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Aziz Ab’Saber: O mascate das boas causas

Aziz Ab’Saber: O mascate das boas causas

Seu pai era mascate libanês no interiorzão de São Paulo, no início do século passado. Sua mãe era filha da roça na pequenina São Luis de Paraitinga, no vale do Paraíba do Sul, entre Taubaté e Ubatuba, no litoral norte paulista. Ali nasceu, em 24 de outubro de 1924, o brasileiríssimo Aziz Nacib Ab’Saber, um mascate de boas causas que partiu há quatro anos, nos deixando boa carga de saber, tudo fiado…

Por Jaime Sautchuk 

Aos 17 anos, ele ingressou na Universidade de São Paulo (USP), nos cursos de Geografia e História. Virou geógrafo, pra efeito de colocar uma profissão em documentos. Foi, porém, filósofo, historiador, ecólogo, arqueólogo, antropólogo, um monte de coisas, sempre com a marca de humanista, de ferrenho defensor de uma sociedade mais justa. Em seu livro “O Que é Ser Geógrafo”, por exemplo, ele ensina como é ser muito mais que geógrafo.

Além da ciência, ele abraçava as causas sociais, ambientais e políticas. Brigou com a ditadura militar e sempre esteve nos palcos e nas ruas em defesa da Anistia, das Diretas-já, mas não parou por aí. Foi presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), da qual hoje é o presidente de honra.

Esteve lado a lado com Luiz Inácio Lula da Silva antes e depois deste virar presidente da República. Mas virou crítico de seus governos, por considerá-los muito frouxos nas questões ambientais. Até a semana antes de morrer, ainda repetia que as políticas oficiais no campo do meio ambiente, no Brasil, seguem o ditame da ganância dos poderosos, sem uma visão de futuro.

Nessa linha, sempre criticou o projeto de transposição do rio São Francisco e outras obras que, em sua visão, irão beneficiar grandes interesses, sem atender o sertanejo nordestino. Tampouco se cansou de apontar defeitos, que considerava graves, no Código Florestal aprovado pelo Congresso.

Ab’Saber apontava como exagerada e nociva a aceitação de propostas da bancada ruralista no Congresso em relação a esse tema. Mas sua crítica mais severa era em relação ao fato de que o novo Código ignora solenemente as características de dois dos biomas da flora brasileira: a Caatinga e o Cerrado.

Quanto ao Cerrado, ele era um dos cientistas brasileiros que comprovaram a presença desse bioma na maior parte do território nacional, do Rio de Janeiro e São Paulo à Amazônia. E isso até  bem pouco tempo.

Em São Paulo, por exemplo, onde esse bioma era chamado genericamente de “campos gerais”, nasceram cidades com os nomes de São José dos Campos, Santo André dos Campos Belos, Campinas e por aí vai.

Na Amazônia, há perto de 60 milhões de anos, os rios da região corriam no sentido oeste, quando houve a separação dos continentes e a formação dos Andes. Tudo ali era Cerrado.

Só há 20 mil anos (ontem, portanto) é que houve um movimento na crosta da Terra que atingiu a foz do rio Amazonas, fazendo com que as águas de toda sua bacia fossem espraiadas, gerando uma vegetação mais densa, que é a floresta.

Na própria Amazônia brasileira, o Cerrado é presente ainda hoje nos estados do Amapá, Roraima, Rondônia e mesmo Amazonas e Acre, que Ab’Saber conhecia bem. Na fronteira Norte, transpondo o Sistema Parima de Serra, em Roraima, adentramos a chamada savana venezuelana, que nada mais é do que Cerrado, numa extensa área, até a foz do rio Orinoco.

Mas isso, na vasta obra de Ab’Saber, é quase um detalhe. Aos 87 anos, naquela quinta-feira de março de 2012, véspera de sua morte, ele foi pessoalmente à USP entregar suas obras completas gravadas em CDs. Praticamente tudo já foi publicado em duas dúzias de livros e milhares de artigos, coletâneas, depoimentos e por aí afora. Mas agora ficou tudo consolidado.

Nela, ele trata da ocupação do Brasil, do índio ao colonizador, até os nossos dias. E das questões climáticas, mesmo no plano global, prevendo efeitos de possíveis mudanças que venham a ocorrer ao redor do Planeta e até fora dele. Por isso, seu trabalho é reconhecido e premiado no mundo inteiro.

Como pessoa, entretanto, sempre foi um homem pé na terra, simples, muito sensível às questões do cotidiano, muito paciente com todos que o cercavam nos mais diversos ambientes em que vivia. Andar num carro de governador ou num velho e empoeirado jipão, pra ele, não fazia diferença alguma. Falar a um grupo de alunos no corredor da escola ou em um grande comício em praça pública também. Sempre com um humor fino, perspicaz.

Quando ingressou na universidade, virou jardineiro do campus para poder estudar. E, enquanto galgava as escalas mais altas na formação acadêmica, em meio a uma vastidão de estudos e pesquisas, encontrava tempo pra lecionar em escolas públicas do ensino fundamental.

Ele viveu repassando ideias e informações, sempre ansioso por aprender mais e mais, como costumava dizer. Era um baú de conhecimento. E assim tornou-se figura admirada e muito querida por todos que o conheciam. Como todo bom mascate.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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