30 COMITÊ CHICO MENDES: GUARDIÃO DA MEMÓRIA E DO LEGADO DE CHICO MENDES

COMITÊ CHICO MENDES: GUARDIÃO DA MEMÓRIA E DO LEGADO DE CHICO MENDES

COMITÊ CHICO MENDES: GUARDIÃO DA MEMÓRIA E DO LEGADO DE CHICO MENDES 

“Após um período de acirradas disputas políticas e retrocessos, 

é tempo de retomar os direitos que nos foram negados 

numa tentativa de apagamento histórico 

das nossas culturas e ancestralidades. 

É tempo de nos conectarmos com nossas raízes 

para que a Amazônia fale por ela mesma. 

É tempo de um grande pacto intergeracional 

para unir todas as vozes num só pensamento”

Manifesto lançado pelo Comitê Chico Mendes nos 35 anos da morte de Chico Mendes

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Foto: Espaço Chico Mendes.

Por Angela Mendes, M. Letícia Marques

O Comitê Chico Mendes fez bonito na COP 30. Por nosso Espaço Chico Mendes e Fundação BB, instalado no Campus de Pesquisa do Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém, durante todo o período da Cúpula do Clima, milhares de pessoas do Brasil e do mundo se juntaram a nós, em uma bela jornada para honrar a memória e celebrar o legado de Chico Mendes. 

Passada a adrenalina da COP 30, fico, então, pensando na incrível força deste movimento que, assim como as raízes da floresta, se entremeia em uma sustentável rede de compromissos para perpetuar a missão de Chico Mendes, que foi, como ele mesmo disse um dia, lutar para “salvar as seringueiras, a floresta Amazônica e a própria humanidade”.

O Comitê Chico Mendes foi criado na mesma noite do assassinato de meu pai, em 22 de dezembro de 1988, quando, ao receber a notícia do assassinato que tirou a vida de Chico Mendes, em Xapuri, seus companheiros e companheiras que estavam em Rio Branco, foram se juntando na sede da Diocese de Rio Branco. 

Ali mesmo, ainda em estado de choque, um grupo de militantes das mais variadas organizações que estavam surgindo na época, como consequência do fim do regime militar, da reorganização política e do movimento ambientalista, firmou o compromisso de fundar o Comitê, com o apoio do Dom Moacyr Grechi. 

Hoje, passados 37 anos, continuo me emocionando ao ver que aquela decisão tomada por familiares, companheiros e companheiras de militância, representantes de entidades da sociedade civil organizada, em momento de profunda dor, perdura e segue conosco, dando, como nos ensinou o grande poeta Thiago de Mello, “esperança ao porvir”. 

Se o tivessem permitido viver, neste 22 de dezembro meu pai estaria completando 81 anos. Não o deixaram permanecer entre nós para ver seus netos e netas crescerem, suas ideias germinarem, seu legado se multiplicar pelo Brasil e planeta afora, graças ao trabalho generoso de tanta gente, e também nosso, aqui no Comitê Chico Mendes, que tenho a honra de presidir. 

Em sua homenagem, retomamos as memórias e reafirmamos a razão de estamos trilhando esse caminho, marcado tanto por tragédias como por vitórias, porém firmes no entendimento da importância de organizações como o Comitê Chico Mendes para as comunidades tradicionais e indígenas da Amazônia e de todos os biomas brasileiros, e mostramos como a união fortalece a nossa luta coletiva.

OBJETIVOS DO COMITÊ CHICO MENDES

A princípio, o Comitê Chico Mendes tinha um objetivo muito direto: buscar justiça, para que o assassino e os mandantes do crime fossem presos, julgados e condenados. 

A realização anual da Semana Chico Mendes, a cada mês de dezembro, do dia 15 ao 22, datas respectivas do nascimento e do assassinato do Chico, e, mais recentemente, nos últimos seis anos, do Festival Jovens do Futuro, mantém uma definição muito clara do campo de atuação do Comitê Chico Mendes: 

  • Apoio aos trabalhadores e às trabalhadoras da floresta na luta contra qualquer tipo de injustiça e impunidade; 
  • Proteção da Floresta Amazônica e dos povos que nela vivem; 
  • Combate ao desmatamento, à grilagem de terras e a todas as atividades ilegais que ameaçam os direitos e a vida da dos povos da floresta;
  • Denúncia de violações dos direitos dos povos da floresta;
  •  Promoção do desenvolvimento sustentável na região; 
  • Educação ambiental; 
  • Criação de projetos que auxiliem a população ribeirinha; 
  • Defesa irrestrita e contínua da memória, do legado, dos sonhos e dos ideais de Chico Mendes;
  • Engajamento para a inclusão ambiental, social e econômica das pessoas, famílias e comunidades da floresta nos processos e projetos da sociobioeconomia e de justiça climática; 
  • Inclusão de cada vez mais mulheres e jovens nessa nossa jornada.

Atualmente, as ações do Comitê se voltam especialmente à formação de jovens e mulheres que vivem na Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes, no Acre, na Amazônia e no Brasil. 

SEMANA CHICO MENDES

Ocorre todos os anos, de 15 a 22 de dezembro, principalmente em Xapuri e Rio Branco. Durante a Semana Chico Mendes, o Comitê Chico Mendes outorga o Prêmio Chico Mendes a pessoas e entidades que se destacam na luta em defesa dos ideais de Chico Mendes. Informações sobre a Semana Chico Mendes 2025 encontram-se disponíveis no Instagram do Comitê (@chicomendescomite) e no site: www.chicomendes.org

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FESTIVAL JOVENS DO FUTURO

Todo dia 6 de setembro, no Acre, o Comitê Chico Mendes realiza o Festival Jovens do Futuro, em memória de Chico Mendes e em defesa de um futuro sustentável para a Amazônia. O dia foi escolhido porque, em 6 de dezembro de 1988, Chico Mendes escreveu sua carta-testamento para a juventude do futuro. 

Três meses antes de ser assassinado, o revolucionário Chico Mendes escreveu uma carta convocando a juventude do futuro para seguir na luta por um mundo mais justo e mais feliz.

A carta, encontrada pouco depois de sua morte pelo amigo e companheiro de Chico, Gomercindo Rodrigues, junto ao aparelho telefônico, na mesa de trabalho de Chico, no Sindicato dos Trabalhadores [e das Trabalhadoras] Rurais de Xapuri, é endereçada aos [e às] jovens de 2120 que, nos sonhos de Chico Mendes, estariam celebrando 100 anos de revolução e resistência na Amazônia. 

Com inspiração no testamento que Chico deixou para as juventudes, o Comitê Chico Mendes iniciou, no ano de 2020, a realização do Festival Jovens do Futuro, que visa fomentar e difundir os ideais do grande líder que foi Chico Mendes. 

Ao longo dos últimos anos, o Festival Jovens do Futuro vem sendo realizado no formato híbrido, com atividades presenciais no Acre, compartilhadas, via redes sociais, para outras audiências, em especial para pessoas jovens do Brasil e do Mundo. 

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 “Atenção jovem do futuro – “6 de setembro do ano de 2120, aniversário ou primeiro centenário da revolução socialista mundial, que unificou todos os povos do planeta num só ideal e num só pensamento de unidade socialista, e que pôs fim a todos os inimigos da nova sociedade. Aqui fica somente a lembrança de um triste passado de dor, sofrimento e morte. Desculpem. Eu estava sonhando quando escrevi estes acontecimentos que eu mesmo não verei. Mas tenho o prazer de ter sonhado. Chico Mendes

JUVENTUDES: NOVAS GUARDIÃS DA LUTA

Nós somos o Comitê Chico Mendes. 

E juntos seguimos resistindo. E não é fácil. 

Atacar os sonhadores virou rotina. 

Mas seguimos, porque Chico sonhou este momento e se encantou. 

Ele se encantou com o futuro que estamos construindo. 

Um futuro que nasce 

quando não abaixamos a cabeça para a devastação. 

Quando gritamos para decisões políticas que ignoram a vida. 

Que fingem progresso enquanto matam a floresta. 

Não vamos ficar em silêncio. 

Cantamos, dançamos, desenhamos e plantamos. 

Criamos algo muito maior do que a narrativa que tentam nos impor. E encantamos o presente para proteger o futuro. 

Este é o nosso presente para os sonhadores. 

Porque onde há encantamento, há resistência.”

Texto do Manifesto do Festival Jovens do Futuro 2025 

REDE DE MULHERES DA FLORESTA: EMPODERAR AS MULHERES EXTRATIVISTAS É PROTEGER A NATUREZA

“Escolher começar pelo começo. Pelo feminino. Pelo sensorial. 

De um jeito que não passasse pela cabeça, 

mas atingisse direto o coração. 

E para que, mesmo sem palavras,

 todas pudessem perceber o porquê 

de cada uma de nós estar tocando aquele solo.”

Equipe Comitê Chico Mendes

Na Amazônia, as mulheres sempre estiveram na linha de frente da resistência – mesmo que, muitas vezes, invisibilizada pela história oficial. Da coragem nos empates de derrubada à liderança nas organizações comunitárias, elas têm sido guardiãs da floresta e protagonistas silenciosas da luta. 

Hoje, o projeto Rede de Mulheres da Floresta reafirma esse protagonismo, fortalecendo lideranças femininas no coração da Reserva Extrativista Chico Mendes. Criada pelo Comitê Chico Mendes, em parceria com a Fundação Ford, a iniciativa tem como missão empoderar mulheres extrativistas, jovens e adultas, entre 18 e 35 anos, oferecendo formação política, técnica e emocional para que possam ocupar – com firmeza – os espaços de decisão e incidência, da gestão local até arenas globais, como a COP 30.  

A luta continua, como dizia Chico, “com organização e disciplina”, pois essa é a chave para a vitória dos movimentos. O legado de Chico Mendes continua vivo no trabalho do Comitê Chico Mendes e de outras organizações que lutam pela preservação da Amazônia e pelos direitos dos povos da floresta.

angela mendes ativista ambiental foto amom aquinoAngela Mendes, presidenta do Comitê Chico Mendes. Colaborou Maria Letícia Marques, com informações do livro Vozes da Floresta, 3ª edição, editora Xapuri, 2024, e da revista Herdeiros da luta Guardiões do futuro, lançada pelo Comitê Chico Mendes em parceria com a Fundação Banco do Brasil, em 2025, preparada para COP 30 e para a Semana Chico Mendes 2025.

 

 

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Foto: Hannah Lydia

PROTAGONISMO ANTES, DURANTE E DEPOIS DA COP 30

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Foto: Espaço Chico Mendes

Sim, fizemos bonito na COP 30! Compartilho aqui a entrevista que concedi à Agência Brasil, contando um pouco da nossa experiência em Belém. 

Agência Brasil: Como nasceu o comitê e qual é o seu foco atualmente?  

Ângela Mendes: O comitê Chico Mendes foi criado na noite do assassinato do meu pai, por seus companheiros e companheiras que, sob muita dor, entenderam que era necessário, diante do sentimento de impunidade que reinava naquele período, criar uma forma de mobilizar a sociedade nacional e internacional para exigir do governo brasileiro justiça contra os assassinos do meu pai.  Por outro lado, era necessário que esse mesmo espaço reverberasse, cuidasse dessa memória de luta que ele nos deixou. Nesse sentimento foi criado o Comitê Chico Mendes. 

Agência Brasil: De que forma ele reverbera essa luta? 

Angela Mendes: A gente imaginou a Semana Chico Mendes que acontece exatamente no dia do seu aniversário até a data do seu assassinato. Ele [Chico Mendes] fazia aniversário dia 15 de dezembro e foi assassinado no dia 22, sete dias depois. Então o Comitê seguiu realizando as semanas Chico Mendes de forma voluntária, de forma muito orgânica. Em 2016, a gente imaginou que, como ele tinha deixado uma carta para os jovens no futuro, a gente pensou em ter essa carta como uma referência, uma inspiração para a gente começar a falar sobre a importância da juventude, sobretudo da juventude dos territórios. Para isso, a gente criou o núcleo jovem do comitê, que passou a fazer outras atividades, para além das Semanas Chico Mendes, fazer um trabalho dentro das escolas. E a gente começou também a instituir o programa Jovens Protagonistas das reservas extrativistas do Acre, na Resex Chico Mendes, tudo isso procurando mobilizar a juventude para olhar para essa carta. E, desde então, a gente segue, inspirados pela carta e por tudo que o meu pai fez. Em 2020 a gente realizou o primeiro Festival Jovens do Futuro, que ocorre no dia 6 de setembro, a data da escrita dessa carta. E, a partir desse primeiro Festival Jovens do Futuro, a gente entendeu que essa carta é visionária. 

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Foto: Alexandre Cruz-Noronha

Agência Brasil: Por quê? 

Angela Mendes: Porque jovens de mais de 20 países, de forma online, porque naquele período a gente estava com a pandemia [de covid-19] muito forte, participaram [do festival]. Foi um dia todo de lives. E a gente entendeu como, de fato, os jovens do mundo estavam mobilizados nessa luta por um mundo melhor, por justiça social, que ele antevia nessa carta.  Ela foi um chamamento, e a gente percebeu que existia ali um movimento de juventude ao redor do mundo que foi tocada por essa carta, sem ao menos conhecê-la. 

Agência Brasil: E, de lá para cá, quais ações foram feitas? 

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Foto: Espaço Chico Mendes

Angela Mendes: De lá para cá, a gente se institucionalizou. Há quatro anos temos um CNPJ e entendemos a necessidade de termos mais estrutura para chegar no território com mais impacto e trabalhando forte para potencializar as vozes das juventudes das reservas extrativistas. E agora também voltando muito o olhar para a questão da mulher. Hoje são esses dois públicos. Nossa força criativa está indo para pensar como fortalecer, ainda mais, esses dois públicos que têm um papel tão fundamental na manutenção desses territórios.

Agência Brasil: Nós vimos agora, na primeira semana da COP30, diversos movimentos sociais, os povos da floresta, quebradeiras de coco, quilombolas e indígenas reivindicando maior participação nos espaços de decisão. A mensagem de que só é possível o enfrentamento da crise climática com as populações e os povos foi ouvida? 

Ângela Mendes: Eu entendo que as COPs avançaram muito pouco no que diz respeito aos direitos dessas populações que estão nesses territórios, que também são estratégicos. Quando uma COP, que fala de justiça climática acontece aqui na Amazônia, a gente olha e vê como existe um desafio muito grande para as populações de floresta, para que essas pessoas, de fato, acessem políticas públicas que lhes garantam viver com dignidade. Então, essas populações têm todo o direito de fazerem suas reivindicações. Agora, eu não acredito que elas estão sendo ouvidas nesse contexto de COP. Mas ainda é cedo [para afirmar]. Acho que essa semana muita coisa está sendo definida. A gente ainda vai ter notícias sobre o que de fato saiu como resultado concreto. Eu entendo que todos estamos torcendo muito para que saia um acordo que possibilite o acesso a financiamento climático que possa fortalecer esses povos nos seus territórios. 

Agência Brasil: Com a COP30 entrando na reta final, já dá para fazer um pequeno balanço? Dá para falar nela como a “COP da implementação”, a “COP da verdade”? 

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Foto: Espaço Chico Mendes

Angela Mendes: Eu não sei te dizer, porque não estou lá nos espaços de negociação. Eu acho que ainda não existem grandes definições sobre o resultado dessa COP. O que posso dizer é que foi uma COP diferente, onde os movimentos, as organizações de base se mobilizaram, se articularam e fizeram muita coisa, deram seus gritos. A gente teve o Porongaço, que foi um movimento de populações extrativistas com mais de mil participantes. A gente teve a Marcha Mundial pelo Clima, que também reuniu mais de 70 mil pessoas, segundo as notícias. A gente teve a marcha dos povos indígenas e todos esses espaços paralelos de debate.  Muita coisa rolou em torno da COP que fez com que as autoridades que estão lá debatendo as soluções tenham percebido que na Amazônia existe muita resistência. E existe também muita produção de soluções para essa crise climática que a gente está vivendo. Acho que o que fica de entendimento é que as soluções para essa crise climática precisam incluir quem está no território. 

Agência Brasil: Voltando a esse debate de que as soluções têm que partir da escuta dos territórios, você acha que com a entrega da carta da Cúpula dos Povos, os próximos eventos como esse vão ter um espaço maior para esses movimentos? 

Angela Mendes: Acho que essa COP teve algo de inovador, que foram os processos que o governo brasileiro implementou, os espaços de diálogo, o balanço ético global, o papel também dos enviados, que são pessoas que fazem essa ponte da sociedade civil com a cúpula, com os negociadores. Eu acho que são importantes iniciativas que aproximam os povos dos territórios dessa alta cúpula dos líderes. Acho que a produção dos documentos também traz uma certa força. Porém, há uma disputa que acontece ali. Por exemplo, de uma manifestação de um grupo de indígenas que foram ocupar a Blue Zone e foram tratados de forma violenta, como invasores. Mas, e os lobistas que estão presentes em todas as COPs, que estão em grande número, que têm dinheiro para pagar suas passagens, estadia nos melhores hotéis, para fazer com que essa indústria dos combustíveis fósseis não perca espaço? Tanto é que a gente vai ter esse licenciamento para a exploração de petróleo na Foz do Amazonas. Então, ainda é um desafio muito grande a gente lutar contra o lobby dessas indústrias dos combustíveis fósseis. Os movimentos e povos se organizaram, fizeram todo esforço, fizeram suas pré-COPs, formaram suas lideranças no território sobre o que é e a importância dessa COP. Vão produzir documentos, vão produzir demandas. Se alguém vai ouvir, não sei, não me pergunte. 

Agência Brasil: Você tem falado sobre a necessidade de alianças para enfrentamento dessa crise ambiental. O que precisa ser feito, na sua avaliação? 

Angela Mendes: Eu vejo de forma muito clara. O meu pai deixa esse exemplo, junto com as lideranças indígenas que formaram a aliança original na década de 80, para avançar nas conquistas de políticas públicas, sobretudo de território. Eu acho que cada parte, cada segmento da sociedade pode contribuir para as soluções. A aliança com as academias, ela é superimportante. A academia produz conhecimento, pesquisa, e a gente sabe: os cientistas dizem que ainda há muito a ser pesquisado na Amazônia que pode vir a trazer uma inovação tecnológica para esse lugar, a partir dos conhecimentos também de quem está nesse lugar. É a sociobioeconomia. Os bancos podem também deixar de financiar apenas o agronegócio, o setor da mineração e entender que é importante também que abram linhas de financiamento para os pequenos empreendedores. A gente sabe a relação deles com agronegócio, com quem tem capital para oferecer garantias ao banco. Isso [a relação] não vai mudar, mas que o banco repense a sua relação também com os pequenos. As grandes indústrias, a indústria farmacêutica, a indústria cosmética têm uma capacidade grande de fortalecer os territórios também. Em vez de ficar explorando as comunidades, retirando as matérias-primas dos seus produtos, pagando um preço insignificante, indo beneficiar em outros lugares e vender por um preço absurdo, poderia muito bem repensar isso e incluir as comunidades nesse processo. Formar juventude para fazer essa manipulação, construir estruturas locais para fortalecer. Porque, veja bem, se um dia que essa floresta acabar, de onde eles vão retirar o muru-muru? Onde eles vão retirar o ipê branco, o pau-rosa para produzir os seus produtos? 

Agência Brasil: Cada segmento tem potencial de contribuir… 

Angela Mendes: Acho que cada segmento, como eu falei, tem poder de impulsionar essa transformação que a gente quer. A Amazônia, às vezes, só é reconhecida a partir do que ela fornece para os mercados de commodities internacional. É a carne, a soja, a madeira, a mineração que só degrada a Amazônia, viola os territórios. Mas ela tem tantos potenciais. A gente trouxe o Armazém da Sociobiodiversidade que mostra outras formas de se relacionar com essa floresta, com esses maretórios, com esse território de forma sustentável, garantindo esses ecossistemas não só para a presente, mas para a futura geração. 

Agência Brasil: Da mesma forma para os demais biomas, né? 

Angela Mendes: Exatamente. Da mesma forma, porque a gente também tem que entender que estamos todos integrados. Tanto que aqui a gente tem produtos de todos os biomas: do Cerrado, do Pampa, da Caatinga. Porque eu acho que cada bioma está conectado. Cada um deles tem sua cultura que é resistência ao modo de vida capitalista, que a gente tem hoje. 

Agência Brasil: Você acha que o seu pai teria visto com bons olhos uma COP aqui na Amazônia? 

Angela Mendes: Muita gente já me perguntou isso. Eu acho que ele teria olhado como uma grande oportunidade de construir a possibilidade de melhorar a vida dos companheiros e companheiras dele. A luta dele não era só pela conservação da floresta, mas ela era também pela manutenção dos modos de vida tradicionais das populações. Ele era um lutador incansável pela justiça socioambiental.

Agência Brasil: Após um período de negacionismo na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, a gente teve uma mudança no governo, acenando para retomada da política ambiental. Como você avalia esses três anos de governo Lula? 

Angela Mendes: Obviamente parece que a gente saiu de uma situação muito complicada, para falar o mínimo, para uma situação que aponta para outra direção. Mas, ao mesmo tempo, a gente sofre com o avanço do agronegócio em determinadas fronteiras agrícolas. A gente sofre com uma especulação sobre as terras, grilagem, pressão sobre os povos nos territórios. 

Agência Brasil: O que está faltando para o Brasil encampar de vez essa agenda ambiental? 

Angela Mendes: Eu acho que existe hoje uma sensação de impunidade. O governo Bolsonaro deixou no ar essa sensação de que tudo se podia fazer, porque ainda existe um sistema que está entranhado dentro dos espaços. Esse sistema defende os interesses do capitalismo. É esse interesse que combate diariamente o direito de quem está nos lugares, nos territórios, lutando para sobreviver. Porque o capitalismo é violento, cruel, ganancioso, quer tomar posse dos territórios para explorar, seja minério, seja petróleo, para satisfazer a sua sanha gananciosa. Esse sentimento de impunidade está presente hoje com muita força, tanto é que os assassinatos de defensores continuam acontecendo. A gente está falando, por exemplo, do assassinato, há duas semanas, de duas mulheres quebradeiras de coco babaçu aqui no estado do Pará. A gente sabe que os fazendeiros que têm os babaçuais nas suas terras estão fechando tudo, impedindo-as de continuar tirando o coco, colhendo o coco para se sustentar. Então, ainda é um sistema muito forte, muito poderoso, que está nos principais espaços de poder e que ainda dá suas cartas. O presidente Lula resolveu uma série de questões. Mas a gente vem de quatro anos que foram realmente um desastre, uma crueldade que retrocedeu 40 anos, 50 anos de luta para conquistar o que estamos perdendo. Apesar de estarmos com o governo progressista, a gente ainda tem esse Congresso que é fascista, a gente tem a maior parte dos governadores que são de extrema direita. Tem um tensionamento ao redor do presidente também. Inclusive fico imaginando que, nesses momentos, o povo na rua faria diferença. A gente se acostumou agora a militar nas redes e a gente só vai para a rua quando vai ser votado a PEC da Impunidade. A gente sabe dos graves problemas, essa questão da exploração de gás na Foz do Amazonas é extremamente grave. O governo precisava rever seu posicionamento também. A gente tem falado sobre transição justa, a gente tem falado sobre como o clima tem estado em crise por conta dos combustíveis fósseis. Então, não justifica que a gente esteja aqui na Amazônia, recebendo a COP para pensar soluções e, de repente, a solução que o Brasil encontra é aquela que já mostrou que traz mais problema do que qualquer outra coisa. Para fazer esse processo de transição justa acontecer, a gente não pode sucumbir ao capitalismo, a gente não pode sucumbir a essa força que o agro diz que tem. A gente também precisa, enquanto população, parar de reclamar nas redes e ir para a rua. 

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Foto: Espaço Chico Mendes

Agência Brasil: Como é ser uma mulher ambientalista em um país que tem essa infeliz marca de matar defensores dos territórios? 

Angela Mendes: Não é fácil estar na Amazônia, que é o bioma também onde ocorrem mais violências contra esses defensores. Então, realmente, é a gente vencer desafios todos os dias, tentar se fazer de forte mesmo quando a gente está sofrendo, cansada, entender que cada um tem um compromisso a assumir. Acho que a gente nunca foge da luta porque entende que o que a gente está construindo é pelo presente, pelo futuro, por todos os que estão aqui e pelos que virão. Eu sempre penso nisso quando eu estou para desistir, para sucumbir. E não é para deixar esses caras acharem que eles estão ganhando porque têm mais dinheiro, porque têm poder. Você falou nas alianças: é nisso que eu acredito, que a gente ainda está vivo hoje, ainda está resistindo, porque a gente está junto, se organiza em movimento e vai tocando. 

Agência Brasil: Como você vê hoje o papel das reservas extrativistas (Resex)? 

Angela Mendes: As reservas extrativistas são territórios estratégicos. Assim como as terras indígenas têm essa importância para a gente tentar manter o clima abaixo desse 1,5º C, que a gente não vem conseguindo. A Resex vem nesse sentido de ser também esse território que é uma grande fronteira contra os desmatamentos e as queimadas, como também para garantir os modos de vida de populações que estão nesse território há décadas, séculos, que aprenderam muito do que sabem com os indígenas que aqui já estavam. São a garantia de que esses modos de vida sejam resguardados, junto com a conservação da floresta. Quando meu pai foi assassinado, ele não chegou a ver a criação de nenhuma Resex, que só surgiram a partir de 1990. No apagar das luzes do governo [José] Sarney, foram criadas as primeiras reservas extrativistas de floresta, hoje elas já são quase 100, são 96, sob a gestão do governo federal. Isso porque a gente não está contando as reservas extrativistas sob gestão dos governos estaduais e municipais e outras formas de território de uso coletivo, como as unidades de conservação, reservas de desenvolvimento sustentável, projetos de assentamento extrativista, como as próprias florestas nacionais, que são unidades de conservação com pessoas dentro. Num total entre terra, floresta e água, são protegidos hoje mais de 60 milhões de hectares de biomas, com esses componentes, onde vivem mais de 1 milhão de famílias. É um número bastante expressivo, mostra como a luta dele não foi em vão. A sua morte, a gente entende também que não foi em vão, apesar de entender que, se ele estivesse vivo, hoje a gente teria avançado ainda mais. 

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Foto: Espaço Chico Mendes

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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