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Maconha. STF

AS RUAS. A MACONHA. A DECISÃO DO STF

As Ruas. A Maconha. A decisão do STF
O STF abriu uma porta para um debate e critérios mais eficazes, ligados a expertises técnicas
Por Pedro Chê e David Pinter Cardoso

O meu primeiro artigo para o Portal ICL Notícias, decidi escrevê-lo a quatro mãos, em parceria com David Pinter Cardoso. Essa colaboração entre um policial e um juiz não é aleatória; nossa intenção é combinar essas perspectivas para analisar os impactos previstos e refutar suposições envolvendo a decisão do STF em relação à descriminalização do consumo de maconha e a estipulação de 40 g como critério na diferenciação entre usuário e traficante.

A política de drogas, quando debatida publicamente, com frequência é tratada de forma esdrúxula ou exaltada, portanto ao se falar em descriminalização, certos seguimentos liderados pela apocalíptica ‘bancada da bala’ vaticinaram que estamos à beira de um precipício e que a decisão, se não enfrentada, nos transformaria num ‘país de viciados’. Uma perspectiva realmente curiosa, levando-se em conta que mais de 60% da população adulta é usuária de álcool e isso não produz qualquer barulho, enquanto se soam as trombetas quando o assunto é a maconha e seus 3% de consumidores. Mas as curiosidades não ficam restritas a este público, há aqueles que comemoraram, até com dancinhas no TikTok, uma ‘liberação da maconha’ que não aconteceu.

Na prática, a realidade das ruas não sofreu qualquer alteração. Se alguém for pego pela PM ou GM com uma ‘baga’ no bolso, será encaminhado à delegacia. Quando falo em tese é por que há uma exceção, ela se encontra entre os apenados. O uso de maconha, como não é mais crime, não configura mais falta grave, cujo reconhecimento causa a regressão do regime prisional.

Apesar disso, não vejo essa decisão como um ‘mais do mesmo’. Ela introduziu um critério concreto, em meio a tantos especulativos previstos na Lei de Drogas, para diferenciar usuário de traficante. Esse critério, aliás, é usado em outros países, como Uruguai e Portugal, que possuem relações mais pacíficas e menos danosas do que as nossas quanto ao uso e o mercado ilegal de drogas. Mas acerca deste ‘avanço’ reside um grande erro de entendimento, pois há aqueles que entendem que estar de posse de menos de 40 gramas significa estar ‘safo’. Esta estipulação não é magna, suprema, nem poderia, dada a função do Judiciário: que é analisar a constitucionalidade de leis, tratar de omissões legislativas, mas não reformular políticas públicas.

As circunstâncias associáveis ao tráfico continuam as mesmas, o que tem gerado críticas (justas frente às expectativas). Pouco será alterado na abordagem se for pego portando drogas em bairros periféricos e estiver incluído em certos estereótipos, a mazela da diferenciação de tratamento não desapareceria tão facilmente. A decisão do STF permite que pessoas abordadas com menos de 40 gramas ainda sejam tipificadas enquanto traficantes, e essa avaliação continuará sob a forte influência de exames subjetivos ou circunstanciais.

Isso significa que não redundará em algo expressivo, coletivo? Não é o que estou dizendo. Entendo que haverá um ganho subjetivo, ao mesmo tempo em que se pavimentará um caminho para ganhos concretos no futuro, caso façamos nosso dever de casa.

Quanto ao ganho subjetivo, abstrato, adianto que o David e eu temos perspectivas diferentes. Eu espero, por exemplo, uma tênue mudança valorativa dentro dos procedimentos policiais. Presenciei centenas de ocorrências relacionadas à Lei de Drogas, e uma visão centralizada no tráfico é muito comum entre os operadores (aliás, continuará). No entanto, com o critério ofertado pelo STF, acredito que a lógica que acompanha esta visão terá de admitir, forçosamente, a existência de um novo parâmetro de análise. Embora a quantia de 40 gramas não seja impositiva, ela terá relevância no processo cognitivo, ao passo em que certas interpretações ganhem força no Judiciário, naturalmente os corpos policiais se adequarão. Meu amigo David entende que o tratamento para as pequenas quantidades pode continuar sem muitas alterações ao que é realizado atualmente, ante as exceções abertas pela decisão para tratar como tráfico de drogas apreensões de droga de menos de 40 g.

Há um elemento desvalorizado e que poderá resultar em mudança: há uma ética silenciosa entre policiais, especialmente na base, na qual estipular uma ocorrência como sendo ‘consumo’, ao invés de tráfico, redunda numa desvalorização do esforço, do trabalho e da competência da equipe responsável pela apreensão, o que constrange muitos policiais — principalmente aqueles mais ligados ‘à letra da lei’, que preferem se calar a ficarem malquistos.

O que talvez seja alvo das maiores lamentações está nos ganhos não alcançáveis neste momento pela decisão. Encontrando como barreira a lógica “Tom e Jerry” de fazer polícia no Brasil. Essa lógica para funcionar e produzir um grande volume de prisões baseia-se em uma produção de provas frágil, circunstancial, quando não irregular ou ilegal, e que não é uma escolha ou culpa somente das polícias. Longe disso. O Ministério Público, Judiciário e Poder Executivo também têm grande responsabilidade neste fracasso. Se o enfrentamento ao tráfico de drogas se baseasse precipuamente em ações preventivas e, secundariamente, na atividade investigativa (que precisaria ser reformada dar respostas mais adequadas), essa decisão realmente teria um impacto maior em nossa política.

Entender que “se nem tudo são flores” logo serão espinhos é uma atitude precipitada. O STF abriu uma porta para um debate e critérios mais eficazes, ligados a expertises técnicas, inclusive a partir dos votos de alguns ministros, trazendo diagnósticos precisos acerca da fracassada política de Guerra às Drogas. Realmente isso é muito pouco. Enquanto não fizermos o nosso dever de casa e tratarmos o assunto com a seriedade que merece, continuaremos a ver nossos presididos servindo de RH para um crime organizado cada vez mais fortalecido, deslegitimando o Estado e as polícias — consecutivamente, por meio de uma política que vem há décadas se mostrando ineficaz, sem apresentar resultados positivos.

Fonte: ICL Noticias. Capa: PIXABAY.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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