O AZUL E O VERMELHO: COMO O FESTIVAL DE PARINTINS DEFENDE A FLORESTA, EXIBE ARTE E DENUNCIA A DEVASTAÇÃO AMAZÔNICA
Os bois das agremiações Garantido (vermelho) e Caprichoso (azul), em uma rivalidade histórica que marca a diversidade da floresta na ilha do Baixo Amazonas.
Por Rosiene Carvalho, dos varadouros de Parintins

“Oh, brilho do sol, não deixe os Andes chorar. Não deixe, não. Quando os Andes choram, vai ter cheia grande. Aí, o povo vai penar. Mas eu te imploro piedade para o povo que mora na beira do rio …” Os versos da toada do Bumbá Caprichoso, que descrevem o comando das águas sobre a vida da população com a cheia e seca dos rios na Amazônia, são de 1988.
Esses versos fizeram parte do LP e da apresentação do Festival Folclórico de Parintins na toada “Maromba” – nome das construções de madeira onde os animais ficam suspensos no período das inundações nas cidades da região. Na época, apenas a percussão era o envoltório das letras que versavam o cotidiano dos compositores.
Hoje, as bandas se apresentam na competição anual com verdadeiras orquestras que têm como palco Parintins, cidade em forma de ilha a 369 quilômetros de Manaus, no baixo rio Amazonas.
As agremiações folclóricas Caprichoso e Garantido evoluíram da brincadeira de rua para um espetáculo de múltiplas artes, ao vivo e ímpar, em quase 60 anos de festival. As toadas, que contam, cantam e denunciam a rotina na Amazônia a partir de seus próprios poetas e artistas, deram o ritmo das mudanças.
“A toada, na sua essência, é uma música de melodia simples. As mais antigas tinham três estrofes, três acordes. Era de roda, não havia cantor, todos da roda cantavam. Outro momento: voz, percussão e palminha (instrumento de madeira usado nas palmas das mãos).
E é uma representatividade cultural inserirmos nossas temáticas dentro da brincadeira. Temos muitas toadas dos dois bois com esse apelo à preservação e ao que estamos vivendo”, declarou o compositor de Maromba, Neil Armstrong, que há 35 anos é produtor musical do Caprichoso.
A cidade vive da rivalidade entre os bumbás vermelho (Garantido) e azul (Caprichoso). O confronto se dá pela mistura de arte, tradição e inovação avaliada por jurados especializados.
Este ano foi a 58ª edição da disputa. Nos dias de festa de boi, a ilha tupinambarana – como também é chamada – dobra a sua população com turistas que chegam de avião e pelos rios.
No ano seguinte ao “Maromba” do boi azul, o Garantido gravou toada em homenagem ao seringueiro Chico Mendes, assassinado a tiros de espingarda aos 44 anos no quintal de sua casa em dezembro de 1988, no município de Xapuri (AC).
O ambientalista denunciava agressões à floresta e aos seringueiros. “Sou a árvore, a esperança, sou a estrela maior, sou a própria natureza”, diz a letra.

A toada é de Fred Góes, 77 anos, nome histórico no festival e na integração dele com a Amazônia. Fred é o atual presidente do boi-bumbá Garantido. Na década de 1970 saiu de Parintins para estudar jornalismo em São Paulo e, nos anos 80, formou bandas com artistas de várias nacionalidades da América Latina.
Voltou para Parintins cheio de ideias e com instrumentos de cordas andinos como o cuatro venezuelano e o charango. Inicialmente rejeitado pelos mais velhos, o charango se tornou instrumento padrão base para a melodia das toadas compostas hoje.
“Quando cheguei em Parintins, tive muito cuidado para não parecer que eu queria ser o bam bam bam só porque vinha de banda de fora. E também porque tinha um preconceito muito grande no boi com harmonia (combinações de sons e instrumentos para arranjos musicais). Não se podia falar em violão. Fomos quebrando essas barreiras”, conta Fred Goes.
No Caprichoso, o odontólogo da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), formado em antropologia, Ronaldo Barbosa, 71 anos, batalhou para convencer que a vivência em terras indígenas poderia ser parte do boi na Amazônia.
Teve de ser persistente. A primeira tentativa ocorreu em 1979 e continuou ao longo de toda a década de 1980. Além de mudanças na estrutura e vocabulário das toadas com palavras de línguas indígenas, o compositor trazia violão e uma batida diferente para as canções tradicionais. Como resposta, recebeu risos: “aquilo não era toada”.
Apenas em 1993, o compositor conseguiu emplacar a toada Yamã com o verso “Flautas que exaltam Tupã”. Daí para a frente, Ronaldo Barbosa virou marco e referência nas composições.
O festival incrementou itens inspirados na representatividade indígena com apresentações no formato folclórico de rituais e lendas dos povos originários na arena. Mais de uma centena de toadas históricas sobre a Amazônia tem assinatura de Ronaldo em cerca de 30 anos como compositor do Caprichoso.
“As toadas do Ronaldo Barbosa apresentaram a necessidade de outros instrumentos para cantar a temática amazônica. Cordas, metais. Fomos pensando. É indígena, vai ter que ter uma flauta, um tambor indígena. Desde essa época, a gente tenta chegar o mais próximo possível dos temas através dos instrumentos musicais”, explicou Neil Armstrong.
Barbosa também compôs sobre a fauna amazônica como em o “Ritual da Vida”, cuja letra conta como na natureza a morte é necessária “para a vida continuar”. E fez versos sincronizando o deslocamento do ribeirinho pelos rios com sua resistência frente às dificuldades que o cercam em “Saga de um canoeiro”: “Teu corpo cansado de grandes viagens, tuas mãos calejadas do remo a remar. O porto distante, o teu descansar”.
Em 1996, nos versos e na melodia da longa introdução acústica de “Rio de Promessas”, Ronaldo convida a olhar de onde o caboclo nutre sua esperança e força: “Eu sou esse rio, esse sol, essa terra. Sou parte da selva, ela é parte de nós”.
“A Amazônia é uma janela e quando você abre essa janela, a cada dia, essa Amazônia está diferente. É como se fosse uma tela pintada por obra e amor do Criador. Basta você olhar”, explica o compositor Ronaldo Barbosa. Neste ano, ele emplacou mais três toadas no álbum do Caprichoso. Uma delas sobre a lenda de Yurupari, figura mítica de legislador dos povos do alto rio Negro.
A escalada das queimadas em toda a Amazônia Legal assustou o mundo com a floresta virando fumaça e chegando aos grandes centros urbanos da América Latina.
“Lamento de raça”, um clássico em forma de profecia do compositor do Garantido Emerson Maia, descreveu o drama assim, em 1997, e voltou à arena na apresentação deste ano: “O meu pé de sapopema, minha infância virou lenha. Lá se vai a saracura correndo dessa quentura. Lá se vai onça-pintada fugindo dessa queimada. Meu rio secou, pra onde vou?”.

Em 2003, com “Santuário Esmeralda”, o Garantido repetiu o manifesto: “Teus santuários ecológicos, teus sublimes mananciais, murmuram uma triste oração, a nossa fauna corre o risco de extinção”.
Em 58 anos, os bumbás Garantido e Caprichoso também levaram para a arena de suas competições a história da Amazônia quaternária, pré-colonial, as invasões nas perspectivas dos povos originários com a dizimação de etnias declamadas nos versos de “Nações Extintas”, do compositor do bumbá Garantido Sidney Rezende. “Um dia chegou caos e cruz. Sem-terra, sem-teto, sem-chão, sem-alma, sem-rota, nação”.
Rezende, mineiro de nascimento e parintinense de coração, foi o responsável por introduzir harmonia no festival folclórico de Parintins. Morreu em 2022 e é reverenciado pelos artistas dos dois bois.
“Aqui na Amazônia nossa memória afetiva é regada a uma variedade de coisas. Chico Buarque diz que ‘o Brazil não conhece o Brasil’. E o Brasil não conhece a Amazônia. Não conhece. Nós temos uma maneira diferente de encarar a relação humana”, afirma Fred Góes.
O ritmo parintinense diversificou seus compositores e acolheu toadas propostas por sambistas que conheceram o festival e se inspiraram na Amazônia. Jorge Aragão é um exemplo e o descreveu assim em toada pelo Garantido de 1997 tocada na arena: “O céu derrama o véu da noite num abraço. Se a minha lágrima rolar, entrego às águas”.
CRÍTICAS E CONTRADIÇÕES
O festival, que tem como fonte de inspiração dos artistas a preservação da Amazônia e seus povos e os usa como marca, carrega no histórico críticas. Por exemplo, dos próprios indígenas pela generalização da imagem, por ser realização do Governo do Amazonas e, nos últimos anos, o patrocínio da Eneva, empresa que atua na exploração e produção de petróleo e gás natural no bioma.
O governo estadual é favorável à mineração em terra indígena, na região de Autazes. A empresa é questionada judicialmente por explorar gás natural com impacto em uma aldeia, em Silves.
Nos dois casos, contra o povo Mura, cuja história entrou na arena em festivais anteriores como recurso folclórico no espetáculo do Caprichoso, mas hoje os Mura não são acolhidos para denunciar as violências em seus territórios. O festival abre microfone para indígenas de outros estados que não confrontam os patrocínios.
A evolução do festival da brincadeira de rua para espetáculo também é crítica frequente. O filósofo e jornalista Neuton Correa afirma que houve uma adequação do evento para uma cultura de massa e de mídia.
Segundo ele, isso levou a toada a romper as barreiras do Brasil e ser consumida na Europa com o sucesso do hit “Tic, Tic, Tac”, da banda Carrapicho, uma das centenas de toadas que declara amor à exuberância do rio Amazonas. “As barrancas de terras caídas fazem barrento nosso rio mar”.
O jornalista é parintinense e criador de um programa de toadas na internet (#Toadas), que retomou o gosto pelo ritmo em Manaus há cerca de oito anos, após um período de menor engajamento do ritmo no seu principal público consumidor.
“Tivemos um momento de incompreensão sobre o festival. O governador da época entendia o evento como festa, brincadeira, desperdício de dinheiro público. Não é isso. O festival é um produto responsável por aquecer fortemente a economia da cidade. Nosso programa mostrou isso, ligando o evento à vida de Parintins.”, avaliou Neuton.
ECONOMIA E ARTE
As toadas esquentam o público para o festival, que é um motor da economia e um caminho para a cidade viver do turismo. De outubro a março, fora do período festivo, ocorre a temporada de navios. Mas é em junho que Parintins pulsa turismo.
De acordo com a Prefeitura de Parintins, os turistas, no festival, movimentam cerca de R$ 150 milhões na cidade. Os governos estadual e federal e patrocinadores como Eneva e Coca-Cola incrementam recursos. Em 2025, cada agremiação recebeu em torno de R$ 20 milhões.
O jornalista Neuton Correa argumenta que alguns críticos avaliam o festival como se fosse exaltação ao boi de corte em plena Amazônia e não compreendem que é justamente o contrário.
“Parintins tinha como fonte da economia a criação do boi de corte e fez uma escolha pelo boi de pano. Eu diria que o boi de pano é um elemento de preservação da floresta, a arte dos artistas da terra é a real proposta de desenvolvimento sustentável com uma cadeia de emprego e renda mais densa. Toda a cidade vive dessa economia, triciclos, frente de carros, barcos, hotéis, restaurantes, banquinhas. É uma cadeia muito grande e sem destruir a floresta”.
A reportagem solicitou resposta do Governo do Amazonas, da Eneva e dos bumbás Garantido e Caprichoso, mas não recebeu até a publicação desta reportagem.
TOTEM
O sociólogo e membro do Conselho de Artes do Boi-Bumbá Caprichoso, Márcio Braz, afirma que a antropologia explica a relação, para além da economia e cultura. “Há uma relação totêmica nos bumbás de Parintins. Cada boi possui um conjunto de insígnias e práticas rituais que fortalecem suas respectivas comunidades, autoidentificadas por eles como “povo”, “nação” ou “torcedores”.
“O boi tem uma importância significativa para o parintinense. Ele estrutura muitas das relações sociais e parentesco entre os ilhéus, formada por uma rede de parentes e amigos estabelecidas devido a torcida por um boi ou outro. Além, claro, das questões econômicas e políticas, onde são dois os grupos de eleitores, duas logomarcas a serem inseridas nos produtos comerciais, duas cores de estabelecimentos bancários etc.”
“Os torcedores são absolutamente fanáticos pelas suas agremiações. Demonstram sua paixão o ano todo nas redes sociais, nos currais dos bois, e onde mais tiver a presença de Caprichoso e Garantido.
O torcedor sempre estará onde o boi estiver, com sua camisa azul ou vermelha, seu braço e sua bandeira, pronto pra cantar e vibrar com seu boi”.
Nas palavras de seus artistas, a definição vira poesia. Adriano Aguiar do Caprichoso lê assim a paixão e a relação do bumbá em Parintins: “Sou a arte, a fé dessa gente. A essência de brincar de boi. Sou a cultura popular. Nosso folclore tem a cara desse povo mais feliz, é”.
Os compositores Enéas Dias e Arisson Mendonça, na toada do Garantido “Miscigenação”, de 2011, definem o boi da Amazônia como ritmo “quente, amazonense”, que apaixona para além da floresta: “Sou a cadência eternizada na toada, a poesia de um amor que se transforma em um som que vem da alma… E faz o mundo inteiro amazoniar”.

Rosiene Carvalho – Jornalista. Fonte: Varadouro – Um Jornal das Selvas. Capa: Alex Pazuello/Secom/AM.






