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“Espalha”

“Espalha”

Por Gomercindo Rodrigues

 

Considero de uma profunda injustiça o que o Estado brasileiro fez e faz com os soldados da borracha na . Lembro-me que uma vez, quando já estava estudando Direito, em , como estagiário, fui assistir a uma audiência na Justiça Federal.

Era uma audiência de “justificação”, onde velhos tentavam provar na Justiça, com testemunhas, que tinham trabalhado na Amazônia, na época da Segunda Guerra Mundial.

Sentei-me no fundo da sala, como convinha a um estagiário no entender do juiz que presidia a audiência e que não gostava muito estagiários.

Entrou um velhinho, disse que trabalhara por volta de 1941, no “Espalha”.

O juiz, fazendo-se de desentendido, ou sem entender mesmo, perguntou:

Espalha, o que é espalha? É uma cidade? Uma fazenda? Uma vila? (Note-se que o Meritíssimo, embora estivesse ouvindo um seringueiro, não perguntou se “Espalha” era algum seringal).

– Espalha é Seringal Espalha, São Francisco do Espalha, que fica no Igarapé Espalha!, respondeu o velho seringueiro, fazendo cara de espanto, porque para ele era evidente  que, quando ele estava falando de “Espalha”, estava falando do seringal com tal nome e não lhe parecia aceitável que uma autoridade, como o juiz, não soubesse disso.

– Isso fica perto de onde, perguntou o juiz.

O seringueiro ficou sem saber o que o juiz queria saber. Na verdade, o que o Meritíssimo queria saber, mas não explicou, era em que município estava localizado o seringal. Mas, da forma como formulara a pergunta, era impossível ser respondida, por uma questão muito simples: o Seringal Espalha não fica perto de nenhum lugar.

(Se formos por terra até Xapuri, serão 15 a 18 horas de caminhada. Se formos para Rio Branco, mais ou menos a mesma coisa. Se formos de barco para Rio Branco, serão dois dias. Ser formos de voadeira (que é como são chamadas as embarcações rápidas, normalmente de alumínio, com motores de 25 a 40 HP, na Amazônia), são cerca de 10 horas. Ou seja: o Espalha é longe de tudo!)

Como é que o juiz queria que o seringueiro soubesse responder ao questionamento, da forma como o fez?

Logo depois, entrou uma testemunha, outro seringueiro com cerca de 80 anos de idade. O juiz fez a advertência de praxe, de que ele estava depondo na condição de testemunha e, se mentisse, responderia pelo crime de falso testemunho.

O velhinho respondeu “na lata”, como se diz regionalmente, ou seja, prontamente: eu já sei, pode perguntar seu doutor.

O juiz começou com as perguntas:

– O senhor conhece o justificando (e indicou o nome) aqui presente?

– Sim, senhor juiz.

– Desde quando?

– Desde o ano de 1940.

– Onde o senhor o conheceu?

– No Espalha.

– O que é Espalha? É uma cidade? Uma fazenda? Uma vila? O que é?

– Espalha é o seringal!

– O senhor sabe se ele cortava seringa?

– Sim, senhor! Ele era meu vizinho.

– O senhor cortava seringa?

– Sim, senhor!

– Como é que o senhor o via cortando seringa, se ele estava em outra colocação? O senhor deixava de cortar seringa para vê-lo?

– Não, seu doutor, é que havia uma estrada de seringa que extremava com a minha e a gente se via sempre quando eu estava cortando essa estrada e ele cortando a dele…

O juiz, então, procurou saber quem era o patrão, o noteiro, o fiscal que trabalhavam no seringal. A testemunha disse tudo certinho. Ao ditar para o escrivão, o juiz propositadamente inverteu os nomes.  A testemunha, rapidamente, corrigiu o juiz: “Não doutor, esse era o patrão. Esse outro era o noteiro e aquele outro era o fiscal”.

Isso ocorreu por volta de 1996, ou seja, cerca de 45 anos após os fatos. O juiz, tentando duvidar da testemunha, disse: “o senhor tem uma boa memória, hein?”

A testemunha não contou conversa: “– Escuta aqui, seu menino, o senhor está querendo dizer que eu, com 80 anos de idade, que nunca menti na minha vida, estou mentindo agora, aqui, na frente de uma autoridade? É isso que está querendo dizer?”

Confesso que quase aplaudi a testemunha, pois o juiz calou-se e encerrou o termo. Mas o impressionante é que o juiz, efetivamente, no meu entender, quisera duvidar da testemunha. Isso era quando as justificações eram admitidas. Imagine agora que são necessários documentos escritos da época dos fatos.

 

Gomercindo Rodrigues – Advogado  e Escritor. 

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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