Combater a LGBTFobia e fazer a Democracia
Aos 17 de maio, destaca-se para o Dia Internacional de Combate à LGBTfobia. Anos após a desclassificação da homossexualidade como doença, é preciso ecoar ainda mais gritos por liberdade e democracia.
Por Arthur Wentz e Silva
LGBTFOBIA: UM CONCEITO
O capitalismo nasce mudando completamente a concepção de sociedade. Se, antes, a formatação das expressões de gênero e sexualidade eram condicionadas a fatores muito específicos de cada cultura, agora um sistema muito mais específico exige regras de comportamento muito mais densas.
Essa formatação fez emergir um consenso de dominação. A figura do homem assumiu um poder central sobre as mulheres, as retirando de liberdades sexuais – impondo a monogamia como única forma de expressão de relacionamento – e econômicas, por exemplo.
O patriarcalismo – tendência de dominação do homem– foi mantido como uma herança, como uma forma de necessária manutenção nas gerações. Assim, a burguesia construiu a heterossexualidade e a cisgeneridade como manutenção da hegemonia e do poder.
Nesse sentido, é inegável que a LGBTfobia é – acima de tudo – uma ideologia. Conforme descrito pelos pesquisadores Gilson Coelho, Plábio Desidério e Luisa Rocha, em 2023: “(…) um dispositivo intencional e historicamente gestado no cerne da sociedade, com propósitos bem definidos (…)”.
Com isso, qualquer manifestação contrária aos interesses do patriarcado era vista como uma ameaça. A lesbo-homo-bi-transsexualidade era vista como uma afronta sistêmica à ideologia. O combate a este grupo de indivíduos colocaria a ideologia burguesa sob um aparato fundamental para sua sustentação.
A LGBTfobia – termo mantido, mesmo após a inclusão de QIAPN+ – corresponde a este sistema de ações negativas, prejudiciais e alimentadas em estereótipos, juízos e concepções que fogem do, dito, “padrão” de gênero e sexualidade.
NOSSAS HISTÓRIAS NÃO SURGIRAM ONTEM
Frutos de muita luta e resistência, as ações que pautaram liberdade e dignidade para a comunidade são resultados de diversas conquistas ao longo da história. Pensar a vivência queer como oriunda da pós-modernidade é negar nossas vivências desde a antiguidade. As relações homoafetivas nas diversas culturas, a partir de pesquisas e estudos historiográficos e antropológicos, apontam as questões de gênero e sexualidade como algo muito mais amplo na humanidade.
Como quaisquer práxis de opressão, o patriarcado – embalsamado pela lógica da hetero-cis-normatividade – escondeu por anos a vida de pessoas LGBTQIA+, colocando-as sob certo esquecimento. Assim, tende-se a acreditar em uma narrativa da “anormalidade”. No entanto, a história não se dobra ao interesse individual. Ela existe. E de forma clara, o romance delicado entre o imperador Adriano e o jovem Antínoo, a rebeldia de Elisa e Marcela, o legado de Marsha P. Johnson e a coragem de Caio Fernando Abreu escancaram uma história que jamais deveria ter sido aprisionada em armários.
Nas nuances da luta por sobrevivência, diversas foram as formas de combate e revolta que alavancou a disputa por liberdade e emancipação dos corpos. Dentre as muitas lutas e conquistas, temos de mencionar:
- 1797 – França torna-se o primeiro país a descriminalizar a homossexualidade;
- 1830 – Brasil se torna um dos primeiros países das Américas a descriminalizar a homossexualidade;
- 1951 – Roberta Cowell é a primeira pessoa a passar por uma cirurgia de redesignação de sexo no Reino Unido;
- 1969 – Revolta de Stonewall (Nova Iorque): violência policial gera uma rebelião por direitos;
- 1972 – Suécia torna-se o primeiro país do mundo a permitir a troca de documentos a pessoas trans e oferecimento de redesignação gratuita;
- 1973 – Associação Americana de Psiquiatria remove homossexualidade da lista de doenças mentais nos EUA;
- 1985 – Conselho Federal de Medicina retira homossexualidade da lista de doenças do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social no Brasil;
- 1990 – OMS retira homossexualidade do CID;
- 1996 – África do Sul se torna o primeiro país do mundo a proibir a discriminação sexual;
- 2001 – Holanda torna-se o primeiro país a legalizar casamentos homoafetivos;
- 2006 – Princípios de Yogyakarta são publicados;
- 2011 – STF reconhece união homoafetiva como entidade familiar;
- 2018 – Primeira pessoa trans no exército (EUA);
- 2019 – Criminalização da LGBTfobia (Brasil);
- 2020 – STF autoriza a doação de sangue por homens homossexuais (Brasil);
- 2023 – Equiparação da LGBTfobia como crime de racismo (Brasil);
- 2023 – Mulheres transexuais assumem mandato como deputadas (Brasil).
A história da luta por liberdade é parte do DNA rebelde de pessoas LGBTQIA+. Desde cedo levantam-se em busca por justiça, liberdade e dignidade de seus corpos.
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O 17 DE MAIO COMO SÍMBOLO
Em 17 de maio de 1990, devido à forte pressão social e avanço de discursos democráticos, a homossexualidade foi oficialmente removida da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID). Até essa data, a orientação sexual era considerada um fator psíquico, uma patologia.
Hoje, passados alguns anos, essa data é remontada para um dia de intervenções e lutas pela garantia de direitos e fim da LGBTfobia, como conhecida: o Dia Internacional Contra a LGBTfobia.
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CULTURA, MÍDIA: ENTRE ESTEREÓTIPOS E RESISTÊNCIAS
A cultura é um importante elemento na vida dos indivíduos. Quando pensamos as relações humanas, é impossível desassociar as vivências culturais das demais relações. No entanto, como evidenciado por Gramsci, a cultura também é um apetrecho de entendimento dos projetos dominantes. Assim nasce a preocupação da UNESCO com relação aos contextos culturais de grupos minoritários.
A identidade, nesse sentido, ganha destaque para pensar as relações dos próprios indivíduos em suas atmosferas de vida. A insurgência por um conceito ainda mais amplo de cidadania, fez com que mulheres, negros, indígenas, pessoas com deficiência e, consequentemente, LGBTQIA+ assumissem as narrativas culturais em busca de uma nova lógica.
Uma cultura hostil empregou-se juntamente ao contexto de perseguição aos corpos queer. Muito mais do que simplesmente apagar as histórias, proibir as vivências e perseguir os indivíduos, o regime impôs uma violência cultural sobre pessoas LGBTQIA+. Isso significa que estereótipos foram inseridos na mídia para constranger e violentar gays, lésbicas, pessoas trans e demais elementos da sigla.
Ao longo do tempo, a imagem do pecado, do obsceno e do patológico foi sendo consideravelmente empregado pelos aparelhos midiáticos. Novelas, jornais, programas de televisão e tantos outros aparelhavam estas ideias a lógica da comunidade.
A tentativa, no entanto, começou a perder força. Com um discurso de emancipação, de liberdade e de direitos, colocamo-nos nas trincheiras da cultura. Com respostas automáticas sobre a vida, o estigma e o preconceito, conseguimos ocupar lugares importantes nas artes e nas mídias.
É pactuado que a cultura tem um papel significativo para a luta da comunidade LGBTQIA+. Afinal foi a partir do vogue, da performance drag e do pop que conseguimos ecoar um novo jeito de fazer política. Colocando as pautas nos palcos, nos livros e apresentando as nuances de uma sociedade acometida pela indelicadeza hipócrita.
NUM FUTURO NÃO TÃO DISTANTE, A LIBERDADE: SEGUIR LUTANDO
Os desafios são diversos, mas as conquistas também. Ainda não conquistamos boa parte do sonho de viver com justiça, liberdade e dignidade. Com o despertar silencioso, cruel e violento da extrema-direita no mundo, nossos corpos ficam constantemente em alerta.
Construir um mundo novo é uma tarefa que tende a ser difícil e duradoura. Mas há de haver esperança. No Brasil, os tempos novos de valorização dos Direitos Humanos – a partir da acertada escolha de Lula para o MDH, com Silvio Almeida sob o comando – entusiasma o mundo para uma nova realidade.
Ainda no ano passado, em uma participação histórica na Parada do Orgulho LGBTQIA+, Silvio Almeida mencionou: “É inegociável que vocês tenham o direito de existir dignamente e amar como e quem vocês quiserem! ”
No entanto, os discursos e retóricas de perseguição também se fortaleceram com um Congresso ainda marcado pelo bolsonarismo. Figuras que escancaram a violência do ex-presidente atacam diariamente nossas existências.
Assim, resistir não se torna opcional. É preciso que nos coloquemos cada vez mais em busca de espaços. Violentados desde a infância, não podemos permitir que direitos conquistados coletivamente sejam meramente assassinados pela extrema-direita. Muito pelo contrário, é preciso que digamos que viver e existir plenamente ainda pode ser uma das realidades.
Nunca foi fácil, sabemos. Se guardar na indiferença, temer a expressão, viver aprisionado de si, expulsos de casa, largadas à prostituição e tantas outras – estruturais – formas de violência aos nossos corpos. É preciso seguir esperneando, seguir batendo leques ao alto, seguir fazendo cultura e mostrando que existimos e não há democracia, não há Brasil sem nós.
Arthur Wentz e Silva é estudante de Letras – Língua Portuguesa e Respectiva Literatura, na Universidade de Brasília (UnB) e redator da Revista Xapuri. Texto ancorado no artigo Afinal, o que é a LGBTfobia? (2023), de Gilson Coelho, Plábio Desidério e Luisa Rocha.