Caminho das tropas

Caminho das tropas

Por Hugo de Carvalho Ramos

O lote derradeiro desembocou num chouto sopitado do fundo da vargem e veiu a trouxe-mouxe enfileirar-se, sob o estado de relho, na outra aba do rancho, poucas braças adeante da barraca do patrão.

O Joaquim Culatreiro, atravessando sem parar o pirahy na facha encarnada da cinta, entre a “espera” da garrucha e a nickelaria da franqueira, desatou com presteza as bridas das cabresteiras, foi prendendo às estacas a mulada, e afrouxou os cambitos, deitando abaixo arrochos e ligáes, emquanto um camarada serviçal dava a mão de ajuda na descarga dos surrões.

O tropeiro empilhou a carregação aos fardos do dianteiro, e recolheu depois uma a uma as cangalhas suadas ao alpendre. Abriu após um couro largo no terreiro, despejou por cima meia quarta de milho, ao tempo que o resto da tropa ruminava em embornaes a ração daquela tarde.

O cabra, atentando na lombeira da burrada, tirou dum surranzito de ferramentas, mettido nas bruacas da cosinha, o chifre de tutano de boi, e armado duma dedada percorreu todo o lote, curando aqui uma pisadura antiga, ali raspando, com a aspereza dum sabuco, o dolorido dum inchaço em princípio, aparando além com o gume do frême os rebordos das feridas de máo caracter.

Só então tornou à roda dos , ao pé do fogo do cozinheiro, no interior do rancho, onde chiava atupida a chocolateira aromatizada do café. A tarde morria nuns visos de crepúsculo pelas bandas da baixada. A mulada remoía nas estacas, e junto ao couro de milho um ou outro animal mais arteiro e manhoso escoucinhava e mordia os demais, no afan do maior quinhão.

(…)

– A gente quanto mais vive, mais aprende, já dizia minha avó. Assombramentos, tenho ouvido casos, verdade seja. Mas as mais das vezes falta de coragem, turvação de medo e da bebida… Maluquice, anda à toa pelo mundo da Virgem; não fora meu ânimo, hoje zanzaria por ahi, nessas bamburras, “gira” varrido. (…)

Em Tropas e Boiadas – Z.E.R. 3ª Edição – São Paulo – Rio – Bahia

 

RELEITURA DO E DA VIDA DO AUTOR

            Nós, formosenses, sabemos que nossa cidade surgiu como entreposto de comércio de couro e pouso de tropas. Explica-se, então, trazer este excerto do tesouro literário goiano para a visagem de todos.

Reparem bem na grafia da época e, com um pouco de boa vontade, pode-se bem entender e interpretar que o texto tem por narrador um tropeiro, conta a rotina de sua lida com os muares e com a cangalha. Também podemos ver que desde sempre o imaginário popular sobressai-se através das crendices. Bom saber como era, como foi a vida dos que adentraram o inóspito sertão cerratense de nosso .

Hugo de Carvalho Ramos era filho do juiz e poeta Manoel Lopes de Carvalho Ramos e de Mariana Fenelon Ramos.  Nasceu em 21 de maio de 1895, em Villa Boa de Goyaz, hoje , e desde cedo apresentou tendência e fascínio pela literatura.

Foi também da escola da Mestra Silvina Ermelinda Xavier de Brito (A Cora dedicou poema). Fase em que conviveu com ilustres colegas como: Benjamin Vieira, Breno Guimarães, , Leão Caiado, Vítor de Carvalho Ramos (seu irmão) e outros não menos ilustres. Sabe-se que alguns de seus contos mais conhecidos foram escritos aos quinze ou dezesseis anos. Em 1917 publicou Tropas e Boiadas, uma coletânea de contos de inspiração sertaneja, que mereceu referências elogiosas da crítica nacional.

Em 1920, estando prestes a concluir o curso jurídico e estando já abatido por crise de depressão, viajou ao interior de Minas Gerais e São Paulo. No ano seguinte, novamente de volta ao Rio de Janeiro, vítima da angústia e da depressão, cometeu suicídio em 12 de maio de 1921.

A 31 de janeiro de 1999, um seleto júri selecionado pelo jornal mais importante do estado de Goiás, O Popular, de Goiânia, incluiu a sua obra imortal, Tropas e Boiadas (1917), dentre as vinte literárias mais importantes do século XX, em Goiás, tendo obtido o primeiro lugar com “10 menções” por parte do júri.

Hugo de Carvalho Ramos (*1895 +1921 – 25 anos).

Releitura por Iêda Vilas-Boas – Escritora. Membro do Conselho Editorial da .

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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