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AWA IHA: UMA ESCOLA NA “LÍNGUA DA GENTE” 

AWA IHA: Uma escola na “língua da gente”

Arixa ta pape japoha ripa, arixa ta awa ´ĩha

(Em língua Awa. 2024).  

Queremos escola, mas uma escola na língua da gente

(Tradução livre).

Por José Bessa Freire 

O povo Awa (Gente) do Maranhão reivindica uma escola, mas uma escola em awa ‘ĩha (língua da gente). Eles também querem aprender a ler e escrever em português como segunda língua, mas rejeitam a “fábrica de fazer brancos” que, por ser monolíngue, devora as crianças indígenas, como registra o andino sobre a origem da escola colonizadora.

O modelo de escola e o projeto do curso de magistério indígena Awa Pape Mumu'ũha Ma'a kwa Mataha foram discutidos pelos Awa agora em maio durante oficina organizada pela Funai dentro da Terra Indígena Awa.

Participaram professoras, professores, agentes de saúde e guardiões da floresta das aldeias Tiracambu, Awa, Juriti e Cocal, além de representantes das associações indígenas Arari e Kakỹ, servidores da Funai e consultores.

O TREM DA VALE 

Os Awa Guajá – como são conhecidos – foram contatados nos últimos tempos, por isso são classificados pelo Estado brasileiro como povo de recente contato”. Os primeiros, que ocorreram na década de 1970, deram origem à aldeia Guajá. 

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Na década seguinte, outros da região do rio Pindaré se fixaram na Terra Indígena Caru com os Guajajara. Já os contatos posteriores, dos anos 1990 em diante, levou-os a se radicarem na Terra Indígena Awa, demarcada apenas para eles.  

Cerca de 72,5% dos Awa, reunidos em 1976 na aldeia Guajá, morreram nos cinco anos subsequentes de gripe, malária e leishmaniose, diminuindo drasticamente a população. 

O IBGE ainda não processou as novas informações sobre etnias, mas já existem dados gerais do Censo de 2022, que podem ser comparados com os de 2010. No Maranhão vivem hoje 57.166 pessoas indígenas, um pouco mais de 600 são Awa.

No entanto, a existência deles foi oficial e conscientemente ignorada durante a construção da Estrada de Ferro Carajás no período da -empresarial. 

Na época de sua inauguração, em 1985, o ministro do planejamento do governo Sarney, João Sayad, que seria depois premiado com a vice-presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento, declarou em Washington na maior cara-de-pau:

Ao menos que eu esteja enganado, não existem índios na região de Grande Carajás.

Estava enganado. Ou enganando? Ou apostava no extermínio dos Awa? O certo é que a ferrovia rasgou ao meio o território Awa, localizado a Leste do Pará e a Oeste do Maranhão, entre os rios Gurupi, Pindaré e Turiaçu. 

Locomotivas monstruosas com 330 vagões repletos de minério, combustível e grãos passaram a trafegar de Carajás até São Luís em um ir-e-vir incessante, dia e noite, com estrondos infernais que abalam terras indígenas, reservas florestais e comunidades .

A “GREVE DOS ÍNDIOS” 

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O “barulho do terror”, que faz trepidar a floresta e o fundo dos rios, afugenta a caça, principal fonte alimentícia dos Awa. 

A situação se agravou ainda mais com as cercas de arame farpado dos tapi´ajara (os donos do boi) e com as invasões de madeireiros, fazendeiros, caçadores, jagunços, pistoleiros e migrantes que criaram novos núcleos urbanos na região. Sem o acesso à integralidade de seu território e com os padrões de ocupação desmantelados, a organização social awa sofreu forte impacto.

Parte do território Awa, considerado terras da União, foi concedida por tempo indeterminado à empresa Vale S.A. por Resolução do Senado de 1986, mas esse direito de uso obrigava a empresa a amparar “as populações indígenas existentes nas proximidades da área concedida e na forma do que dispuser convênio com a FUNAI”. Os deveres da empresa incluíam ações de compensação e mitigação pelos impactos socioambientais. Como é que os Awa reagiram? 

Para exigir o cumprimento da Resolução, os Awa, em três ocasiões diferentes, tiveram de bloquear a ferrovia durante sua duplicação, com mobilizações conhecidas como “greves dos índios”, a primeira delas ao lado dos combativos Guajajara, as outras duas por conta própria. 

Dezenas de policiais federais escoltaram um oficial de justiça com uma intimação aos líderes denunciados pela Vale como responsáveis pelo bloqueio, cujo impacto financeiro para a empresa implicou atraso no carregamento dos navios no Porto da Madeira.

A aprovação de um Plano de Proteção Territorial para os Awa determinou a aquisição de equipamentos destinados à Coordenação Geral de e de Recente Contato, apoio ao programa de vigilância e fiscalização nas Terras Indígenas Caru, Awa e Alto Turiaçu, além de realização de obras nos acessos entre as aldeias e de outras ações de resguardo do patrimônio material e imaterial. 

A negociação aberta entre indígenas, Funai, Ministério Público Federal e a Vale previa em uma das cláusulas do “Termo de Cooperação e Compromisso” adicional que, se houvesse qualquer ação que impedisse as atividades na ferrovia e a circulação dos trens, o acordo seria cancelado.

Agora, os Awa reivindicam uma escola em awa ‘ĩhalíngua da família tupi-guarani.  Querem, de um lado, construções físicas capazes de guardar livros, cadernos e até computadores ao abrigo da chuva, dos cupins, do mofo e das visitas dos animais de criação. De outro, uma escola que seja conceitualmente uma “fábrica de fazer Awa”.

UMA LUZ NA ESCURIDÃO 

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O modelo de escola foi discutido em Terra Awa, na Base de Proteção Etnoambiental Norte, em oficina realizada de 16 a 19 de maio, coordenada pela educadora Neide Siqueira, da Coordenação de Políticas para de Recente Contato (COPIRC-Funai), com assessoria da linguista Flávia Berto, professora dos Awa (PNUD) e do antropólogo Guilherme Cardoso (Funai) – ambos há dez anos atuando na área, além da contribuição presencial deste locutor que vos fala, que se considera um “recém-contatado” pelos Awa.  

Conheci os Awa em abril de 2023 no seminário sobre “A Escola e os instrumentos e estratégias de valorização da diversidade linguística”, realizado no Centro de Vale (CCVM), em São Luís do Maranhão, do qual participaram indígenas de outras etnias. 

Foi quando os professores Tatuxa´a e Amiria traduziram para a língua awa o art. 231 da Constituição do de 1988, que reconhece os direitos originários sobre as terras indígenas, a organização social, as línguas e os saberes tradicionais.

Agora, depois das exposições e debates, a oficina produziu documento com balanço crítico de experiências escolares anterior dos Awa, realizadas tanto pela Secretaria Estadual de (Seduc) quanto pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), mostrando as dificuldades em promover e garantir o acesso desses povos a uma educação escolar diferenciada, intercultural, bilingue e comunitária, por eles reivindicada.

A escola da aldeia Awa contava, em 2019, com 63 alunos e seis professores, três dos quais não indígenas. E a da aldeia Tiracambu, com 27 alunos e três professores, um não indígena. Quatro anos antes, dez Awa adultos que queriam se alfabetizar buscaram escolas não indígenas em povoados vizinhos. Caminhavam até Auzilândia, distante 10 km, por estrada lamacenta, para ter aulas em um curso noturno de Jovens e Adultos.

Essa fome de aprender está documentada em fotos de Guilherme Cardoso em outra situação, com aulas ministradas em um galpão, usando lanternas na falta de energia elétrica. Hoje, os Awa mantêm comunicação por Whatsapp entre as aldeias, assim como com o movimento indígena e com diversas instituições externas.

AS FALAS DOS AWA 

Os Awa presentes na oficina entendem que a escola e a escrita na língua materna são conquistas necessárias essenciais, mas ressaltaram a importância da aquisição do português como segunda língua, o que permite a relação com as diferentes instâncias do poder político e com o próprio movimento indígena.  Os discursos foram todos nessa direção.

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O professor Tatuxa'a, da Terra Indígena Caru, quer os conhecimentos tradicionais dentro da escola, capazes de contribuir para mapear nosso território, conhecer os seres vivos – plantas animais, rios, caças, peixes e ensinar a cuidar deles. Além disso, destacou a necessidade de “conhecer o mundo dos karai (não indígenas) e de aprender o português para falar com presidente, ministro, deputado, conversar com esse pessoal, defender nossos direitos e não deixar que invadam nosso território”.

Itaxĩa, da Aldeia Awa, presidente da Associação Arari e ex-agente de saúde, informou que seu pai lhe ensinou a medicina awa e as propriedades dos chás e remédios do mato, que o pai canta para o filho quando ele está doente, que aprendeu português com os Guajajara e assim pôde acompanhar parentes doentes ao hospital e traduzir o que eles falavam para o médico.

Muitos Awa são monolíngues e precisam de tradutor ao português para intermediar consulta médica. Foi o que fez Amiria, um dos primeiros professores contratados, quando sua esposa Kiripia sofreu acidente. Ele endossou as falas de seus colegas sobre escola bilingue: “A gente precisa saber por que esses fazendeiros mataram nosso povo. Faz tempo, né? Por isso que a gente está estudando, para saber quem mandava pistoleiro matar a gente”.

Outra professora, Akaria, informou que o ensino médio na aldeia Cocal já foi aprovado pela SEDUC, mas as instalações são precárias, a merenda escolar só dura dois dias, não tem como conservá-la nas aldeias. Ela definiu assim a profissão:

Ser professor é gostar muito do que faz e ter muita paciência.

O JABUTI E O VEADO 

Diante dessas falas, a minha, que foi sendo traduzida para a língua Awa, abordou o lugar das línguas na escola, o bilinguismo e os registros orais e escritos.

Contei as aventuras do jabuti recolhidas em Nheengatu pelos tupinólogos, para quem cada história contada traz um ensinamento, como na história do Gato e do Rato bilingues encenadas em teatro de bonecos pelos Guarani, com definições dos vários tipos de bilinguismo.

No dia seguinte, os Awa rememoraram em sua língua os principais tópicos do dia anterior. O professor Hajkaramykỹa, pai de Amiria, contou a antiga história do canto do dono de veado, que faz algumas recomendações sobre restrições alimentares, assim como a história de Maira, o herói cultural da mitologia Awa.

Compartilhei com os Awa outras experiências de formação de magistério indígena, uma delas no Curso Kuaa M´Boe da Região Sul e Sudeste. Lá, os Guarani desenharam a escola onde estudaram. O desenho feito por Vanderson Lourenço exibido na oficina Awa era uma “fábrica de fazer brancos”, onde as crianças entram indígenas, falando guarani, mas saem juruá, karaimonolingues em português, com a desvalorização de seus conhecimentos e epistemologias.

Os Awa vão desenhar agora outro modelo, o da “fábrica de fazer Awa”, representada por “um contraponto ao modelo oficial de escolas indígenas municipais e estaduais”. 

Querem ter autonomia para participar no planejamento, execução e avaliação das ações educativas direcionadas a eles, na elaboração do projeto político pedagógico, na escolha do currículo, na produção do material didático, no calendário e na merenda escolar, na formação e escolha de professores indígenas, enfim, na gestão da escola.

FÁBRICA DE FAZER AWA 

Eles conseguirão construir essa “fábrica de fazer Awa”? Estão se organizando para isso e esperam encontrar seus passos na floresta, cujas trilhas foram destruídas pelos trilhos da ferrovia. Não foi o que aconteceu com o protagonista do romance Los Pasos Perdidos de Alejo Carpentier, um músico que vivia em Nova Iorque e visita em suas férias uma aldeia na venezuelana.

Encantado com a convivência naquele mundo idílico, o músico decide que vai viver lá o resto da vida. Começa a compor uma cantata no meio da floresta, mas faltou papel e lápis para concluir a escrita de suas partituras. Ele volta ao “inferno civilizado” apenas para buscá-los e arrumar suas coisas. Mas quando tenta regressar à aldeia não encontra mais o caminho de volta. Uma das leituras possíveis da alegoria é discutir se é possível e desejável que as sociedades oralizadas voltem atrás no processo de letramento.

A escola é um bicho que, vindo de fora, entrou nas aldeias, mas os Awa querem que ela tenha a cara deles: cheiro do breu branco, adornos de colares, braçadeiras de semente de ubim, penas de tucano e plumas de urubu-rei, que entoem os cantos rituais, que evoque os Karawara e os espíritos ancestrais, que ouça, transcreva e faça circular as narrativas míticas, que valorize a pedagogia da oralidade, que faça dialogar os saberes tradicionais em língua awa com as ciências em português, porque o Awa de hoje já não pode mais viver sem as duas.

A instituição escolar, ao entrar em território Awa, se depara com um caso talvez singular de uma população indígena em que não existe um único monolíngue em português. Todos os Awa – TODOS – falam a língua awa ‘ĩha (língua de gente) e lutam para que isso não mude.  

A aprendizagem de uma segunda língua os tornará bilingues, como um brasileiro que aprende inglês, não para substituir uma pela outra, mas cada uma com funções e usos diferentes na perspectiva de Mia Couto:

Ao lado de uma língua que nos faça ser mundo, deve coexistir uma outra que nos faça sair do mundo.  De um lado, um idioma que nos crie raiz e lugar. Do outro, um idioma que nos faça ser asa e viagem.

Ao final do meu discurso traduzido ao awa, perguntei se haviam entendido, usando palavra que acabara de aprender:

Pinu?

Só quem não respondeu foi Caramelo, o cachorro da Base de Proteção Etnoambiental ali presente que, desinteressado com tantas histórias resumidas aqui nesse textão, dormiu profundamente o sono dos justos durante toda a aula e não deu um pio, digo, um latido. 

Depois de tanta contação de histórias, saí da oficina com um apelido novo que me deixou orgulhoso: Tamӯ i'xa'a tea (Vovô verdadeiro).

Jose Ribamar BessaJosé Bessa Freire Escritor. Indigenista. Conselheiro da . Excerto da crônica 1.746, aqui editada por limitação de espaço, publicada em seu blog Taquiprati

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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