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SOBRE O USO DA FOLHA DE COCA NAS ALDEIAS DO AQUIRY

SOBRE O USO DA FOLHA DE COCA NAS ALDEIAS DO AQUIRY

“Papos de Índio” sobre o uso da folha de coca nas aldeias do Aquiry

E o verão segue inclemente aqui pelas bandas do Juruá, nos mostrando que brincar com o meio ambiente, aumentando a temperatura global, não é uma boa ideia…

Por Jairo Lima 

Na semana que passou, enquanto lia as mensagens finais, fechando o esperado dia de Frig* fiquei horrorizado. Expressei publicamente este horror, ao deparar-me com uma postagem de um centro que se diz espírita negociando na maior cara dura a venda de ayahuasca e kambô.

Achei isso o fim da picada. Não que eu fosse assim tão ‘pollyana’ em achar que este circuito ‘ayahuasqueiro’ fosse algo tão sagrado que as pessoas respeitassem, senão no mesmo nível que os chineses com os túmulos de seus imperadores, mas, ao menos, num nível de decoro e respeito.

O que me horrorizou, além do comércio em si, foi ver isso escancarado assim, publicamente mesmo, como se estivesse vendendo banana com pé-de-moleque. Não existe justificativa para este tipo de atividade. Nenhuma. Estes negociadores do sagrado assemelham-se a traficantes. Todos eles. Em minha opinião, cabe neste balaio de sacripantas até os que produzem o chá para ‘enviar’ (metáfora muito usada para ‘vender’) às igrejas localizadas mundo afora. Isso é ridículo, criminoso, desrespeitoso.

Ao fazerem isso, transformam este vinho sagrado e puro e uma espécie de água de esgoto. Em nada este líquido sujo pelo dinheiro que o comprou poderá ajudar na evolução espiritual de alguém. Ao contrário, só trará energias ruins.

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O pior é que o Juruá está se tornando o principal ponto de produção e fornecimento de ayahuasca e demais ‘medicinas’ para esses filhos do negrume odiento do ‘mercado. Dessa odienta moda superficial e líquida do ‘movimento espiritual de butique’, onde tudo se compra, se transforma e se usa. Onde a ‘verdade’ é algo mutável, de acordo com a necessidade de se justificar um ato que, em essência, é condenável.

São as tais ‘modas’ que de tempos em tempos se transformam. Se num ciclo é todo mundo virar budista, muitos viram e aí pipocam gurus de todos os tipos, em todos os campos, ofertando seus serviços. Muda-se a moda, muda-se os gurus e xamãs respectivos.

Triste e revoltante tudo isso.

Nesta mesma semana também estive refletindo sobre um papo que tive com o cacique Biraci Brasil Nixiwaca Yawanawá, que me narrou sua recente visita à Europa, onde realizou alguns trabalhos e estendeu seu grupo de contato e amizade com pessoas muito importantes e esclarecidas e, também, seu projeto de, junto a equipe que faço parte, realizar um levantamento de todo o entorno da Terra Indígena Rio Gregório, onde se localizam as aldeias do povo Yawanawá e Noke Koi. é um projeto com duração de um ano, pois a terra é bem grande.

Neste papo também conversamos sobre algumas questões e ‘polêmicas’ envolvendo seu povo, e que, de certo modo, incide sobre muitos outros aqui da região. É um papo interessante que gera outras tantas reflexões necessárias. O papo tratou da questão recente, tornada pública pelo Tashka Yawanawá, através do Blog do Altino Machado, em que expressou sua insatisfação e posicionamento quanto ao costume (crescente) de alguns membros de sua comunidade estarem mascando folhas de coca.

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É importante citar não ser este um costume tradicional deste povo, sendo que, no Acre, somente os Ashaninka trazem consigo essa prática desde os tempos imemoriais de sua civilização.

Para Tashka, esse costume não é algo positivo para os Yawanawá, mesmo entendendo e respeitando a mística andina de seu uso. Assim, este prontificou-se em iniciar um processo de conscientização e esclarecimentos em sua comunidade, na aldeia Mutum, que, para os que não conhecem, é uma das que recebe muitos visitantes de dentro e fora do Brasil, no período de sua festa principal, o ‘Mariri Yawanawá’, e durante o ano, para as chamadas ‘vivências’.

Após a grande repercussão dessa postagem do Altino, fique particularmente curioso para saber as impressões do Bira Yawanawá sobre esse assunto, haja vista que sua comunidade, a aldeia Nova Esperança foi onde se iniciou a prática de realizar os festivais indígenas, há mais de quinze anos atrás, e que hoje se espalharam por quase todas as terras indígenas no Aquiry. Este festival é um dos mais esperados e faz parte da principal festividade dentro do circuito nacional das festas indígenas conhecidas mundo afora. E, nesse espaço de interação foi onde alguns visitantes começaram a trazer o costume de mascar coca.

Assim, quando me encontrei com o Bira, perguntei-lhe sobre o assunto, e este contou que tomou conhecimento sobre a manifestação do Tashka ainda quando se encontrava na Europa. Isso o deixou bastante pensativo e, durante um dos rituais que participou, buscou na força do Uni (ayahuasca) a iluminação sobre esse assunto.

Como resultado, logo após o ritual, reuniu-se com sua esposa, Putani, e seu filho Bira Junior, para tratar do assunto. A decisão tomada foi a de que, assim como decidido pelo Tashka, as comunidades sob sua direção não aceitarão mais que se use a folha. E em suas atividades, como os festivais e vivências, os visitantes serão orientados a não levarem a folha para o evento, sob o risco de serem convidados a se retirarem, caso não aceitem desfazer-se do produto.

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Na percepção de ambos, Tashka e Bira, mesmo não sendo uma prática que incidia negativamente sobre a pessoa, não representa a cultura tradicional. Esse é um detalhe interessante na reflexão de ambos: ficou claro que, nos tempos atuais em que se luta a cada dia para manter intacta a cultura, com o mínimo de mudanças, onde a pressão externa e a falta de estímulo aos jovens fazem com que esta esteja constantemente em risco, incorporar elementos – principalmente ligados a uma mística em particular – em vez de somar, contribui negativamente para a cultura tradicional.

Esse assunto ainda rendeu outro papo interessante, quando, ao tratar de assuntos diversos com a Letícia Yawanawá, uma das principais expoentes do movimento de mulheres indígenas no Acre, e nacionalmente conhecida por sua militância, entramos nesse mesmo tema.

Ela, então, me falou algo perfeitamente entendível e, ao menos para mim, definitivo: Jairo, tu consegue imaginar o velho Tuikuru, quando tava vivo, pondo essa folha de medicina na boca? Tu consegue imaginar esse velho ‘fumaçando’ certas coisas que tão virando moda por aí? – Bem, não se pode ter muito argumento depois de uma fala dessas.

Realmente, convivi pouco, mas o suficiente para ver e ouvir as atitudes do velho, que sempre foi uma pessoa respeitadora da cultura alheia e que valorizava muito toda expressão de cultura tradicional, no que dizia ao resguardo do seu próprio povo, os Yawanawá, sua visão era bastante inflexível às ‘modas’ que sempre se avinzinharam.

Bem, não vou entrar aqui no papo da legislação nacional quanto ao uso ou posse da folha de coca em território brasileiro, até porque, de certo modo, creio que as aldeias não são ‘territórios brasileiros’ e, particularmente, acho essa legislação um tanto quanto equivocada. A questão aqui é de outro nível, e espero que isso esteja claro para quem está lendo este texto.

Também não ponho em descrédito, muito menos em suspeição os benefícios físicos e a mística que regem o uso da folha de coca, pois do pouco que conheço, muito apreço e respeito tenho. No entanto, achei interessante as reflexões que ouvi estes dias sobre o assunto, e acho salutar a discussão, pois, assim como muitos caciques não gostam que usem de maneira errada a sua cultura e medicina, também mostram ressalvas ao uso dos costumes e medicinas de outros povos indígenas.

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O povo Yawanawá sempre teve este destaque aqui no Aquiry, em ser referência de movimentos que, em maior ou menor grau, serviram de modelo para os demais povos. Assim, creio que certamente esta reflexão vai se estender às outras comunidades, o que, repito, é bastante salutar.

E o que eu acho sobre tudo isso? Pra ser sincero, no que diz respeito a cultura e práticas do sagrado indígena, quanto menos tempero se acrescenta à receita original, menos risco se tem de estragá-la ou correr o risco de tranformá-la em ‘outra receita’.

Já estive um tanto de vezes em países andinos e masquei muita coca, assim como estive muitas vezes com o povo Japó, os Ashaninka, onde igualmente,  me misturei com eles em seus costumes. Busquei agir conforme a máxima: ‘Em Roma faça como os romanos’. Evitando, claro, levar ‘os costumes de Roma’ para além de seus muros e limites territoriais.

E quanto ao assunto que citei no começo da crônica…sobre os filhos do negrume do mercado do sagrado…

Bem, como comecei o papo de hoje com ele, assim também o encerro deixando aqui a mesma mensagem que publiquei na minha ‘timeline’:  “Coitados desses que vendem, e mais ainda, coitados daquele que compram esse ‘produto’, pois a energia deste chá vendido está impregnado de coisas ruins, pois foi feito com propósitos voltados para o dinheiro, ou seja, o papel higiênico do capeta… quer comprar? Compre e tenha uma boa viagem espiritual, vendo como o capeta limpa a bunda com seu espírito…

Sacou, cara pálida?

Jairo Xapuri 2

Origem do nome Friday, que vem de Frigedæg, palavra do Inglês Antigo (Old English) que significa “Dia de Frige” (Freya’s day), a deusa germânica da beleza.

Jairo Lima é indigenista, graduado em Pedagogia pela UFAC, com especialização em antropologia. Atua há mais de vinte anos junto aos povos indígenas do Acre e desde 2012 é servidor da FUNAI, no Acre.

Créditos das imagens: Imagem 1: Altino Machado; Imagem 2: Ayahuasca, foto de Sérgio de Carvalho; Imagem 3: Jovem Yawanawá, foto de Sérgio Vale; Imagem 4: Ashaninka do Envira, foto de Talita de Oliveira; Imagem 5:     Velho Tuikuru e as crianças, foto de Pedro Devanir.

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p style=”text-align: justify;”>Matéria publicada originalmente em maio de 2017.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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