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Brasil deixa de arrecadar R$ 57 bilhões anuais com isenção fiscal da soja

Brasil deixa de arrecadar R$ 57 bilhões anuais com isenção fiscal da soja

O Cerrado é um grande alvo da expansão da commodity, cuja área plantada cresceu 30 milhões de ha nas últimas três décadas.

Por Aldem Bourscheit/O Eco

Levantamento inédito revela perdas fiscais bilionárias geradas por parte da cadeia produtiva da soja no Brasil. Para entidades civis, tais benesses tributárias devem ser convertidas em investimentos sustentáveis, no combate à fome e para reduzir a inflação dos alimentos.

Só em 2022, a renúncia fiscal da produção nacional de soja somou ao menos R$ 57 bilhões. O desconto é quase o dobro do concedido à cesta básica, de estimados R$ 30 bilhões. Em Mato Grosso, maior produtor da oleaginosa, a desoneração somou R$ 8 bilhões no ano passado, ou 14% da taxa nacional.

Outros estados onde predomina uma economia agropecuária têm níveis de desoneração similares aos do representante do Centro-Oeste, resultando em perdas fiscais estaduais próximas dos R$ 25 bilhões a cada ano. Mas o rombo em todo o país pode ser bem maior.

Transporte e distribuição não pesaram na análise, focada nas isenções do comércio do grão, da compra de sementes, fertilizantes e agrotóxicos. Também não incidiu a Lei Kandir, que livra do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) as exportações de itens básicos.

“Agregando esses itens, os números ultrapassam facilmente os R$ 80 bilhões anuais em renúncia fiscal”, assegura o cientista político Marcos Woortmann, coordenador de Políticas Socioambientais do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), um dos responsáveis pelo estudo. 

Também assinam o balanço as ongs ACT Promoção da Saúde, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), Observatório das Economias da Sociobiodiversidade (ÓSocioBio) e Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN).

A renúncia fiscal ocorre principalmente porque a soja nada paga aos programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PIS/Pasep), à Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e ao Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI).

Os dois primeiros são fundos federais criados na Constituição de 1988 e abastecidos por contribuições baseadas no faturamento de empresas. Eles financiam a seguridade social e o desenvolvimento socioeconômico. Já o IPI incide na saída dos produtos dos estabelecimentos contribuintes.

“Boa parte do arrecadado em ICMS é repartida aos municípios e, do IPI, aos estados e municípios. Logo, a desoneração da soja reduz receitas para políticas públicas nas três esferas de governo”, lembra Luciane Moessa, diretora-executiva e técnica da ong Soluções Inclusivas Sustentáveis (SIS). 

Uma das linhas de atuação da entidade é difundir no Brasil a chamada taxonomia verde, um conjunto de parâmetros que classifica os riscos socioambientais e climáticos de investimentos financeiros e de atividades econômicas. 

Baseada em informações de órgãos federais, a análise revela igualmente que 52% dos créditos rurais que custearam lavouras no país no ano passado beneficiaram a soja. Outros 140 cultivos, como feijão, arroz, mandioca, frutas e verduras, receberam 28% dos financiamentos.

Para as entidades que assinam o estudo, esse volume anual de créditos é “insignificante e insuficiente” para ampliar a produção de alimentos diretos dos brasileiros e para conter a alta de seus preços aos consumidores finais, registrada desde 2007.

“A expansão da soja aumenta o preço das terras, dificultando o acesso à mesma para pequenos produtores. Os incentivos à produção e exportação da soja atraem agricultores, que deixam de produzir alimentos básicos, o que contribui à inflação de alimentos”, destaca o trabalho.

O uso crescente de agrotóxicos e de sementes geneticamente modificadas é outra marca da sojicultura. A proporção de fazendas que usam agrotóxicos subiu 22,9% em 11 anos, aponta o Atlas do Espaço Rural. O aumento ocorreu em todo o país, mas especialmente no Centro-Oeste.

Uma avaliação recente mostrou que a água usada por moradores de 210 municípios brasileiros, incluindo as capitais São Paulo (SP) e Fortaleza (CE), está contaminada por 27 tipos de agrotóxicos. Os percentuais isolados de cada veneno estão dentro do limite aceito pelo Ministério da Saúde.

Discrepâncias também ocorrem na orientação aos produtores. O Censo Agropecuário de 2017 mostra que 76% dos sojeiros receberam assistência técnica, enquanto apenas 14% dos produtores de feijão e 17% dos produtores de mandioca tiveram o mesmo benefício, por exemplo.

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A expansão da soja é acompanhada pelo maior uso de agrotóxicos e sementes geneticamente modificadas. Foto: Bruno Kelly / Greenpeace.

Prós e contras

As renúncias fiscais e outras políticas públicas nos últimos 50 anos fizeram do Brasil um líder global em produção e exportação de soja. O Produto Interno Bruto (PIB) da cadeia do grão somou R$ 673,7 bilhões no ano passado, ou cerca de ¼ do PIB do agronegócio nacional.

“O setor [soja] orgulha-se de ser competitivo, grande produtor e exportador mundial, de ter eficiência e capacidades de ponta, maturidade e eficiência. Será que um setor tão desenvolvido necessita de tanto apoio do Estado para manter suas posições nos mercados?”, questiona o relatório.

Atrelados aos resultados econômicos, o setor da soja acumula prejuízos à biodiversidade, à provisão de água e à saúde pública. Além disso, a agricultura e mudanças no uso da terra respondem por 2/3 das emissões nacionais de gases que ampliam a temperatura média do planeta.

Um dos caminhos para mudar este jogo é a reforma tributária, tramitando no Congresso Nacional. Para as ongs que assinam a análise sobre a soja, o Estado brasileiro já apoiou a estruturação do setor e deve agora priorizar outros investimentos com recursos públicos.

Diante desse cenário, é preciso revisar os critérios de expansão e a tributação e do agronegócio para direcioná-los a políticas públicas como assegurar alimentos seguros à população brasileira ou à economia verde – um compromisso do novo governo Lula.

“As isenções concedidas à soja e outros setores do agro reforçaram a desindustrialização do país e retiram recursos que poderiam ser investidos em infraestrutura, tecnologia e agregação de valor à mesma produção rural”, reclama Marcos Woortmann, do IDS. 

Para a ex-procuradora do Banco Central, Luciane Moessa, da SIS, questões ambientais e climáticas deveriam permear toda a reforma tributária, já que o drible fiscal de setores como o da soja encolhe o orçamento de direitos públicos básicos, como saúde, educação e transportes.

“Metade da população não tem acesso a esgoto e ainda há um grande déficit nacional em moradia, agendas que dependem de investimentos públicos. Os R$ 57 bilhões desonerados da soja fazem muita falta”, constata a doutora em Direito Público pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Procurado por ((o))eco, o Ministério da Fazenda não concedeu entrevista, apenas comentou por email “que a criação ou manutenção de qualquer regime diferenciado de tributação deve levar em conta a relação entre seu custo e o benefício gerado para a sociedade”.

Cerrado arrasado

Nas três décadas passadas, a área com soja saltou em mais de 30 milhões de ha no país. O grão é o maior responsável pelo avanço da fronteira agrícola brasileira e pode ultrapassar este ano os 40 milhões de ha cultivados. Dez por cento do Cerrado já têm lavouras da commodity, ou 20 milhões de ha.

Eles correspondem ao território do Paraná ou pouco mais que o do Uruguai. Cerca da metade (53,1%) do Cerrado ainda tem vegetação nativa, o restante foi eliminado por lavouras e pastos. Desde 1985, a área com soja no bioma cresceu quase 1.500%, mostra o MapBiomas. 

Enquanto o desmatamento cai desde janeiro na Amazônia, a devastação da savana brasileira mantém recordes mensais, sobretudo no Matopiba, polo agropecuário entre o Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Um ciclo destrutivo que é capitalizado, inclusive, pela renúncia fiscal da oleaginosa.

Ao mesmo tempo, a legislação florestal abre alas para que até oito em cada dez hectares de vegetação nativa sejam eliminados em imóveis rurais privados no Cerrado. Desmates agropecuários são autorizados em massa por estados, muitas vezes com indícios de irregularidades.

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Lavouras de soja irrigadas com pivôs centrais avançam no horizonte da savana brasileira, o Cerrado. Foto: Marizilda Cruppe / Greenpeace.

Coordenadora do Programa Cerrado e Caatinga no Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), Isabel Figueiredo avalia que a dilapidação do Cerrado ameaça o próprio agronegócio, um possível alvo de crises financeiras por efeitos ambientais e climáticos.

“Além dos grandes produtores, especialmente a agricultura familiar, uma grande responsável pelos alimentos que comemos, é vítima da degradação do bioma e não dispõe de recursos próprios e nem do apoio de fundos públicos suficientes para enfrentar esses impactos”, pontua a especialista.

A substituição da vegetação cerratense por lavouras e pastos também afeta a Amazônia, atual vítima de uma das maiores secas da história. Além da crise do clima e do severo El Niño, a estiagem é reforçada pela redução das águas que fluem do Cerrado.

A vazão dos rios do bioma já caiu 15,4% nas últimas três décadas. O desmate pode fazer essa taxa mais do que dobrar, até 2050. A conclusão do pesquisador Yuri Salmona (UnB) foi publicada em dezembro passado e avaliou a situação de 81 bacias hidrográficas no Cerrado. 

“A conexão entre a destruição do Cerrado e a seca na Amazônia tem que ser feita. Grandes bacias que nascem do bioma ajudam a manter os recursos hídricos na floresta equatorial, como as dos rios Tapajós, Xingu e Araguaia”, reforça Isabel Figueiredo.

Aldem BourscheitBiólogo e Jornalista. Fonte: O Eco. Foto: Marizilda Cruppe / Greenpeace.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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