Dom Moacyr: Chico Mendes brigava para ficar na floresta
Dom Moacyr Grecchi é agora ser encantado. Ele embarcou rumos aos mistérios do infinito na tarde do 17 de junho de 2019, aos 83 anos, em Porto Velho, Rondônia. Em sua memória, reproduzimos um pouco do muito que aprendemos com este ser humano que passou pelos espaços físicos deste mundo a serviço da bondade, da luta e da resistência….
“O Chico Mendes começou na luta como todo seringueiro, brigando pela posse, para permanecer na terra, para ficar na floresta. Foram um pouco as circunstâncias que fizeram dele essa liderança tão excepcional. Além do preparo ideológico, ele tinha aquele jeito natural de falar e de se entender com todo mundo.”
Dom Moacyr Grecchi
Depoimento à jornalista Zezé Weiss, no ano de 2008:
Cheguei ao Acre em 1971, para cuidar Prelazia do Acre e Purus, hoje Diocese de Rio Branco, justo no momento em que começava a reação dos seringueiros e posseiros para ficar nas suas terras. Sou natural de Santa Catarina, mas nessa época eu era o superior da ordem religiosa dos Servos de Maria, com sede em São Paulo, e era também o provincial responsável pelo Acre. Com a morte do bispo, o Papa me indicou para ser o novo bispo da Prelazia. Sorte minha, porque foi o povo do Acre que me ensinou a ser cristão, a ser bispo, a me comprometer com o lado justo. Esse povo que eu hoje considero como a minha própria família.
O Acre me quer muito e me honra com muitas homenagens. Tem um instituto do governo com o meu nome, tem também um povoado, uma vila, um lugar do povo chamado Vila Dom Moacyr, onde acontece uma história engraçada, porque na placa do ônibus que vai para essa vila está escrito só Dom Moacyr. Então o povo fica falando: cadê o Dom Moacyr? o Dom Moacyr já vem? o Dom Moacyr já passou? E hoje deve estar diferente, mas no começo muita gente ficava em dúvida se era o bispo ou o ônibus que estava demorando, que estava vindo, ou que estava voltando. Essa é apenas uma das muitas histórias da minha amizade e da minha aprendizagem com o povo do Acre.
Lembro-me da vez em que um grupo de mães foi me pedir para visitar um Seringal perto de Rio Branco, o Ipiranga, onde o dono estava sendo denunciado por cometer atos de violência contra os seus filhos e os seus maridos. As mães, os parentes, vieram três vezes à minha casa pedir socorro, e eu nunca ia. Até que, na terceira visita deles, um dos homens mais velhos, um senhor de mais de 80 anos, olhou bem pra mim e disse: Dom Moacyr, o senhor é o bispo, o senhor é a autoridade, senhor é quem sabe, mas eu sou mais velho, e se eu fosse o senhor eu já tinha ido lá conferir se o que estamos falando é verdade ou não. Eu pra não ficar de frouxo fui, e essa visita mudou muito a minha vida.
Em Rio Branco, tomei como missão organizar as Comunidades Eclesiais de Base por toda a Prelazia. As CEBs eram células de evangelização, de oração e de fraternidade, mas eram também onde se formava a consciência para a organização sindical e, um pouco mais tarde, para a formação do Partido dos Trabalhadores. Foram as CEBs que prepararam as bases do movimento social para a construção dos sindicatos e do Partido. Com o tempo, em todo lugar da Prelazia havia uma CEB. Em Assis Brasil, as CEBs eram tão fortes que esse acabou sendo o único lugar onde o Lula nunca perdeu uma eleição. Nos tempos difíceis ele perdia no Brasil todo, mas em Assis Brasil o Lula sempre ganhou.
Com tudo isso a Igreja Católica acabou sendo uma espécie de útero materno para a gestação de um sindicalismo independente e lutador, cujos líderes depois formaram o PT. Alguns me diziam, mas Dom Moacyr, não pode, o senhor tem que ser um bispo de todos, o senhor não pode ser um bispo do PT. Em resposta, eu sempre dizia e digo que apenas prestava meu apoio às pessoas generosas que exerciam sua fé cristã lutando por paz e por justiça social. Eu entendia aquele povo pobre que fazia o PT para conquistar mais direitos, porque eles já tinham percebido que o sindicato só vai até certo ponto. E deu certo, porque até hoje o Acre tem um dos PTs mais bonitos do Brasil, um PT que conseguiu mudar o rosto do Acre, que foi capaz de chegar ao poder sem se afastar do povo e das lutas populares.
Assim que, quando chegou o João Maia para fundar os Sindicatos, o pessoal já estava preparado. Nesse tempo as reuniões do sindicato eram feitas sempre em ambiente de igreja, a polícia era corrupta até o osso, os políticos uns incapazes, e o Exército um bando de gente com medo do comunismo e da subversão, a maioria deles sem saber o que era isso, mas com medo. Era um tempo em que a violência contava com a total conivência das autoridades, em que a polícia era corrupta e vendida, e em que o Exército vivia apavorado. O João Maia é uma pessoa que não pode nunca ser esquecida, porque ele foi um homem corajoso que teve o valor de organizar os seringueiros dentro dessa conjuntura totalmente desfavorável.
O João Maia era um Delegado da CONTAG que veio ao Acre para fundar os sindicatos. Ele era um ex-seminarista alegre e brincalhão que gostava de falar em Latim comigo. Ele tinha uma marca, que era o diálogo com todos, e ele sempre me dizia: Dom Moacyr, aprende isso – o diálogo é a chave da sobrevivência nessa terra. Ele lutava por um sindicalismo independente, mas nem por isso deixava de conversar com o governador, com a polícia, com o Exército. Ele formou excelentes lideranças, fundou muitos sindicatos, era destemido e ousado. Foi dele a idéia criativa de prender os jagunços durante o Mutirão que os sindicatos fizeram em Boca do Acre. Junto com o João Maia estava sempre o Pedro Marques, advogado muito bom de luta, muito didático, que tinha um jeito muito especial de ensinar o Estado da Terra e o Código Civil para os seringueiros.
Eu me lembro do dia em que o João Maia me pediu para emprestar um salão da Igreja para fazer a assembléia de fundação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Branco. Como eu sabia que vinham muitos, como de fato chegaram mais de 1000 seringueiros e posseiros, eu acabei cedendo a própria Catedral. Do lado de dentro estavam os trabalhadores, e do lado de fora estava o Exército armado com escudos e metralhadoras, cercando os trabalhadores como se estivessem cercando bandidos. Como se os seringueiros não estivessem apenas lutando com compromisso e com fé para mudar um pouco o rumo das coisas que afetavam suas vidas. Era um tempo muito duro, com o Exército encima, sempre tentando intimidar.
Teve uma reunião na minha casa, do CPT com o CIMI, que o Exército tentou gravar. Uma freira muito esperta viu um gravador pequeninho na janela, e esse gravador era do Exército. Como eu era Presidente Nacional da CPT – passei oito anos da ditadura militar como presidente da CPT — o Mino Carta deu uma nota no jornal “A República” registrando o incidente.
Anos depois as denúncias de que eu vivia marcado para morrer se confirmaram. Muito doente, o Tufik Assmar, dono da Rede Globo no Acre, por uma necessidade de consciência mandou me chamar e disse – Dom Moacyr, o senhor é meu amigo, e eu não posso morrer sem que o senhor saiba que teve um momento em que um militar me visitou para informar que estavam se preparando para matar o senhor, e eu disse a ele que não, que nem pensar, que se matassem o senhor eu botava a boca no mundo, eu contava para o Brasil inteiro. E imagina que a Globo começou lá na minha casa, uma emissora muito pobre. Vinha a Copa com todo mundo querendo ver os jogos e o Assmar, que era um grande propriedade proprietário de terras, mas que estava começando no campo da comunicação, me pediu para instalar os seus equipamentos de baixa qualidade no quarto da minha casa, que era o ponto mais alto da cidade.
Esse foi um tempo em que cristãos e não cristãos – no Centro de Defesa dos Direitos Humanos tinha até um ateu confesso, e tinha o Abrahim Farhat, o nosso Llé, de origem libanesa, e em Xapuri tinha o Bacurau, um hanseniano que não tinha mão nem pé, totalmente dedicado, enfim, pessoas que se juntaram aos seringueiros e posseiros para lutar pela manutenção da terra. Foi o povo da igreja, o Nilson Mourão, um meninão que depois se tornou muito importante porque fazia a ligação da fé com o aspecto político, o Padre Paulino
e o Padre Pacífico, junto com os comunistas e com um advogado do INCRA chamado Juraci que fizeram o Catecismo da Terra, um folheto barato e simples, com apenas cinco perguntas e cinco respostas, mas que foi o primeiro instrumento de resistência dentro da floresta. Quem não sabia ler pregava na parede da casa e quando chegava um capataz dizendo – o senhor tem que sair, porque essa terra agora tem outro dono, a resposta sempre era: não senhor, eu não saio, o senhor veja aí o que meu direito está escrito no
Catecismo da Terra.
Quando conheci o Chico Mendes, ele era um participante das CEBS, mas sem grande fervor religioso. Algumas vezes ele acompanhava a mim e às irmãs nas visitas pastorais, outras vezes ele até rezava o terço conosco nas comunidades, mas o que ele queria mesmo era falar de política e de organização. Desde a primeira vez que o vi já estava claro que ele tinha uma certa formação. Depois ele mesmo me contou como foi alfabetizado e iniciado na política por uma certa pessoa que viveu na região. Mas como sindicalista era praticamente um desconhecido até ser eleito secretário do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia, durante a assembléia de fundação, em 1973, e ele só se tornou a principal liderança do movimento depois do assassinato do Wilson Pinheiro em 1980.
O Chico Mendes começou na luta como todo seringueiro, brigando pela posse, para permanecer na terra, para ficar na floresta. Foram um pouco as circunstâncias que fizeram dele essa liderança tão excepcional. Além do preparo ideológico, ele tinha aquele jeito natural de falar e de se entender com todo mundo. Em Xapuri nessa época tinham três padres, o padre José, o padre Otávio e o padre Cláudio. O padre José sempre foi contra ele, mas os padres Otávio e Cláudio eram seus amigos, sempre favoreceram o favoreceram. Mesmo assim, ele falava igual com os três, ele fazia questão de dialogar também com o padre José que não se engraçava com ele. Mas o Chico Mendes foi fruto também de um momento de sensibilidade ambiental pela qual o mundo estava passando.
No começo nem o Chico Mendes, nem ninguém falava de defesa da floresta como um todo. Nessa evolução para o aspecto ecológico, para levar o pensamento dos seringueiros para as pessoas de fora da floresta, o Chico Mendes contou com um apoio muito importante da Mary Allegretti. Eu nem sempre concordei com ela, mas para ser justo eu tenho que reconhecer que a Mary contribuiu muito para que o Chico Mendes se transformasse nesse símbolo de luta pacífica em defesa da Amazônia conhecido no mundo todo. Imediatamente depois da morte dele eu fui convidado para a Europa e na Itália eu quase não dava conta de tanta gente querendo saber mais sobre a luta dele.
Em Paris, participei de uma grande conferência pela paz, onde o Chico Mendes foi colocado junto com Desmond Tutu, Gandhi e Martin Luther King como um dos quatro grandes defensores da paz no mundo. E pensar que o Chico Mendes tantas vezes foi me ver, foi na minha casa dizer que estava para morrer, que se sentia muito ameaçado, que tinha certeza que não ia viver… E eu brincava com ele, dizia morre nada, Chico, esses cabras não tem coragem de te pegar. Mas ele começou a fuçar fundo, e acabou encontrando provas contra as pessoas que ameaçavam ele.
Um dia o Chico Mendes chegou lá em casa com uma carta precatória de prisão preventiva contra o Darli Alves, o mesmo que depois assumiu como mandante do assassinato dele. “Dom Moacyr, pra quem é que a gente entrega isso?” Eu fui com ele entregar a tal carta precatória para a Polícia Federal que, em vez de agir rápido, acabou demorando até que a coisa transpirou, chegou nos ouvidos
do Darli, e pouco tempo depois o Chico assassinado.
Hoje sou o Arcebispo da Diocese de Porto Velho, que tem 84.000 km2. Aqui também os povos das lutas têm muito carinho por mim, mas a organização popular ainda não cresceu tanto quanto cresceu no Acre. Aqui houve uma colonização heterogênea e só agora, dez anos depois da minha chegada, vejo as primeiras lideranças nascidas no Estado. Aqui temos pela frente uma dura caminhada, porque agora vêm as usinas hidrelétricas, e a Amazônia continua sendo tratada como colônia pelo resto do Brasil, que é menor do que a Amazônia. O resto do Brasil está acostumado a tirar tudo da Amazônia, e a não deixar nada.
Com as usinas do Madeira, está acontecendo o mesmo de sempre. Vão ser feitos 4.000 km de rede para levar toda a energia das usinas direto para o sul do Brasil, enquanto que nós aqui vamos continuar usando energia a óleo diesel para levar a luz até o Acre. Essa nova geração que vai ter que lutar muito para que a energia vinda da Amazônia ilumine pelo menos um pequeno pedaço da floresta. Só assim a energia tirada da água dos nossos grandes rios poderá evitar o triste destino da madeira, do boi e da soja, cuja exploração sempre destrói e sempre maltrata a Amazônia.
ANOTE AÍ:
Este texto do Dom Moacyr Grecchi é um depoimento feito à jornalista Zezé Weiss, no ano de 2008, para o livro “Vozes da Floresta”, edição esgotada. Editora Xapuri. À época, Dom Moacyr era o Arcebispo de Porto Velho, em Rondônia, cargo ao qual renunciou em novembro de 2011. Em matéria de 30/11/2011, o Estadão assim resumiu o perfil de Dom Moacyr: “Natural da cidade de Turvo (SC), d. Moacyr foi nomeado bispo por Paulo VI em 1972 e dirigiu a diocese de Rio Branco (AC) até 1998, quando foi promovido a arcebispo de Porto Velho. Trabalhando no Acre e em Rondônia, ele se destacou pela atuação em defesa dos indígenas, dos seringueiros e dos trabalhadores rurais. Denunciou a violência na região e lutou pela punição dos assassinos de Chico Mendes, que conheceu na militância das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base). Durante oito anos, d. Moacyr foi presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), cargo que ampliou sua projeção como um dos principais nomes da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Apesar de ter sofrido dois acidentes rodoviários graves, que limitaram suas atividades por vários meses, em 2001 e em 2004, o arcebispo recuperou-se e voltou à ativa. Viajava de canoa, às vezes de avião e frequentemente no lombo de um burrinho manso para visitar as comunidades de sua arquidiocese.” Foto: Agência de Notícias do Acre