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A condenação sem crime de Lula: Uma sentença contra uma geração

Uma sentença contra uma geração

Por: Rudá Ricci

Ontem, [24 de janeiro] a página da história virou. Sei que, como diz minha esposa (que é historiadora), a história acontece todos os dias, todos os minutos. Mas, assim como a poesia transforma algo pueril em som especial, há momentos desta história cotidiana em que se quebra um vínculo com o passado. Foi o que ocorreu ontem.

Em 1979 eu tinha 17 anos. Vivia em São Paulo para fazer o último ano do ensino médio (que se chamava, na época, colegial) e tentar ingressar na faculdade. Participei de todos movimentos de redemocratização do país que explodiam em cada esquina da capital paulista. Não se tratava de política, apenas. Era um giro. A tal virada de página. Tudo se alterava: o jeito de dar aula (com Marilena Chauí na vanguarda), o jeito de se educar (com a volta de Paulo Freire), o jeito de se pensar a justiça (a Constituinte era tema central em bares descolados onde artistas esbarravam em estudantes e políticos), o jeito de se pensar e fazer arte (você entrava em qualquer ateliê ou ensaio de grupos experimentais de música à luz do dia ou entrava na casa de cineastas sem bater, apinhadas de gente como uma grande, democrática e confusa república de estudantes), o jeito de se discutir (com debates sobre sexualidade nos auditórios do Hospital das Clínicas ou no “Pátio da Cruz” da PUC-SP), o jeito de se fazer música (ouvindo a obrigatória coluna de Maurício Kubrusly sobre a nova música paulistana, do Premeditando o Breque, do Grupo Rumo ou do experimentalismo de Arrigo Barnabé). Era ousadia pura.

Na política, nada era mais novo que a greve dos metalúrgicos. E, tinha Lula. Lula tinha ironia e deboche. Mas, desde aquele momento, Lula não era dono de sua imagem. Era interpretado. O primeiro libelo do Partido dos Trabalhadores foi um artigo de Francisco Weffort publicado na Folha de S.Paulo. Lembro vagamente do conteúdo, embora recorde com facilidade do impacto que me causou. Ele dizia sobre um momento marcante e definitivo da política nacional, quando os trabalhadores entravam pela porta da frente. Não eram objeto de discursos de lideranças de classe média, mesmo as mais bem intencionadas, mas eram donos de seus próprios discursos. O artigo discorria sobre uma meia-verdade. E ele era a prova da outra parte que não dizia. Weffort era sociólogo reconhecido. Havia escrito uma tese famosa sobre uma greve espetacular que havia ocorrido em plena ditadura militar. Havia criticado duramente o populismo trabalhista. Era um intérprete. Foi um dos intérpretes de Lula. Diziam que ele escrevia alguns dos discursos de Lula, após a fundação do PT, e cometia alguns erros gramaticais para manter um tom de originalidade. Trabalhei com Weffort, anos mais tarde, mas nunca tive coragem de perguntar se este boato tinha sentido. Imagino que, mesmo se tivesse, ele negaria.

O fato é que o movimento libertário do final dos anos 1970 – e que invadiria toda a década seguinte até o ápice da constituinte de 1987 ou das eleições de 1989 – não foi um desenrolar de acontecimentos, mas uma interpretação de toda uma geração sobre o presente que apontava para um futuro distinto. Aqui é o marco de minha geração. Ao menos, parte dela que mergulhou nesta construção do futuro. O que ocorre agora, não é construção de um futuro, mas a destruição deste potencial. Explico: minha geração sentia que tudo estava para ser construído. Não era reconstrução, mas construção. Algo novo, não uma reforma. E, por este motivo, reinterpretava e interpretava tudo o que ocorria. Os acontecimentos tinham que ter um sentido, se encaixar nesta tarefa empolgante e coletiva de construir um país. Mergulhamos, de cabeça.

O tom destoante, que se destacaria a partir de meados dos anos 1990, era José Dirceu e as centenas de ativistas que o seguiram. Diria que era a faceta racional no interior de um movimento passional. A reinterpretação do Brasil – que enquadrava em perspectiva a figura de Lula, sempre controversa – era marcada pelas pulsões libertárias. Pulsão é uma espécie de catarse, um jorro de desejo, uma explosão de sentimentos e sentidos que dão cor à vida. Era assim que o petismo – apenas a ponta do iceberg das mudanças que uma geração promovia – reinterpretava todo racionalismo da esquerda dos anos anteriores. Reinterpretava as intenções tímidas do MDB, a linha justa e o amplo arco de alianças promovido pelo PCB, o populismo que sequestrava o protagonismo dos trabalhadores dirigido pelo PTB ou pelo brizolismo. Na política, falava-se do protagonismo dos trabalhadores, sem intérpretes, mas que eram interpretados por jovens, pesquisadores e jornalistas. Lula era o artista que criava o “efeito stand up”, aquela tirada surpreendente para falar sobre algo que já sentíamos, mas que não tinha sido racionalizada em palavras. Lula não era o que ele pensava ser. Era nosso intérprete. O intérprete de uma geração. Um intérprete criado por nós.

O que os juízes de ontem não parecem se dar conta é que não julgavam Lula. Nem sei quais eram suas intenções e isto pouco importa. Mas eles julgaram todo um movimento libertário que começou a ser deformado na segunda metade dos anos 1990 pelo velho e carcomido racionalismo de parte da esquerda que havia sido criticada pelos movimentos libertários de 1980.

O final do jorro da década libertária do Brasil já aparecia no final dos anos 1990. Era como um gosto amargo na boca depois de uma ressaca. Mas, como uma ressaca, basta um comprimido e muita água para se ter a certeza que logo tudo voltará ao normal. Nem sempre volta. A vitória de Lula não era mais a vitória dos libertários dos anos 1980. Era algo mais racionalizado e enquadrado em esquemas mentais, em discursos fabricados em gabinetes fechados. A vitória de Lula foi programada por quem queria interpretar a sociedade. O inverso do que ocorrera duas décadas antes. Nós, os da rua, tínhamos perdido o protagonismo da mudança, mais uma vez. Mas, mesmo assim, o “artista que sintetizava o que sentíamos” tinha chegado ao poder. Seu ápice era uma espécie de prêmio de consolação do que, um dia, imaginávamos ser o futuro. Não era aquele futuro radiante, mas era como se um velho conhecido, já com rugas e voz pastosa e grave, tivesse conseguido chegar lá. Não exatamente nos representando ou representando aquele momento espetacular em que sentíamos que estávamos construindo o futuro. Era mais adequação ao presente.

O governo Lula cometeu vários erros em nome do racionalismo, mas cometeu vários acertos. Para minha geração, tenho a impressão, o maior acerto foi combater a pobreza e a fome. Não tenho receio de dizer que era apenas um dos pontos de pauta que criavam uma identidade no passado. Mas, ao menos um, Lula e o lulismo haviam conseguido cumprir. Para muitos, já bastava, dava sentido ao passado. Para outros, não bastava, mas justificava a crença que tínhamos na mudança em algum ponto do futuro.

Pois bem, foi este futuro e esta geração que pensava poder construir o futuro que foi julgado no dia de ontem. Viramos a página de nossa história. Não para a frente, mas para trás. Voltamos décadas. E, o mais importante, não viramos a página pela vontade das ruas, dos jovens, dos artistas, dos crentes. A página foi virada por quem existe para manutenção da ordem vigente. E, como afirmei, uma ordem construída pelo racionalismo que procurou nos interpretar e nos conduzir.

Deixamos de ser protagonistas. De vez. E é este gosto amargo que fica na boca. Não se trata de Lula. Trata-se de confiarmos na possibilidade do futuro ser construído por nós.

ABC une.org .br

Rudá Ricci é um cientista político formado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) na década de 80. Mestre em Representação Sindical no Brasil pela Unicamp e Doutor em Ciências Sociais pela mesma instituição. Diretor-geral do Instituto Cultiva em Minas Gerais.

Fonte desta matéria: Portal Fórum

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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