Em decisão histórica, STF reconhece direito territorial dos povos indígenas do Parque Aripuanã

Em decisão histórica, STF reconhece direito territorial dos povos indígenas do Parque Aripuanã

Em decisão histórica, STF reconhece direito territorial dos povos indígenas do Parque Aripuanã

Na decisão a Corte ainda condenou o estado mato-grossense a arcar com despesas do processo. O voto destaca a presença tradicional e histórica dos indígenas na região…

Por Beatriz Drague Ramos/via OPAN

Depois de 34 anos, os indígenas dos povos Cinta Larga, Zoró (Pangyjej) e Suruí (Paiter), que vivem no Parque Indígena do Aripuanã, que envolve os municípios de Juína, em Mato Grosso (MT) e Vilhena, em Rondônia (RO), tiveram uma decisão favorável acerca do reconhecimento de seu território pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A sentença proferida em dezembro pela ministra Rosa Weber beneficia mais de 2 mil indígenas e responde à Ação Cível Originária (ACO) 365, protocolada em 1987. 

Na ação, o estado de Mato Grosso, governado na época por Julio Campos, alegava que as terras lhe pertenciam desde o final do século XIX, concedidas pela União na Constituição de 1891, e que por isso a ocupação indígena era irregular. 

Além disso, o governo argumentava que os indígenas foram “transferidos” para o local, nesse entendimento, as áreas foram “artificialmente” transformadas em , o que é chamado na ação originária de ocupação “manu militari“, tal argumento foi utilizado ainda em outras ações contra as demarcações da Funai no estado de MT, os casos são o do Parque do (ACO 362) e das reservas Paresi e Nambikwara (ACO 366), em ambas o estado mato-grossense foi derrotado.

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As terras indígenas envolvidas no processo / Figura: Laudo Antropológico: A Ocupação Indígena no Parque do Aripuanã e Terras Indígenas Contíguas

A União, na figura da , justifica que a ocupação indígena no local é tradicional e reconhecida desde antes da mencionada legislação constitucional. Ademais, a Constituição de 1988, em vigor, atesta que as terras ocupadas pelos indígenas devem ser a eles cedidas, pois pertencem ao ente federal. 

Diante disso, a ministra relatora da ação autorizou a realização perícias em novembro de 2014. A solicitação da perícia foi feita pela Subseção Judiciária de Juína, em 2015, o objetivo era verificar a ocupação dos povos na região. 

No documento, assinado pelo antropólogo João Dal Poz Neto em 2017, é evidenciada a presença de grupos indígenas em anos anteriores à ação, bem como anteriormente às demarcações, cujas homologações das TIs ali presentes se deram na vigência da Constituição Federal de 1988, exceto a TI Sete de Setembro, homologada pelo Decreto 88.867, de 17 de outubro de 1983. 

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Aldeia Quatorze de Abril na TI Roosevelt / Foto: Laudo Antropológico: A Ocupação Indígena no Parque do Aripuanã e Terras Indígenas Contíguas

Ainda assim, o Parque Indígena do Aripuanã já havia sido criado pelo decreto 64.860, de 23 de julho de 1969, a partir de evidências já identificadas antes sobre a ocupação tradicional desses povos na região.

Em seu voto, a ministra relatora Rosa Weber é enfática ao confirmar a ocupação tradicional indígena. “Com base em dados antropológicos e registros históricos, a perícia também descreveu atos de resistência daqueles povos para permanecerem na região, com relatos de massacres e invasões por seringalistas, garimpeiros e mineradores, bem como detalhou as expedições de pacificação promovidas pelo (então) Serviço de Proteção aos Índios (SPI). A induvidosa tradicionalidade indígena constatada na perícia contradiz o argumento do autor de que ditas terras teriam sido apenas ‘reservadas’ para a ocupação de determinados grupos que nelas, todavia, não teriam presença histórica”, salienta a magistrada.

Com isso, por unanimidade, os dez ministros do STF seguiram o voto da ministra e rejeitaram o pedido de indenização ao governo de Mato Grosso, que deverá pagar os valores dos honorários advocatícios à União.

A ancestralidade vivida pelos indígenas no Parque Indígena do Aripuanã foi lembrada pela liderança do Cinta-Larga, Nacoça Pio, 67 anos, e celebrada ao saber da decisão do STF. Pio, como é chamado por seus parentes, vive na Terra Indígena (TI) Roosevelt e também participou cedendo informações ao laudo pericial há cinco anos. 

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Nacoça Pio Cinta-Larga na Aldeia da Ponte, Parque do Aripuanã / Foto: Laudo Antropológico: A Ocupação Indígena no Parque do Aripuanã e Terras Indígenas Contíguas

Ele ressalta a importância do reconhecimento, uma vez que o processo demarcatório já foi concluído. “Nós já moramos aqui há muito tempo, já morreu muito índio aqui, então nós consideramos como nossa mesmo. Nós temos mais direito do que governo, então é muito bom que reconheçam a área.” Pio ainda lembra de histórias de pela terra na região, travadas contra invasores na década de 1980. “Já entraram na aldeia 14 de Abril sem nós sabermos e quando fomos ver já tinham muitos invasores, tinha uma fazenda grande e nós conseguimos tomar de volta, eu era jovem.”

Assim como Pio, o líder indígena Almir Narayamoga Suruí, 47 anos, contribuiu no laudo pericial, ele vive desde seu nascimento na TI Sete de Setembro em RO. Almir chama a atenção para o fato de que os povos que habitam o Parque do Aripuanã têm uma luta histórica de enfrentamento às alegações do estado de MT. “Com certeza essa decisão vai ser um instrumento muito importante para a preservação cultural e dos territórios dos povos do Aripuanã que querem fazer em seus territórios uma gestão responsável e planejada.”

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Líder indígena Almir Narayamoga Suruí / Foto: Arquivo Pessoal

Apesar de celebrar a decisão, o líder Suruí sublinha que os povos indígenas do Parque do  Aripuanã convivem até hoje com ameaças. “Estamos sofrendo ameaças de mineradoras motivadas pelo discurso do próprio presidente da República e apoiado por sua base tanto na Câmara Federal e no Senado, por meio do projeto de lei 490 que é inconstitucional e que pode liberar a mineração em terras indígenas e autorizar o desmatamento na região amazônica.”

Em campo: o indigenista

O antropólogo Rinaldo Sérgio Vieira Arruda produziu o laudo da perícia das reservas Nambikwára e Parecis. O documento é um dos resultados de uma ação semelhante (ACO 366) impetrada também pelo estado de Mato Grosso e vencida pela União em 2017, após decisão do STF. No caso do Parque do Aripuanã, o antropólogo destaca as semelhanças em ambas às ações que partiram da regularização fundiária feita pelo estado de Mato Grosso em 1987. “Em todas as ações o argumento é o mesmo, de que a Funai trouxe os indígenas lá para dentro. E o que a gente conseguiu provar é que não, na verdade a área toda é de ocupação permanente tradicional.”

A forma de ocupação indígena é diferente, por exemplo, de uma regularização do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), explica Rinaldo. “No Incra a pessoa faz uma casa naquele lugar e a casa vai ser para sempre ali, são lotes menores, já a maneira de ocupação indígena implica numa itinerância dentro de um território bem maior, então em cada período do ano eles vão explorar certos nichos e internos. Toda a forma de produção indígena dentro do território compõe os processos de maturação, ligados a cada estação do ano.”

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Associação Cinta-Larga em Juína, MT / Foto: Laudo Antropológico: A Ocupação Indígena no Parque do Aripuanã e Terras Indígenas Contíguas

Outro ponto é que, em geral, os indígenas deixam vestígios em vários lugares. “Com isso conseguimos comprovar tranquilamente essa ocupação tradicional e antiga”, diz Rinaldo. Nesse sentido, o indigenista e coordenador geral da Operação Amazônia Nativa (OPAN), Ivar Luiz Busatto, conta o que observou no Parque do Aripuanã quando lá esteve entre 1979 e 1981. Ivar foi um dos primeiros indigenistas a conviver por meses com os indígenas nas aldeias que permeiam o estado de Mato Grosso, assim como a enfermeira Anni Gruber.

Sem conhecer a língua dos indígenas, o primeiro contato, segundo ele, se deu através de gestos para conseguir a permissão para ir às aldeias de forma voluntária, depois que uma família concedeu a autorização, ele e mais três pessoas foram ao local a pé, uma caminhada que durou cinco dias. “Lá nós vimos realmente onde os indígenas estavam, aonde tinham aldeias. Além disso, observamos as histórias que eles contavam, todos os lugares onde eles viviam a gente cavava o chão e encontrávamos cacos de panelas de barro e eram muitas, descartadas, depois de dois, três, ou cinco anos.” 

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Ricardo Poeira Cinta-Larga com fragmentos de cerâmica e líticos na Aldeia Capivara, Parque do Aripuanã / Foto: Laudo Antropológico: A Ocupação Indígena no Parque do Aripuanã e Terras Indígenas Contíguas

O intuito, segundo Busatto, era levar alguma assistência aos indígenas que haviam buscado contato fora de suas terras apenas em 1974, após enfrentarem ataques e serem contaminados por vindas da presença de garimpeiros na região. “Estávamos lá para dar um suporte para eles terem condições com o tempo de pleitear o espaço, mas para isso a gente precisava conhecer realmente a localização deles, o uso do local para caça, pesca e etc e fazer o levantamento histórico de ocupação. Levamos apenas um pouco de remédio e algumas ferramentas.”

No laudo antropológico feito por João Dal Poz Neto, outros elementos revelam a ocupação dos indígenas das TIs Aripuanã, Serra Morena, Parque do Aripuanã, Roosevelt, Sete de Setembro e Zoró, há pelo menos 300 anos. 

“A memória coletiva dos Cintas-Largas contemporâneos confirma a existência pretérita de uma grande concentração de aldeias entre as cabeceiras dos rios Guariba e Branco, nas margens dos rios Capitão Cardoso e Roosevelt e no ribeirão das Perdidas – além das atividades regulares de caça, pesca e coleta dos moradores das aldeias próximas, há vestígios de capoeiras de roças e aldeias antigas em toda esta região. O conhecimento detalhado que os Cintas-Largas expressam daquela geografia regional e de seus diferentes serve-nos, no mesmo sentido, como evidência da antiguidade de sua ocupação”, exemplifica um trecho do laudo.

Títulos sobrepostos às Terras Indígenas do Parque do Aripuanã

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O documento especifica também os graves problemas nas negociações de terras públicas pelo estado de Mato Grosso a partir, sobretudo, da segunda metade do século XlX, época em que foram transferidas grandes partes de terras possuídas pelos indígenas para empresas privadas e a “colonizadoras”.  

De acordo com o estudo de Dal Poz Neto, as “colonizadoras e grupos empresariais, como o Condomínio Lunardelli e outros, incrementaram a aquisição de terras e os investimentos na região e assediavam os órgãos oficiais em busca de financiamentos, de autorizações e de certidões negativas. Violentos conflitos, e várias mortes, opuseram então os Cintas-Largas, Suruís e Zorós aos ‘colonos’, em geral sulistas que migravam na expectativa de obter para si um pedaço de chão no novo ‘Eldorado’.”

Os títulos emitidos pelo estado de Mato Grosso, em sobreposição às TIs do Parque do Aripuanã, se deram no período de vigência das constituições de 1946 e de 1988. O comércio desobedeceu as regras constitucionais, as quais resguardam aos indígenas a posse e o usufruto das terras por eles habitadas em caráter permanente. O laudo pericial identificou 185 títulos sobrepostos às TIs do Parque do Aripuanã.

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Festa na Aldeia Taquaral na TI Aripuanã / Foto: Laudo Antropológico: A Ocupação Indígena no Parque do Aripuanã e Terras Indígenas Contíguas

Nessa perspectiva, Rinaldo Arruda avalia que muito do que enfraquece a argumentação do estado de MT, além das comprovações que os peritos fizeram, é justamente a fragilidade da regularização fundiária do estado. “Ela é quase secular, tem títulos do estado e de particulares que incidem sobre a mesma área, não é só de títulos sobre terras indígenas. No caso dos indígenas, mesmo se a ocupação for de boa fé se comprovado que havia indígenas lutando por esse território, que estavam presentes ali, as pessoas devem sair do local.”

Além do mais, a decisão proferida pelo Supremo reforça a teoria do indigenato, atacada pelos defensores da tese do Marco Temporal, que alegam que o direito à demarcação de terras indígenas pode ocorrer apenas aos grupos que estivessem ocupando o território na data da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988. “Essa decisão do STF coloca em cheque o Marco Temporal, pois é uma ocupação muito mais antiga a 1988, pode ser que em alguns momentos nessas áreas em 1988 eles não estivessem lá, mas eles estavam muito antes. A teoria do indigenato já estava em 1680 na legislação portuguesa. A ideia do direito originário então já vem lá de trás e a Rosa Weber retoma isso”, conclui.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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