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CONY: DA SALVAÇÃO DA PÁTRIA

CONY: DA SALVAÇÃO DA PÁTRIA

Da salvação da pátria

Posto em sossego por uma cirurgia e suas complicações, eis que o sossego subitamente se transforma em desassossego: minha filha surge esbaforida dizendo que há revolução na rua

Por Carlos Heitor Cony

Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro/RJ,

Apesar da ordem médica, decido interromper o sossego e assuntar: ali no Posto 6, segundo me afirmam, há briga e morte. Confiando estupidamente no patriotismo e nos sadios princípios que norteiam as nossas gloriosas Forças Armadas, lá vou eu, trôpego e atordoado, ver o e a que ali, em minhas barbas, está sendo feita.

E vejo. Vejo um heroico general, à paisana, comandar alguns rapazes naquilo que mais tarde o repórter da TV-Rio chamou de “gloriosa barricada”. Os rapazes arrancam bancos e árvores. Impedem o cruzamento da Avenida Atlântica com a Rua Joaquim Nabuco. Mas o general destina-se à missão mais importante e gloriosa: apanha dois paralelepípedos e concentra-se na brava façanha de colocar um em cima do outro.

Estou impossibilitado de ajudar os gloriosos herdeiros de Caxias, mas vendo o general em tarefa aparentemente tão insignificante, chego-me a ele e antes de oferecer meus préstimos patrióticos, pergunto para que servem aqueles paralelepípedos tão sabiamente colocados um sobre o outro.

– General, para que é isto?

O intrépido soldado não se dignou olhar-me. Rosna, modestamente:

– Isso é para impedir os tanques do I Exército!

Apesar de oficial da Reserva – ou talvez por isso mesmo – sempre nutri profunda e inarredável ignorância em assuntos militares. Acreditava, até então, que dificilmente se deteria todo um Exército com dois paralelepípedos ali na esquina da rua onde moro. Não digo nem pergunto mais nada. Retiro-me à minha estúpida ignorância.

Qual não é meu pasmo quando, dali a pouco, em companhia do bardo Carlos Drummond de Andrade, que descera à rua para saber o que se passava, ouço pelo rádio que os dois paralelepípedos do general foram eficazes: o I Exército, em sabendo que havia tão sólida , desistiu do vexame: aderiu aos que se chamavam de rebeldes.

Nessa altura, há confusão na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, pois ninguém sabe ao certo o que significa “aderir aos rebeldes”. A confusão é rápida. Não há rebeldes e todos, rebeldes ou não, aderem, que a natural tendência da humana espécie é aderir.

Os rapazes de Copacabana, belos espécimes de nossa sadia juventude, bem nutridos, bem fumados, bem motorizados, erguem o general em triunfo. Vejo o bravo cabo de passar em glória sobre minha cabeça.

Olho o chão. Por acaso ou não, os dois paralelepípedos lá estão, intatos, invencidos, um em cima do outro. Vou lá perto, com a ponta do sapato tento derrubá-los. É coisa relativamente fácil.

Das janelas, cai papel picado. Senhoras pias exibem seus pios e alvacentos lençóis, em sinal de vitória. Um cadillac conversível para perto do “Six”1 e surge uma bandeira nacional. Cantam o Hino também Nacional e declaram todos que a Pátria está salva.

Minha filha, ao meu lado, exige uma explicação para aquilo tudo.

– É , papai?

– Não.

– É campeonato do mundo?

– Também não.

Ela fica sem saber o que é. E eu também fico. Recolho-me ao sossego e sinto na boca um gosto azedo de covardia.
(2-4-1964)

Fonte: Scielo

Carlos Heitor Cony

Quinto ocupante da Cadeira nº 3, eleito em 23 de março de 2000, na sucessão de Herberto Sales e recebido em 31 de maio de 2000 pelo acadêmico Arnaldo Niskier.

Carlos Heitor Cony nasceu no Rio de Janeiro em 14 de março de 1926 e faleceu em 05 de janeiro de 2018, na mesma cidade. Filho do jornalista Ernesto Cony Filho e de Julieta Moraes Cony. Casado com Beatriz Lajta. Tem três filhos: Regina, Verônica e André. Fez Humanidades e o curso de Filosofia no Seminário Arquidiocesano de São José, no Rio Comprido. 

CONY: DA SALVAÇÃO DA PÁTRIA
Foto: Reprodução/Internet

Em 1952 é redator da Rádio Jornal do Brasil. De 1958 a 1960 é um dos jovens escritores que colaboram no SDJB (Suplemento Dominical do Jornal do Brasil), com contos, ensaios, traduções. Em 1961 começa a trabalhar no Correio da Manhã, do qual foi redator, cronista, editorialista e editor.  Com a revolução de 1964 é preso várias vezes e passa um período na Europa e em Cuba. Numa das prisões (em 1965), teve como companheiros, entre outros, Flávio Rangel, Glauber Rocha, Antonio Callado, Mário Carneiro, Jayme Azevedo Rodrigues, Márcio Moreira Alves, Thiago de Mello e Joaquim de Andrade.

Colabora por mais de 30 anos na revista Manchete e dirigiu Fatos & FotosDesfileEle Ela. De 1985 a 1990, foi diretor de Teledramaturgia da Rede Manchete, produzindo e escrevendo sinopses das novelas A Marquesa de SantosD. BejaKananga do Japão. Em 1993 substitui a Otto Lara Resende na crônica diária do jornal Folha de S. Paulo, do qual é membro do Conselho Editorial. É comentarista diário da CBN, participando do Grande Jornal com o programa “Liberdade de Expressão”.

Ganha duas vezes o Prêmio Manuel Antônio de Almeida, com os romances A Verdade de Cada Dia, em 1957, e Tijolo de , em 1958.

Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra, em 1996.

Prêmio Jabuti de 1996, da Câmara Brasileira do , pelo romance Quase .

Prêmio Nacional Nestlé de Literatura de 1997, pelo romance O Piano e a Orquestra.

Prêmio Jabuti de 1997, pelo romance A Casa do Poeta Trágico.

Prêmio Jabuti 2000, concedido ao Romance sem Palavras.

Os romances Quase Memória e A Casa do Poeta Trágico ganharam o Prêmio “Livro do Ano”, em 1996 e 1997, conferido pela Câmara Brasileira do Livro.

Recebeu do governo francês a Ordre des Arts et des Lettres (1998 – Paris).

Grande Prêmio da Cidade do Rio de janeiro – 2014 – Academia Carioca de Letras

Fonte: Academia Brasileira de Letras

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

revista 119

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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