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DAVI KOPENAWA: “A ÁRVORE QUE NÃO ENVELHECE”

Davi Kopenawa: A árvore que não envelhece

“If I tell you stories all the time, I do not disappear”.

(Patricia Portela – Scheherazade Flatland)

Por José Ribamar Bessa Freire/Taquiprati

Essa árvore lembra o tronco da Pore hi. Quando começa a envelhecer, troca de casca e fica nova outra vez. Ela descama pra se renovar. Por isso, não apodrece. Tem gente que é assim. Alguns pajés também nunca envelhecem, porque trocam de pele e se revigoram.

Era 1º de maio. Estávamos no Campo de São Bento, em Niterói, onde na noite anterior havia proferido a conferência “Ipa Theã Oni: Flecha para tocar o coração da sociedade não indígena”. Agora, no parque, ele observa cada detalhe daquela árvore majestosa – pau-ferro, segundo o jardineiro uma planta medicinal – que parecia a Pore hi dos Yanomami (Eugenia Flavescens ou Goiabinha), não pelo tamanho, mas pelo tronco duro e tortuoso, cuja casca se descola e se renova continuamente.

Carros trafegam nas ruas em volta do parque cercado por blocos de concreto dos edifícios. Longe de sua aldeiaaldeia no sopé da “Montanha do Vento” (Watoriki), rio Demini, lá na fronteira com a Venezuela, Davi lê cada detalhe daquela árvore urbana na altivez dos seus vinte metros. Com olhar clínico, circula em volta dela, com quem conversa. Olha pra cima contemplando, silencioso, a copa onde galhos e folhas disputam a luz do sol. Apalpa e abraça o tronco liso cor de mármore, manchado como uma vaca malhada, mas aquele abraço afetuoso só enlaça a metade da base do tronco de três metros de diâmetro.

Foi aí que ele notou uma lesão no tronco descamado, decorrente de recente tentativa de assalto no parque. A árvore, como tantos outros seres inocentes no Rio, foi ferida por uma bala perdida. Ela passa bem, mas é mais um indício de que o céu pode desabar, como Davi já havia profetizado na abertura de seu livro “A queda do céu – Palavras de um xamã Yanomami”:

 

– “A floresta está viva. Só vai morrer se os brancos insistirem em destruí-la. Se conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da terra, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar e as pedras vão rachar no calor. A terra ressecada ficará vazia e silenciosa. Os espíritos xapiri, que descem das para brincar na floresta em seus espelhos, fugirão para muito longe. Seus pais, os xamãs, não poderão mais chamá-los e fazê-los dançar para nos proteger”.

“Os xamãs – ele prossegue – não serão capazes de espantar as fumaças de epidemia que nos devoram. Não conseguirão mais conter os seres maléficos, que transformarão a floresta num caos. Então morreremos, um atrás do outro, tanto os brancos quanto nós. Todos os xamãs vão acabar morrendo. Quando não houver mais nenhum deles vivos para sustentar o céu, ele vai desabar”.

A árvore ferida

Esse foi o tema central de sua conferência de encerramento do evento organizado pelo Centro de Artes UFF “Brasil: a margem 2019 – Teko Porã Cosmovisão e Expressividades Indígenas”, com exposições de artistas indígenas, filmes, encenações teatrais, minicursos, rodas de conversa, shows, oficinas, feira de artesanato e gastronomia. A “balbúrdia” da ciência e da arte durou uma semana e abriu esperanças no auditório lotado por quem chegou cedo. Porém – ai, porém – o corte de 30% das verbas da compromete sua reedição. Se não resistirmos, o céu começará a desabar.

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O céu desaba

Muitas perguntas prolongaram por mais de três horas um encontro, no qual o conferencista foi aplaudido de pé. Uma delas feitas por alguém que indagou sobre o conteúdo do livro:

– “Leia que você vai saber” – respondeu bem humorado o autor, que depois autografou dezenas de exemplares.

Editado em 2015 em português, são 729 páginas com relatos de Kopenawa em língua Yanomami, recolhidos e traduzidos pelo antropólogo Bruce Albert com prefácio magistral de Eduardo Viveiros de Castro.  Trata-se de uma etnobiografia dividida em três partes: 1) “Devir outro” conta como Davi escutou os antigos xamãs que o iniciaram; 2) “A fumaça do metal” relata o contato dos Yanomami com os Napë (os brancos); 3) “A queda do céu” descreve a trajetória de Davi no mundo branco para denunciar a devastação da floresta e de seu , profetizando um futuro funesto para o planeta.

Muitos temas foram abordados na conferência de Davi Kopenawa, entre eles o desastre ecológico, o aquecimento global, o garimpo, os massacres dos Yanomami, Krenak, e Waimiri-Atroari na época da ditadura, o , a proposta de uma universidade indígena, os ataques contra a Secretária Especial de Saúde Indígena (SESAI) e o de municipalização do governo Bolsonaro, que “quer nos matar, mas não é só com tiro, é de doenças, como já mataram minha família com o sarampo”.

O povo da mercadoria

auditorio%202Diante da pergunta de um mestrando sobre os sonhos, o sábio Davi Kopenawa comparou as aspirações individuais da sociedade de consumo com a utopia de um mundo melhor para todos:

– O povo da mercadoria dorme muito, mas só sonha com ele mesmo. Sonha em comprar carro, casa, roupas, gasolina, tudo. Seu sonho é consumir, numa relação doentia com a terra, por isso ele mata a floresta, que não conhece, mas está viva e daí vem sua beleza. Se a floresta morre, nós e os napë morreremos com ela.  Os brancos talvez não ouçam seus lamentos, mas ela sente dor, como os humanos. Suas grandes árvores gemem quando caem e ela chora de sofrimento quando é queimada. Ela tem coração e respira.  Acho que vocês deveriam sonhar a terra.

Para Davi, essa é a razão pela qual o Napë não sonha tão longe quanto os Yanomami, cujo sonho é diferente, como o voo do gavião que voa alto, porque sabe que “foi Omama que criou a terra e a floresta, o vento que agita suas folhas e os rios cujas águas bebemos, foi ele que nos deu a vida e nos fez muitos. Foi ele que criou os xapiri para nos proteger das doenças e da morte.

Do auditório, Taily Terena perguntou o que Davi diria para os estudantes indígenas que vivem na cidade.

– Eu perguntaria: a comunidade autorizou vocês? É um projeto individual ou coletivo? A escola do governo é boa, é importante aprender o mundo do branco, como fez Joênia Wapixana, advogada, que luta por nós. A comunidade espera que quem se formou, advogado, médico, dentista, professor, volte pra ajudar. Vocês estão aqui no Rio de Janeiro e alguns não voltam. A minhoca come a dessas pessoas que se vendem. É assim que funciona o mundo dos brancos. Tem que ter cuidado, os políticos querem usar a escola para enganar a gente.

Outra pergunta foi sobre as andanças de Davi Kopenawa, que já viajou pela Europa, França, Bahia, pelo mundo inteiro. Com bastante humor – ele é um tremendo gozador – contou que foi à Grécia com Aylton Krenak e que Atenas é uma cidade bonita, mas infelizmente tem muita coisa quebrada, muitas ruínas.

O narrador vive

No dia seguinte, chegando em casa acompanhado de José Ignacio Gomeza Gómez, o Iñaki Charrua, Davi viu algumas peças de artesanato. Tocou nas tramas dos tecidos de fibra de coco que enfeitavam a mesa e nas texturas das cabaças andinas, passou as mãos por esses e outros objetos, como que decodificando como foram feitos, seus matérias, suas técnicas.

Depois, fez um relato performático, quando se recostou na cadeira, quase se deitando, jogou a cabeça para trás, abriu os braços para as laterais, ele era a água que jorrava plena e que refletia a lua e o sol em risos que o atravessavam. Com uma das mãos fazia uma linha no meio do corpo, perpendicular aos braços abertos e ficou por algum nessa posição, contando, repetindo, respirando, fazendo do seu corpo a imagem que queria descrever. Se Walter Benjamin assistisse o que eu vi e ouvi diria que o narrador ressuscitou. Ou então nunca morreu.

Davi Kopenawa, grande narrador, pai de seis filhos, avô de oito netos, fundador da Associação Hutukara que representa os Yanomami, reconhecido internacionalmente, ameaçado de morte desde 2014, acumula saberes milenares e a força de uma centenária, com sua juventude de sessenta e poucos anos. Com várias flechadas, tocou o coração não indígena. O xamã Davi Kopenawa, como a pore hi, não envelhece nunca. Resiste.

Fonte:Taquiprati.com

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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