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CORA E IÊDA: UM ENCONTRO NO INFINITO

CORA E IÊDA: UM ENCONTRO NO INFINITO

Na valsa da poesia goiana, o bailado vinha dançante pelo eu-lírico feminino e estremecedor de coronéis.

Por Arthur Wentz e Silva, da Revista Xapuri

É certo que um dos encontros mais belos de toda a poesia – tal como Virgílio guiando Dante pela travessia da Divina Comédia – foi Cora e Iêda no infinito. É fato, corações encharcados de poesia e mentes pulsantes de liberdade hão de convencionar a estética de um novo jeito de pensar o lugar onde vivemos. Adentrando profundamente na produção poética de Vilas-Bôas e Coralina, percebemos que existe um universo de possibilidades e encontros de textos e indivíduos.

Antonio Candido, ao pensar a estrutura literária do Brasil, jamais seria capaz de pronunciar a ressurreição do sufrágio e da resistência de Cora em Iêda, nossa saudosa cerratense. Digo isso porque o fenômeno é muito além de literário, cultural, biográfico ou, até mesmo, filosófico. Trata-se de natureza. É algo traçado pela beleza dos encontros, pela convergência natural. A delicadeza dos encontros – com audácia – insisto ser parte da prosaica historiográfica de Iêda. Para a Xapuri, ela descreveu:

Sua poesia [Cora Coralina] traz a força e a delicadeza das coisas naturais. Cora se intitula “cabocla velha” em Todas as Vidas. Por essa velhice passa a transcendência da vida. O verso serve de ponte para que nos lancemos a um inesgotável e antigo questionamento. Afinal… Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos?

Adianto ao leitor que, apesar da citação ao renomado e necessário crítico literário, não faço jus ao mérito de elaborar uma posição ensaísta sobre o encontro de Cora e Iêda. Minha relação com ambas advém de um lugar muito íntimo. Cora me deu resistência para enfrentar a diáspora interior-capital. Iêda me deu coragem para assumir as rédeas da escrita. Para ser criativo e ousado e estremecer os sistemas com uma escrita tipicamente latino-americana, com nossas escolhas, com nosso DNA.

Cora se foi em abril de 1985. Partiu para a viagem deixando sonhos, bênçãos e memórias. Memórias do Cerrado, dos estreitos becos goianos, como a estrutura de sua vegetação. Em suas palavras, Iêda falou sobre a partida de sua mestra em uma linguagem que somente ela era capaz de desfrutar:

Um dia Cora Coralina parte,
Mas não como chegou.
Não vai sozinha.
Leva gloriosa soma
De tudo que viveu
E deixa
Escritos, livros,
Conselhos, vizinhos…

Assim como partiu Cora, Iêda embarcou para o infinito. Em abril. O mesmo abril que nos levou Cora. Desta vez, em 2022. Tempos sombrios no Brasil. Me lembro da tristeza, da partida e da saudade. Encontros feitos via letras, imagens adeptas ao sonho de um país livre de coronéis “donos de tudo” – homens cruéis destruidores de biodiversidade. A partida de Iêda para o infinito também marcou um tempo de reflexão sobre nossa literatura. Onde estaria o Cerrado nas muitas páginas de teoria literária? Onde estaria nosso povo, trajado de caipirês? Onde estaria o cheiro do arroz tingido pelo amarelo do pequi? Onde estaria o canto da seriema indicando o fim do território?

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Em publicação, Ieda posta foto na casa de Cora com os dizeres: “aqui bebo na fonte pura das boas energias”.

Não gosto de elencar as coisas da vida como “coincidências”. Me parece reduzir o trabalho do destino. De onde eu venho, as coisas são realizadas pela pulsão do ecossistema. A vida só acontece por intermédio da vegetação, da poesia, do relevo e de tantas outras características que nos sustentam.

Na geopoesia do Cerrado, termo completamente coralino, ambas destacaram-se por ampliar a convicção deste lugar afetivo, pintado de realidades, inquietudes, vivências, amores, desatinos, revoltas e conquistas deste nosso lugar. Cora, em Becos de Goiás (1965), descreveu o estado como:

Becos da minha terra…
Amo tua paisagem triste, ausente e suja.
Teu ar sombrio. Tua velha umidade andrajosa.
Teu lodo negro, esverdeado, escorregadio.
E a réstia de sol que ao meio-dia desce fugidia,
e semeias polmes dourados no teu lixo pobre,
calçando de ouro a sandália velha, jogada no monturo. (…)

Nas “(…) réstias de sol que ao meio-dia desce” fez-se a iluminação dos caminhos rebeldes de Iêda. Assim, fazer justiça social com palavras ficou a práxis mais nobre de sua atuação política. Resistir em palavras é ser sútil, aguerrido e corajoso o suficiente para tremer o sistema. Fazer coragem. Coragem de verdade. Coragem com “C” de Cora é o objetivo de Vilas-Bôas em seus diversos escritos no mundo.

Iêda não viajou sozinha. Cerratense acompanha cerratense. Poeta acompanha poeta. Assim, Cora fez presença em cada parte de sua passagem que nos resta ao mistério. Fato que qualquer um daria o que tivesse para conseguir ouvir essa prosa. Cora doceira remenda o açúcar enquanto Iêda lhe escuta um poema. “Mais um?”. “Tua vez”. Iêda recita o mais belo e cortante jogo de linguagens de teu caderno interior.

Empoderamento e resistência são termos muito alinhados à prática textual de ambas. Enquanto Iêda disputava a narrativa com os poderosos e peitava os coronéis, Cora se mantinha na linha de frente do resgate das desigualdades estruturais de seu tempo. Nas trincheiras da vida, enquanto Iêda defendia com garras os cantos deste Cerrado, Cora fazia o mesmo. Na mesma práxis: a poesia. Com um olhar apaixonado, sem nunca deixar de lado a crítica, Iêda escreveu:

Os poemas audaciosos de Cora Coralina desafiaram os preceitos e a conduta moral de seu tempo, servindo como alerta, farol, guia e arma contra o falso moralismo vigente.

Em busca de um palco que honrasse o legado de Cora, Iêda fez da Revista Xapuri um espaço para eternizar a poesia rebelde da doceira. Um dos muitos textos do acervo, menciona a rebeldia e o entusiasmo das mulheres nas letras. “Cora Coralina: doce, rebelde, revolucionária”, texto perseverante de Vilas-Boas. Aqui nos debruçamos em seu amor constante pela linguagem de Cora, linguagem que fez casa.

Nesse sentido a linguagem de Cora é a sua casa. Nela, a linguagem entra e se sente à vontade para colocar as alpercatas e se espalhar na velha cadeira de balanço que, de sentinela, vigia a passagem do corredor sempre aberto para os aposentos internos da Casa Velha da Ponte. Estão imbricadas: a linguagem, Cora e a Casa. E dessa tríade nasce a mais pura das poesias.

A maestria da literatura fica mais leve quando dedicada sobre quem amamos. Não há como não amar a doceira poeta, cujos retalhos da vida impuseram uma narrativa de construção de um mundo novo. Cora é símbolo da resistência nos arredores deste mundo complexo. Tal como sua eternidade literária, Iêda foi a poesia mais corajosa retorcida nos galhos deste nosso bioma.

No infinito, Cora e Iêda acompanham os passos revolucionários da juventude. Enviando-lhes aspirações para suas poéticas de rua e batalhas de palavras. Lendo o mundo de modo voraz, num encontro cheirando a café e bolo de milho quentinho, façamos nós a revolução. O Cerrado, bioma fincado de literatura, não pode jamais ser afastado de suas estórias e cantigas. Na moda da viola, no raiar do sol, no tronco retorcido e em cada parte dessa natureza existe um clamor pela luta dos nossos. Luta pela não desertificação de nosso solo, pela não poluição de nossas águas e pela não derrubada de nossas árvores. Esse clamor advém da ancestralidade poética, advém da democracia. Esta, substantivo feminino, oriundo do encontro poético de Cora e Iêda no infinito nos mantém de pé, livres a sonhar e prontos para conquistar.

Quem veio antes de nós, merece todas as reverências. Ainda mais em termos de literatura. É preciso lembrar que o Cerrado que queremos, livres de devastações, só será possível baseado em quem nos antecede e sua força ancestral. Em termos de prosa e poesia: que o discurso que me antecede seja adaptado, mas jamais esquecido. Cora e Iêda, presentes!

NOTA: Sempre que Iêda – minha mentora de escrita – se referia aos textos que jovialmente delineava, com vocábulo básico e cheio de figuras de linguagens, ela citava um trecho doce e forte de Cora, que me motivou nas jornadas de luta. “Acredito nos jovens à procura de caminhos novos, abrindo espaços largos na vida”, de Eu creio, ali no Vintém de cobre: meias confissões de Aninha (1997) virou o ressoar de nossa juventude. Juventude que esperneia em troca de vida e liberdade. Vida e liberdade a la Cora e Iêda.

REFERÊNCIAS:

CORA CORALINA. Vintém de cobre: Meias confissões de Aninha. São Paulo: Global Editora, 1997.

VILAS-BÔAS, Iêda. A História de Aninha (que virou Cora Coralina) – La Historia de Anita (que volvió Cora Coralina). 1. ed. Huancayo – Perú: Obregón Impresores, 2013. 34 p.

VILAS-BOAS, Iêda. Cora Coralina: doce, rebelde, revolucionária. Disponível em: https://xapuri.info/cora-coralina-doce-rebelde-revolucionaria/. Acesso em: 25/04/2024.

VILAS-BÔAS, Iêda. Tessituras eróticas na obra de Cora Coralina: Encontros e Confrontos entre Eros e Tânatos. In: HISPANISTA. ISSN 1676-9058 (español) ISSN 1676-904X (portugués). 2013.

Imagens retiradas do Instagram e Facebook de IVB

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Arthur Wentz e Silva é estudante de Letras – Língua Portuguesa e Respectiva Literatura (UnB) e compõe a Redação da Revista Xapuri.
 
 
 
 

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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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