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BENEDITA TATU

BENEDITA TATU

Benedita Tatu

Bem aos nossos olhos a miséria humana e a maldade dos homens …  Por e para Benedita Tatu e todas as mulheres marginalizadas em nossa patriarcal deixo meu sonoro: SALVE!

Por Iêda Vilas-Bôas

Trindade, , do Divino Pai Eterno e de tudo quanto é Santo que há por perto, sempre teve essa sina e tendência de rezadeira, de romaria, de atrair crédulos. Lugar dos cumpridores de promessa, dos agradecidos, dos sacrificados.

Lugar onde homens de postura e compostura com a cara mais deslavada ficam pensando na demora da missa. Vontade de acabar e “ir tirar um dedo de com o compadre”. A velha e mesma esfarrapada desculpa de sempre.

Na época de 1926, ali habitavam também senhoras zelosas e porfiosas, exímias mães de família. Ah, que ninguém soubesse dos olhares compridos que se esticavam aos moços da praça da currutela, nem quantas vezes haviam escorregado na calçada (deixado a carne falar mais alto que os bons preceitos e contra a ética corrente).

E havia na antiga Santíssima Trindade do Barro Preto de Goyaz o lugar preferido dos bons e compenetrados maridos, ciosos de seus direitos e cumpridores de seus deveres. Um lugar de prazeres, um território sacralizado pela bruteza dos machos que se aproveitavam das moçoilas que haviam trocado a virgindade por promessas ao vento. Também das pobrezinhas que não tinham condições econômicas, familiares ou qualquer estrutura social, mas… Se lhes sobraram algum bocadinho de beleza ou qualquer atrativo, era ali o seu morar.

A cidade também possuía a zona do baixo meretrício, muiezada, boca do , a ZBM, puteiro, fuá, fubá, mandioca, gato preto, mudando só o apelido, mas igual na mesma exploração e abuso do corpo alheio. Ali, na antiga Trindade se chamava Rua da Alegria, ficava logo após onde hoje se instalou o mercado municipal, local que já fora um antigo cemitério e depois do cemitério fora também um Asilo cuidado pelos Vicentinos.

Tal qual o nome que carregava a Rua da Alegria, prezava por manter o local com música alta, muita bebida, os bêbados rotineiros, mulheres com diminutas roupas, muita maquiagem e muitas noites e dias no ofício. Compunha o figurino mendigos, inválidos, malandros, jogadores de baralho, de búzio e de roleta; ciganos e as mulheres-damas.

Não sei quem era mais concorrida, se a Romaria ao Divino Pai Eterno ou a dita Rua da Alegria. E a rua fazia diferença no orçamento da quase cidade. O fluxo de precisados em resolver suas urgências era grande, movimento dos apurados da cidade, caboclos e sertanejos, estes últimos eram os primeiros devido à forçada abstinência sexual a que eram submetidos nas brenhas do sertão. Assim sempre foi; assim sempre será.

Moça virgem, mulher casada, criança e “gente honesta” ali não passava, embora fosse muita a curiosidade e muitos os fuxicos. Porém, uma barreira existia, um muro de Berlim ou Mexicano dividia a sociedade. Do lado de lá as sofridas, vilipendiadas e odiadas Mulheres da Rua. Bastasse qualquer deslize, uma bebedeira, um disse me disse qualquer, e a polícia metia o cassetete sem dó e nem piedade.

Se fossem presas, rapavam-lhes a cabeça e as colocavam para capinar os fiapos de mato que teimavam em sair das trinchas das pedras. Na então capital do estado, na Cidade de Goyás – Goiás Velho, a vergonha era ainda maior, pois tinham de se levantar antes do nascer do sol e ali continuar até o repouso dele, a carpir o largo do Chafariz de Cauda. E a cidade acordava, via, comentava, cuspia, xingava… eram assim tratadas essas cidadãs.

Paradoxalmente, nos tempos de hoje continuam desmoralizadas, esquecidas, desassistidas, sujeitas às truculências. Já não são mulheres da , chamam-se Jéssycas, Brendas, Brunos e outros muitos garotos e garotas de programa, circulando em anúncios e poses pela rede. Passeiam pela internet a prostituição virtual, a infantil, a pedofilia e toda espécie de tara. A milenar profissão continua e não teme recessão.

Pois bem, a Rua da Alegria da Trindade do século XIX, lá pelo final recebia o nome de Beco da Perdição, era ali o final de todas elas, um lugar cheirando a tristeza e morte (fazia parelha com o muro do antigo cemitério). Morada preferida das doenças venéreas, dos sorrisos sem dente, da magreza esquelética, do hálito fétido, das tragédias, da miséria, da sífilis, da exclusão. Ser prostituta nunca foi e nem era uma fácil função.

A cidadezinha possuía suas prostitutas famosas: Sinhaninha Bico Roxo, Luzia, Hozana, Elza, Cândida, “Santinha”, Nadir, Zanita, Filhinha, Ana do Bobo, Maria Pepé, Bastiana Linguiça. Entretanto, naquele mesmo tempo e lugar, uma mulher entre tantas outras se destacava de uma maneira ou outra. Era a famosa Benedita Tatu.

Essa mulher foi jovem, bela e solicitada. Nasceu em 1854 em Corumbá de Goiás, foi moça , casou-se virgem e prendada, mas foi abandonada pelo marido. Aos 23 anos foi pedir ao Pai Eterno que lhe endireitasse o caminho, chamou a atenção dos homens do lugar, recebeu propostas. De início foi relutante, romeira de véu preto na cabeça, mas com os “miliréis” acabando, entrou para a “vida” numa romaria, o ano era 1887, e permaneceu na vila. Foi ficando, agradando, depois desagradando. Sua atuação era popular e não existiu um homem, rapazote ou velho que fosse que não tenha provado de suas delícias.

Benedita Tatu foi envelhecendo e perdendo a fama. Precisava ceder lugar para as novidades que chegavam com ganância de arranjar um amante rico. Poucos a procuravam. Entrou em decadência. Foi, muitas vezes, vítima de agressões, surras e espancamentos. Num desses vieses encontrou um bruto que lhe quebrou a coluna vertebral numa surra. Benedita Tatu ficou torta, caminhando dobrada, caindo fácil. Saiu da famosa casa de Adelina expulsa. Uma vez mais abandonada passou a mendigar pelas ruas.

Benedita Tatu se apresenta aos nossos olhos como da miséria humana e da maldade dos homens daqueles tempos antigos. Por andar assim emborcada, curvada sobre si mesma, recebeu o apelido de tatu. Tendo a rua por morada e o céu por teto não fazia higiene pessoal e suas unhas ficaram muito grandes. Mais um reforço para que a alcunha pegasse: Benedita Tatu.

Passou a catar lixo para comer, uma trouxa cheinha de inutilidades servia de travesseiro, a poeira era seu lençol e o frio seu cobertor. Vivia enxotada, enxovalhada, doente, carcomida pela lepra era sempre escorraçada, servia de alívio para todas as raivas da cidade que lhe proibiu que se arrastasse no novo “Jardim Público” recém-construído. Benedita Tatu parecia um fantasma maltrapilho, simbolizava a escória e os desafetos humanos.

Um dia quente de outubro, era o dia 27 do ano de 1929, no sol escaldante do calor goiano, numa tarde suarenta, Benedita Tatu foi morta a pauladas, em plena rua. Benedita tinha 75 anos de idade e o corpo coberto de feridas, cicatrizes e sujeira. Com muita má vontade arrumaram-lhe uma cova rasa, onde jogaram seu frágil caixão, em vala comum do novo cemitério. Na certidão de óbito foi assinalada a causa mortis como “violenta”.

Com o seu assassino nenhuma autoridade se preocupou, saiu impune. Pela cidade um pensamento comum: ela representava o “nada” e o assassino fez-lhe grande favor de lhe abreviar o tempo de sofrimento. Coitadinha da Benedita Tatu! Pensando bem, foi melhor assim. Fosse hoje, certamente Benedita seria estatística e alvo fácil: excludente de ilicitude. Motivo? Enfeava a terra das Romarias e da santa devoção.

Para dar voz às mulheres como Benedita que foram e são possuídas, usadas, sugadas e descartadas, estudantes de pós-graduação e apoio aos direitos das mulheres lhe prestam homenagem dando o ao grupo de pesquisa pela UFG (Universidade Federal de Goiás).

Por e para Benedita Tatu e todas as mulheres marginalizadas em nossa sociedade patriarcal deixo meu sonoro: SALVE!

Iêda Vilas-Bôas (in memoriam) – Escritora. Presidenta da Academia de Letras do Nordeste Goiano – ALANEG. Conselheira da até o seu encantamento, por dores da alma, em 8 de abril de 2022. 


 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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