Sendo assim, aconteceu. Ocorreu que passou um parente seu por Manaus e a trouxe para a colocação São Pedro, no rio Acre.

Depois de três meses, ela casou com o seringalista de nome João Pedro da Silva, dono do seringal Triunfo, e, daí em diante, não passou mais necessidade. João Pedro da Silva, por sinal, também foi vítima da seca de 77, quando contava com a idade de sete anos e morava no bairro União, no Ceará.

Ambos, Angélica e Pedro, faleceram. Angélica, em 1946, e João Pedro, em 1956. Ela com 83 anos e ele com 86.

MELO, Hélio. História da Amazônia: “Do seringueiro para o Seringueiro”. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1986. p. 35-44. As ilustrações também são de Hélio Melo.

Fonte originária desta matéria: Alma Acreana

HELIO MELO ilustracao 3

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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