A caça dos Panará: Uma atividade múltipla

A caça dos Panará: Uma atividade múltipla

Em várias áreas do Brasil atual a caça de animais é largamente praticada. Seja para subsistência, por esporte ou proteção de áreas cultivadas, sua realização possui elementos de ordem sociocultural variados. Há hoje no país um em torno da regulamentação da atividade, uma discussão que cruza os impactos ambientais da caça ( da fauna), a proteção de áreas agrícolas e o discurso de proteção aos animais, entre outros elementos.

Já a caça dos povos é legalmente amparada pela Constituição Federal, que garante a prática de seus costumes e tradições. A ideia, então, de subsistência/sobrevivência alimenta essas e outras formulações legais e de senso mais geral sobre a caça. Mas que subsistência é essa e qual o lugar da caça na vida dos povos que a praticam?

Um olhar etnográfico sobre a caça dos Panará nos permite refletir sobre o assunto. Longe de ser uma atividade primitiva, resquício de algo que a humanidade foi um dia, atestado de atraso ou fragilidade de uma cultura, a caça ali (e entre tantos outros grupos) deve ser observada pela conjunção de fatores que ela reúne. Ela enfeixa um conjunto de relações internas à (as relações entre parentes, entre gêneros, entre gerações) e externas, nos engajamentos com os animais e o ambiente da floresta.

OS “ÍNDIOS GIGANTES”

Panará é o nome pelo qual um grupo de cerca de 550 pessoas aparentadas entre si se autodenomina. O grupo vive hoje em cinco aldeias na Panará, uma área de 500.000 ha que se estende pelo norte do Mato Grosso e sul do Pará e compõe o corredor de sociobiodiversidade do Xingu.

No começo dos anos 1970, os Panará foram atingidos pela abertura da rodovia BR-163 (Cuiabá-Santarém). Então, o projeto do governo militar para a Amazônia baseava-se em grandes obras de infraestrutura (rodovias, mineração, energia) e a integração da região norte ao sul. A colonização da região implicou a abertura de grandes áreas, o que acarretou o contato e  a remoção de vários povos indígenas que ali viviam.

Os Panará viviam então na região do rio Peixoto de Azevedo, na bacia do rio Tapajós. Seu território era a franja meridional da floresta amazônica. No começo de 1970, as frentes de atração da Funai alcançaram o grupo, antecipando em metros as obras da estrada.

Os Panará buscavam evitar o contato, mas já estavam debilitados pelas fugas, assolados por epidemias e vivendo com medo e assombro.

Em 1973 cederam ao encontro e dois anos depois o grupo, que contava com mais de 400 pessoas, estava reduzido a 79, vivendo às margens da rodovia. A Funai decidiu levar os “índios gigantes”, como eram conhecidos, para dentro do Parque Indígena do Xingu (PIX). Ali viveram por 20 anos em situação de exílio e, na década de 1990, conseguiram retornar para parte do seu antigo território. Protagonizaram ainda uma vitória em ação indenizatória contra o Estado brasileiro, que reconheceu a responsabilidade por danos físicos e morais na construção da Cuiabá-Santarém.

SUASÊRI – A CAÇA PANARÁ

A panará não possui uma palavra equivalente ao nosso termo caça. Utilizam a palavra suasêri, que indica mais a ideia de caminhar em uma linha/trilha. Andar é, precisamente, o principal sentido que a caça enfeixa para o grupo: um deslocamento pela mata em busca do animal. Outros termos usados para designar a atividade é “vou na mata escutar”, ou “buscar bicho”.

Os Panará realizam expedições de caça coletivas em momentos rituais. A caça é uma atividade rotineira, eminentemente masculina, que os homens realizam sozinhos ou em grupos pequenos. As matas da região são pródigas em caça, mas por vezes procuram áreas distantes, viajando de barco, para encontrarem animais que os caçadores dizem ser “mansos”, não acostumados com gente.

Na Amazônia indígena, é comum que os povos caçadores adotem o cachorro como ajudante em caçadas. Não é o caso dos Panará, que tampouco possuem armadilhas. A caça, quase sempre realizada diuturnamente, ocorre em movimento pela mata, surpreendendo os animais em seu ambiente.

A arma usada pelos Panará hoje é a espingarda, que tem vantagens, mas também seu ônus, o mais óbvio deles é a necessidade de aquisição da munição na cidade. Sua eficácia é reconhecida, mas os caçadores dizem que o sucesso da caça depende de outros fatores. Para tanto, empregam uma série de cuidados corporais, resguardos e cuidados alimentares para entrarem na mata. O caçador evita relações sexuais no dia anterior, já que o cheiro do sexo poderia ser sentido pelas presas.indd1

Eles fazem longas caminhadas pela floresta próxima às aldeias, por trilhas e lugares familiares.

Barreiros de sal no meio da mata são um desses locais, onde, segundo os Panará, os animais fazem suas aldeias. As caminhadas são hábeis, deslocando-se com calma, mas velocidade, evitando fazer barulho ao mesmo tempo que se está atento aos sons da mata e a qualquer manifestação de movimento no horizonte da floresta. O olfato é essencial, tanto quanto a audição. A visão, mesmo aguçada, nem sempre é eficaz em um ambiente de múltiplas camadas de luz e vegetação cerrada.

Homens experientes, chefes de família, costumam sair à mata sozinhos e retornam com frequência carregando animais. Os jovens caçam com seus parceiros, amigos ou cunhados. A carne abatida e trazida à aldeia é partilhada com os vizinhos, que são da mesma unidade residencial. Como entre muitos povos do Brasil Central, ao se casar, um homem vai morar na casa da família de sua esposa, passando a viver com seus sogros e cunhados. O produto de sua caça constitui um alimento sob os cuidados dessa família.

As mulheres cumprem papel fundamental na transformação da caça em alimento e sua distribuição. A caça é um dos elos que vincula os parentes. Antes mesmo de preparar o alimento, a esposa do caçador distribui a carne entre seus congêneres, afirmando sua generosidade e o cuidado que envolve esse tipo de relação. O ritual panará encena essa relação de partilha e generosidade em larga escala, quando uma das quatro metades da aldeia distribui o alimento às outras três.

A cozinha panará é rica em sabores e . São excelentes agricultores, cultivando grande variedade de batatas doces, amendoins, milhos, bananas, além da versátil mandioca. O principal instrumento de preparação da carne de caça é o forno de terra (ou de chão), manuseado pelas mulheres. Aí elas aquecem pedras, com as quais cobrem a carne de caça e as tortas de mandioca enroladas em folhas de banana brava (o kiampó), abafando com terra até que fiquem cozidos. Hoje. o cozimento em água e a fritura em óleo também ocorrem.

Com suas múltiplas dimensões, a caça panará está longe de se resumir à mera aquisição alimentar. Ela está no cerne dos conhecimentos da floresta e relações ecológicas. É caçando que desenvolvem um saber sobre os animais, as plantas e a paisagem florestal. É pela caça que interagem com os espíritos dos animais, uma dimensão sempre presente na atividade e sobre a qual pesa um complexo xamânico importante, de com os espíritos dos mortos.

O conhecimento vasto da caça circula pelo coletivo por meio de narrativas contadas no centro da aldeia, ou dentro de casa. Uma caçada se completa quando é narrada, no retorno do caçador.

Atividade central na vida social, a caça é, por isso mesmo, afetada pelas dinâmicas históricas vividas pelos Panará. As transformações que ocorrem na dieta, com o consumo maior de alimentos provenientes da cidade, as mudanças no aprendizado com a introdução da educação escolar, além das novas formas de deslocamento e experiência do espaço, são elementos que ora se articulam, ora se confrontam com a caça. Longe de ser uma atividade estanque, a prática também se dinamiza, absorvendo elementos, inovando-se e se readequando.

Fotos: Acervo Fabiano Bechelany


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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