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Fantoche no quartel: Chapeuzinho Vermelho

Fantoche no quartel: Chapeuzinho Vermelho

Golpistas acampados em frente ao Quartel-General do Exército em Brasília contrataram um grupo de teatro de títeres para divertir e educar as crianças, enquanto os pais planejavam o quebra-quebra de 8 de janeiro. Criaram, para isso, um palco numa tenda ao lado de outras com consultório médico, massoterapia, cozinha, refeitório e até gerador de energia, o que sugeria “perenidade e estabilidade do acampamento”, segundo denúncia da Procuradoria Geral da República (PGR) ao Supremo Tribunal Federal (STF).

Por Bessa Freire

Ah, se havia teatro de títeres, então era mesmo perene, porque títere é eterno, diverte e educa como descobri no Peru, no exílio, quando me integrei ao Teatro de Bonecos Dadá (TBD), uma escola de sonhos criada pelo casal de bonequeiros Euclides e Adair, com quem no exílio compartilhado muito aprendi sobre a arte, a vida, as crianças e a relação com a natureza.

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No caso atual do teatro do quartel, procuro saber o que entendem por educar e divertir, quais as peças encenadas e quem remunerou os seus integrantes. Nada encontrei na mídia, apenas uma única notícia lacônica com foto pouco informativa. Nada mais. Sinto-me, então à vontade para imaginar uma possível encenação da Chapeuzinho Vermelho por esse “Teatro de Bonecos Sem Partido”.

Existem várias adaptações da história dos Irmãos Grimm. A versão francesa de Marcel Temporal foi encenada por nós, em 1970, em favelas de Lima e no rico bairro de Miraflores. Na cena inicial, Chapeuzinho mata borboletas para emoldurá-las num quadro e arranca flores para presenteá-las à sua . Ela segue pela estrada afora e se depara com o Lobo enjaulado. Ele lhe pede para abrir a porta daquela prisão. Ela retira o cadeado. Já livre, o Lobo diz que vai devorá-la, não por maldade, mas porque está com fome.

Frater Lupus

dada%20lobo%20presoÉ justo pagar o bem com o mal? – pergunta a menina. Os dois, então, combinam que os primeiros seres vivos encontrados na floresta, julgariam o caso.

Eles se depararam – olhem o azar da Chapeuzinho – com a Borboleta e a Flor, que ouviram argumentações de um lado e de outro e deram razão ao Lobo faminto, afinal humanos matam bois, galinhas e peixes para comer. Mas o Coelho, o terceiro juiz, transfere para fora do palco a decisão e convida o público infantil a refletir sobre bondade, gratidão e fome. Não dou spoiler, porque o final variava, de acordo com as condições de vida das crianças, que em diálogo com os bonecos, desenvolviam seu espírito crítico.

Essa versão libertária jamais seria representada na frente do quartel pelos “patriotas” daquele autoritário e intolerante, porque eles querem matar o senso crítico das crianças, de quem exigem obediência cega. Imaginemos, então, a versão deles com a mesma estrutura acima descrita.

Logo na cena inicial, o Lobo Myramembeca mente, alegando que Chapeuzinho só abriu a jaula, porque foi obrigada por decisão monocrática do juiz terrivelmente evangélico do Supremo Tribunal da Floresta. Portanto, se deve a alguém é a ele e não a ela.

– Chapeuzinho, só não te estupro porque você não merece e não pintou um clima, talkey? – ameaçou.

Foi quando encontraram o primeiro ser vivo: um inseto. Era a Mosca-da-Fruta, que trepada numa goiabeira falava com Jesus, enquanto depositava larvas dentro da fruta, que apodrecia. O Bicho-da- Goiaba – esse é seu outro nome – ouviu os dois lados e, como juiz adora latim, sentenciou:

Frater Lupus imbrochatus est, esurit, et puella comedere meretur, quia parva capellula rubra est. Vexillum silvarum numquam communistarum erit. Vexillum nostrum viride et flavum est. (Actio redibitoria renascentiae effectum habet, quidquid illud significat).

Traduziu para o respeitável público entender: “O irmão Lobo é imbrochável, está com fome e merece comer a menina, porque o chapeuzinho dela é vermelho. A bandeira da floresta jamais será comunista. A nossa bandeira é verde e amarela. A ação redibitória tem efeito repristinatório (seja lá o que isso signifique).

Lobotomia, lobista

dada foice e martelo

O segundo voto foi o do Marreco Xoka´i, a quem o Lobo Myramembeca prometera nomear juiz do Supremo Tribunal da Floresta. Ele nem quis ouvir a defesa da Chapeuzinho. Com sua vez amarrecada, evocou o excludente de licitude para puxar saco dos “lobistas” e grasnou em cadeia de televisão: 

– Deus acima de tudo, a Floresta acima de todos. Já fritei o Sapo Barbudo, sem “colheitar” provas. Decreto: Que o Lobo coma a Chapeuzinho, dou-lhe de sobremesa um sapo frito. Ela deve morrer. Se é inocente, tudo bem, em toda guerra morrem inocentes, a competente Cavalaria americana matou muitos índios inocentes. Aliás, todos nós vamos morrer um dia. Essa não é uma floresta de maricas e eu não sou coveiro.

Ouve-se ao longe um assovio e o Marreco exclama: Hic culum cotiae sibilare.

Os dois votos a favor do Lobo funcionaram como uma lobotomia no cérebro manipulado das crianças, que passaram a crer que “o comunismo é uma doença”.

Na continuação da caminhada, encontram o Jabuti, o terceiro juiz que, devido a seus trejeitos, é considerado suspeito pelo Lobo Myramembeca: “Se fosse o Lobinho 01, eu lhe dava uma coça e curava essa doença”.  O Jabuti contesta, cantando:

– “Ser um jabuti feminino não fere o meu lado masculino. Se Deus é menina e menino, sou masculino e feminino”. E completa: “Sou hetero de costume, mas gay de coração”.

Quando o boneco do Jabuti ia consultar o público infantil que assistia a peça no teatro do quartel, o Lobo rouba-lhe a palavra e grita:

– Eu sou Imbrochável! Im-bro-chável! Repitam comigo:

As crianças lobotomizadas mugem: mu, mu, mu. O boneco que representa o Lobo se dirige às crianças:

– O que quereis que eu faça com o Jabuti Gay e com a Chapeuzinho?

teatro na tenda 1

As crianças lobotomizadas respondem:

– Crucifica-os. Crucifica-os.

As cortinas se fecham lentamente, enquanto o Lobo come a Mosca e devora o Marreco, seus aliados, depois come um sarapatel e foge para as pradarias americanas, levando o colar de diamante da Chapeuzinho.

No auditório, as crianças lobotomizadas cantam o hino nacional para um pneu, com uma lanterna na cabeça para se comunicar com os Ets.

Esses filhos da Pátria ainda darão muito trabalho à Floresta para deslobotomizá-los.

Qualquer semelhança com animais ou fatos da vida real é mera coincidência.

Autor: Bessa Freire – Disponível em: Taquiprati

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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