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ATHOS PEREIRA: “NÃO ME PERTENCE MAIS A SOMBRA QUE INDAGUEI”

ATHOS PEREIRA: “NÃO ME PERTENCE MAIS A SOMBRA QUE INDAGUEI”

ATHOS PEREIRA: “NÃO ME PERTENCE MAIS A SOMBRA QUE INDAGUEI”

Somos uma geração afeita aos impossíveis. Com esse verso de Neruda, ele abriu seu discurso de indicado ao Senado pelo Partido dos Trabalhadores de Goiás, em 1986, no Centro Português, salvo engano, em Goiânia. Talvez estivesse virando uma página da vida que não conhecíamos.

Econômico ao falar de si mesmo, recuperou, por alguns instantes, a atribulada trajetória: a militância, a clandestinidade, a prisão, o longo exílio e o retorno ao Brasil com a anistia de 1979. Comoveu.

Não tinha a mais remota chance de vencer. Mas ali estávamos todos movidos pela convicção de que “…não importa o porto/mas a paixão de navegar”. Vivíamos um momento de reconstrução das organizações populares e de grandes expectativas de transformação do país. As experiências que trazia  eram inspiradoras para a jovem militância que vinha das lutas sociais e ele buscava traduzi-las na luta política proposta pelo Partido dos Trabalhadores.

Não gostava de música, na adolescência. Talvez para marcar diferença contra seu entorno, embalado pela sanfona de Luiz Gonzaga e pela descoberta da Bossa Nova, talvez para se dar o tempo necessário de aprender a ouvir e defi nir, ele próprio, suas escolhas. Andava mergulhado em livros. Absorvido por eles.

Descobrira Graciliano e ficara fascinado com as figuras de Luís da Silva em Angústia, Paulo Honório em São Bernardo, Fabiano em Vidas Secas, personagens esculpidas a canivetes, em madeira, pelo talento sertanejo do romancista. Lia em voz alta As Forças Morais de José Ingenieros; A virgem de 18 quilates de Pitigrilli; Ibis de Vargas Vila; encontrou numa estante da biblioteca do ginásio um exemplar de O Adolescente de Dostoiévski.

Uma mistura eclética incapaz de saciar a curiosidade das grandes inteligências. Nunca aderiu a dogmas, fossem eles de natureza religiosa ou política. “Pensar é livre pensar”, diria Milôr, uma figura que admirava. Trouxe-me uma tarde, impresso numa revista literária, o Cântico Negro, de José Régio, o poeta português. Sinal do que se passava no seu espírito, naquele momento, meados dos anos sessenta, agitado pelas tormentas da idade e pelas sombras do terror que baixavam sobre o país.

“Vem por aqui” – dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui”!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: “vem por aqui”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…
Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei para onde vou,
Não sei para onde vou
— Sei que não vou por aí!

ATHOS PEREIRA CAPA MAE E FAMILIA scaled

De algum modo o poema de José Régio prefi gurava a trajetória que traçou para si mesmo. Sexto filho de retirantes nordestinos, Sabino e Ana, que se deslocaram do Piauí, em 1930, para a região norte de Goiás, Athos Pereira nasceu em 20 de novembro de 1946, em Porto Nacional. Ali concluiu, com destaque, em escolas públicas, os cursos primário e ginasial, estimulado pela aguda consciência e rigor dos pais de que a educação era fator fundamental para quem vinha da pobreza abrir portas às (poucas) oportunidades da vida.

O golpe de abril de 1964 o alcançou com 18 anos, quando o irmão primogênito, Hosterno Pereira, cumpria o mandato de Prefeito da cidade. Fora eleito em 1960, e era identifi cado com as forças políticas aliadas ao Presidente João Goulart e ao Governador Mauro Borges, depostos pelo golpe civil-militar.

A família, portanto, foi diretamente impactada pelo golpe, resultando no afastamento do irmão mais velho por alguns meses da condução da prefeitura. Hosterno recuperou na justiça o mandato, concluiu-o e elegeu o sucessor. A exemplo do que ocorria com as famílias pobres e numerosas do Brasil profundo, Athos seguiu sua formação com o apoio de um dos sete irmãos, Gerson, com quem foi viver, em Catanduva, interior de São Paulo, onde concluiu o curso médio.

Prestou o concurso vestibular na Universidade Federal de Goiás, em Goiânia, para os cursos de Matemática e Física, e Jornalismo. Foi aprovado nos dois. Mergulhou de imediato na militância política que atraía a juventude brasileira, no conturbado ano de 1968, a manifestar-se contra o arbítrio da ditadura. Os generais buscavam então impor à sociedade os acordos MEC-USAID que haveriam de mudar a face das instituições de ensino no Brasil.

Aquelas mobilizações históricas lançaram na vida pública uma geração de jovens lutadores que marcaria com grandes movimentos de massa a resistência contra o regime. Uma geração cujo destino foi truncado pelo ato de força de 1º de abril e caçada de forma implacável como animais depois do AI-5, pela repressão da ditadura que atormentou o país de 1964 a 1988, quando passamos a contar com uma nova Constituição.

Durante os anos de chumbo, Athos, como muitos outros jovens de sua geração, foi alvo de detenção pela repressão política do regime contra o movimento estudantil e submergiu na clandestinidade depois da imposição do AI-5, em 13 de dezembro de 1968.

A partir dali perdera as condições de sobreviver legalmente à perseguição do regime. Engajou-se na Ação Libertadora Nacional – ALN, fundada por Carlos Marighella, onde militou até 1972, em São Paulo, quando deixou o país e se refugiou no Chile da Unidade Popular, primeira experiência socialista que alcançara o poder na América Latina, pela via eleitoral, liderada por Salvador Allende. Testemunhou de perto como participante – ao lado da irmã, Dagmar, também exilada – da vertigem de viver um projeto em que uma das sociedades mais organizadas e politizadas do continente, naquele momento, buscava sacudir o jugo colonial imposto pelo Império sempre empenhado no saque de seus recursos naturais.

E, soberanamente, construir uma sociedade socialista por meio de ampla mobilização popular. Ano e meio depois, viveu para vê-la esmagada pelas forças associadas aos interesses antinacionais das classes dominantes chilenas, com o sanguinário golpe de estado de 11 de setembro de 1973, desferido pelas Forças Armadas comandadas pelo carniceiro Augusto Pinochet, sob os aplausos e explícito o apoio de Henry Kissinger e da Casa Branca. Refugiou-se na embaixada do México.

Com Dagmar e outros brasileiros, somou-se a um numeroso grupo de cidadãos, chilenos em sua maioria, seguidos de uruguaios e argentinos, que buscavam escapar do terror desencadeado pelos carabineros de Augusto Pinochet. Foram enviados pelo governo mexicano, ao lado da viúva de Salvador Allende, Hortencia Bussi, para a cidade do México, onde permaneceram por cerca de quatro meses, até encontrar, com apoio das Nações Unidas, um país que9 lhes oferecesse asilo permanente. Desembarcaram em Zaventem, aeroporto de Bruxelas, sob o frio de janeiro de 1974.

Permaneceram por cinco anos na Bélgica, até que a pressão dos setores organizados da sociedade brasileira levasse o último general da ditadura, João Batista Figueiredo, a assinar, em 28 de agosto de 1979, a Lei de Anistia que permitiu o retorno dos refugiados brasileiros ao país. Nunca foi dado a efusões. Ao regressar, depois de sete anos de exílio, estendeu a mão, talvez para evitar o abraço, e me cumprimentou com afeto, olhos nos olhos, contido, cúmplice como se tivesse ido comprar um cigarro, na esquina.

Meses depois, Athos somava-se ao esforço militante que resultaria na fundação do PT, no 10 de fevereiro de 1980. Desde então, empenhou-se na construção desse instrumento democrático de defesa dos direitos dos trabalhadores brasileiros, como militante e como dirigente, como membro do Diretório Nacional do Partido, como Presidente Regional do PT ou como vice-presidente do PT Formosa. Fez do PT o sentido mais profundo de sua vida. Transferiu-se para Brasília, onde passou a residir desde os anos 1990, e dedicou-se à consolidação da legenda, com a criação das Comissões Municipais Provisórias, com vistas a vencer os obstáculos legais ao registro de um Partido que nascia de baixo pra cima.

E, mais tarde, particularmente no suporte de sua representação parlamentar na Câmara dos Deputados, incluído aí o processo Constituinte, contribuindo com diferentes mandatos de deputados até assumir a Chefia do Gabinete da Liderança do PT, onde atuou até aposentar-se como servidor efetivo daquela Casa. Um lutador que faz parte da geração de socialistas que resistiram à ditadura, contribuíram de forma relevante com a reconstrução e consolidação da democracia brasileira. Seguirá oferecendo sua contribuição com seu exemplo às organizações de base dos setores populares por uma sociedade sem explorados e sem exploradores, como define o Manifesto de fundação do PT: o retorno à base.

Ao trabalho quotidiano de construção em estreita ligação com as lutas sociais para combater o neofascismo contemporâneo. Não deixou de amar para dedicar-se às lutas da Resistência à ditadura, aqui, no Chile ou em qualquer país por onde andou. Do primeiro casamento com a assistente social Liliana Lemus nasceram Joaquim, Pedro e Maria. Eles lhes deram os neto Valentina, Rodrigo, Clarice e João Vítor, que iluminaram seu outono.

Do segundo casamento, com a jornalista Thaís Maria Pires, acolheu como fi lhos Camila, Augusto e Júlia, e os netos que vieram: Lucca, Luiza e Ian. Sobre essa nova etapa de sua vida, serei apenas a voz que converte em som as palavras que escreveu um dia: Muitas são as formas da expressão humana. A mim não me tocou dançar, cantar ou exercer qualquer tipo de música.

Tampouco me coube qualquer intimidade com os instrumentos das artes plásticas ou com as câmeras que registram imagens. Os circos de minha infância eram frágeis. (…) Parto da suposição de que você é um pouco responsável por mim. Porque, tal como sou hoje, não deixo de ser uma invenção sua. E todos nós que cercamos a longa agonia testemunhamos a abnegação e a profundidade desse amor maduro que respirou por ele, Thais, Thais, Thais… até a manhã do dia 13 de agosto, quando lhe faltou o alento e se despediu. Uma última palavra, todos os que o cercamos ao longo da vida levaremos a lembrança do humor cáustico e a predileção pelo Grants.

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Na política uma visão estratégica socialista de transformação da sociedade a longo prazo, combinada com uma visão tática pragmática para o imediato. Seguiu sendo um leitor apaixonado: Gabriel García Marquez, Borges. E a reconciliação com a música: Ne me quite pas, de Jacques Brell, segundo ele um Chico Buarque belga, e os barrocos clássicos europeus: Albinoni, Bach, Vivaldi, que o acompanharam até os últimos dias. No fim: o rio, as cinzas, as rosas, o vento e o Concerto de Aranjuez, para fecundar a vida dos que vão nascer, inspirados por esse coração militante.

Hamilton Pereira da Silva, Pedro Tierra, irmão de Athos Pereira, casado com Juliana, pai de Ana Terra, Alexandre, Francisco e Sophia. Palavras proferidas durante o ritual de despedida, realizado no Cemitério Campo da Esperança, em Brasília, na tarde do dia 14 de agosto de 2024.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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