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AYAHUASCA: PATRIMÔNIO DO SAGRADO INDÍGENA

AYAHUASCA: PATRIMÔNIO DO SAGRADO INDÍGENA

Ayahuasca: Patrimônio do Sagrado Indígena

Eu sempre detestei quando, após aprontar alguma coisa ou dar com os burros n´água , ouvir de alguém: “eu avisei”.

Por Jairo Lima

Por essa  razão, para não cair no fosso sem fundo da prepotência, mudarei um pouco a sentença: “não foi por falta de alerta”.

E assim,  aqui no Aquiry, neste 21 de outubro,  dia dedicado à Deusa Frigg (sexta-feira) terminou a segunda edição da Conferência Mundial da Ayahuasca.  No Facebook,  vi muitos conhecidos posando para fotos. Todos sorridentes, usando o # (hastag) para as mais diversas situações.

Mas é preciso citar que as fotos sorridentes e emanando um clima de festividade foram um monopólio, pelo menos na timeline dos meus amigos virtuais, dos participantes não-índios. Dos amigos também vi muitas postagens, com fotos, apresentando os diferentes momentos e dinâmicas do evento. Mas o semblante e a energia que emanavam destas imagens eram bem diferentes.

Mesmo não participando in loco no evento, dele não pude escapar, pois muitas notícias e mensagens recebi quanto a atenção e o espaço ocupado pelos indígenas que foram participar. Não posso dizer que foi como eu pensei que seria, porque foi bem pior.

Mais uma vez, os margearam o evento, como astros sem luz ou satélites que orbitam em torno dos planetas. Claro que tinham “seu espaço”. Infelizmente este espaço não foi digno suficiente para comportar o que, para estes povos, significa discutir ou “conferir” o assunto Ayahuasca.

Não vou quedar-me na lenga-lenga de citar os diversos problemas enfrentados pelos participantes indígenas, da à maneira como foram tratados. O que posso citar com propriedade e com a cara limpa é que toda esta rave, travestida de evento sério tornou-se uma mostra caricata de como o Brasil “ibérico” funciona e como esse Brasil trata os indígenas.

De principais estrelas e detentores do patrimônio desta bebida sagrada, os povos indígenas  passaram ao largo das decisões que esta Conferência tomou; das discussões que esta Conferência tratou; dos resultados e benefícios que esta Conferência venha a gerar.

Gente! Desculpa a franqueza, mas esse evento não passou de uma bela massagem de egos vítreos, que só contribuiu para o fortalecimento de uma casta indigna de “detentores” dos caminhos e proteção dessa impressionante dádiva da .

Calma aí, cara pálida!

Este patrimônio tem donos, e cabe que seja reconhecido este patrimônio a estes donos. Preciso dizer a quem pertence o conhecimento sagrado da  Ayahuasca?

Respeito todas as doutrinas daimísticas ou baseadas na ingestão dessa bebida, mas o que os detentores dessas doutrinas  e os doutores pesquisadores não entenderam ou, se entenderam,  não aceitam discutir é que esse patrimônio não é da humanidade, não  é das igrejas,  não é da academia.

Esse patrimônio é indígena. Exclusivamente indígena.

Gostei muito das palavras do líder indígena Iberê e,  assim como ele, não me conformo e junto com as demais lideranças, continuarei nessa toada, batendo nessa tecla e não aceitando uma decisão imposta por aqueles que não são donos das doutrinas da Ayahuasca,  nem de seus  mistérios, nem daqueles que, em verdade, não são donos do conhecimento sobre essa bebida sagrada.

Igrejas, centros e academias são usufrutuários de um conhecimento que não lhes pertence. As igrejas e demais centros, com seus padrinhos, madrinhas e mestres detêm somente os direitos sobre o que construíram em relação à sua própria doutrina, não sobre o conhecimento milenar dos povos indígenas.

Os acadêmicos detêm parte dos direitos sobre o conhecimento científico produzido em torno dessas doutrinas, ou em torno dos registros que conseguem fazer sobre as tradições em torno desta bebida, não sobre o conhecimento milenar dos povos indígenas.

Infelizmente, no alto de sua prepotência, muitos yurá, como em de defesa própria, de sua crença, vão bradar que essa bebida, por ser algo tão místico e benéfico para o ser humano, pertence a todos, sem distinção.

Discordo totalmente, e vejo que defender isso é endossar uma posição colonialista de quem se apodera de tudo, não vendo limites que não sejam os impostos por si mesmo e por seus próprios interesses, em geral são de acordo com o que acham, e não de acordo com o que “os outros” achem.

As lideranças indígenas que se fizeram presentes no evento bateram muito na mesma tecla, quanto aos direitos e reconhecimento desse conhecimento originário indígena. Como resultado dos debates de indígenas e indigenistas na Conferência, foi produzida uma carta aberta sobre o assunto, com os pontos que creem serem fundamentais para a sua luta.

Reproduzo, como apêndice desta crônica, o conteúdo da mesma. Antes, porém, não poderia deixar de registrar que, para minha alegria, a minha voz não foi a única a destoar da ópera ensaiada e inflexível, parte de uma peça que já veio montada e ensaiada.

Recebi muitas mensagens. Algumas privadas (no tal in-box) e outras públicas  que somaram-se à minha dissonância, tornando-a  uma sonância de , clareza e alertando para mais essa investida contra a indígena.

Minhas palavras hoje são ríspidas, minha posição inflexível. Assim como meus queridos txais,  a quem considero e por quem sou considerado irão resistir a isso, eu também seguirei nesse caminho. Não reconheço qualquer tentativa de enquadrar algo tão intimamente ligado à cultura indígena em todos os seus âmbitos, em um quadradinho onde se lê que isso pertence a todos.

O mistério da Ayahuasca brotou desta , em forma de plantas desta região, e foi entregue aos seus herdeiros naturais, os filhos originários destas terras da .

Nós, yurá, com nossas caixinhas de superstições e excesso de misticismos nada mais somos que agregados  nessa família. Claro que agregados queridos, mas não donos dessa  herança.

Enquanto isso não for admitido por todos que se acham no direito de retirar mais esse tesouro dos povos indígenas, nenhuma evolução será possível para esse nosso povo ibérico, desgarrado de uma cultura própria e resultado de uma miscelânea de crenças que, em mitos aspectos, não contribuem em nada para a evolução espiritual.

Acusaram os txai de se venderem, ao realizar rituais por dinheiro. Fiquei indignado. Já escrevi em outro lugar que, para mim, a mais horrenda intemperança do ser humano é a moral hipócrita. Só o que digo sobre isso, até para não abrir demais um debate inócuo (que já dura séculos), é que, barganhar com o sagrado não é uma característica indígena.

Como eu suspeitava, esta festa toda em nada serviu para o engrandecimento desta cultura ayahuasqueira, rica, multicolor e multiétnica. Serviu somente para afagar egos e para consolidar um movimento que investirá sobre uma das poucas resistências que ainda se mantém em pé neste indígena: seu espírito.

E o caminho para isso já começou a ser traçado, basta refletir um pouquinho sobre a simbologia de tudo o que ocorreu nesta II Conferência Mundial da Ayahuasca.

ANOTE AÍ:

[1]  A primeira edição da Conferência Mundial da ayahuasca ocorreu em 2014. Um importante resultado da AYA/2014 foi a criação do Fundo de Defesa Legal da Ayahuasca – ADF.

Jairo Lima, autor desta matéria, é indigenista, radicado em Cruzeiro do Sul, Acre. Além de parceiro da Xapuri, Jairo publica seus escritos em seu próprio blog: cronicas indigenistas http://cronicasindigenistas.blogspot.com.br/ 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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